Primordium Brasileira

Autor(a): Lucas Lima


Volume 1

Capítulo 18: Depois da Tempestade

Preste atenção, meu pequeno Miguel. O estilo de combate que eu lhe ensino é fundamentado na lógica e na estratégia – e você já sabe disso muito bem. Análise e adaptação constante.

No entanto, haverá momentos em que a lógica e a estratégia falharão. Situações caóticas onde simplesmente não haverá tempo para pensar.

Quando isso acontecer, você precisará contar com seus instintos.

Mas instinto, por si só, não basta. Você deve definir, de forma clara, o que ele deve priorizar em cada circunstância. Quanto mais crítica for a situação, mais eficiente deve ser sua tomada de decisão. Seu cérebro precisa encontrar, de forma subconsciente, o caminho mais rápido para o resultado que deseja.

Isso não é fácil.

Por isso, a partir de hoje, vamos acrescentar algo ao seu treinamento.

Simule mentalmente todo tipo de cenário. Defina sua prioridade em cada um deles. Matar o inimigo o mais rápido possível. Fugir. Proteger alguém. Faça isso sem parar, sempre que estiver livre, até sua mente se esgotar.

Assim, quando o caos vier, seu cérebro já terá escolhido o melhor caminho – antes mesmo de você perceber...

 

Quando Mia desapareceu diante dos olhos de Miguel, por uma fração de segundo, sua mente se desligou de todo o resto.

Foi como se uma lâmina tivesse perfurado seu coração. Uma dor que não era apenas física, mas espiritual. Mas não havia tempo para lamentar, muito menos para questionar o que acontecera com sua companheira.

Ele ainda estava erguido, disparando pelo teto solar do sedã quando, pelo canto do olho, viu a barricada policial bloqueando o caminho. Tudo pareceu desacelerar. Os oficiais em suas fardas, levantando as armas, destravando-as, apontando para eles.

O que fazer?

Desviar? Impossível. O trânsito estava um caos desde que Mia perdeu o controle do sistema.

Frear? Ridículo. Seriam fuzilados pela frente e pelos perseguidores logo atrás.
Forçar a passagem? Mesmo que, por algum milagre, atravessassem os quatro utilitários blindados, o impacto da inércia os mataria.

Nenhuma opção.

A mente de Miguel disparou, analisando cenários absurdos e soluções que ninguém mais cogitaria. Mas, por mais que buscasse, não havia saída.

Até que…

Cada neurônio se incendiou. Conexões sinápticas dispararam em uma velocidade impossível. Antes que pudesse racionalizar, seu corpo já havia se movido.

Uma prioridade clara que ele subconscientemente havia definido de antemão — proteger Samira.

Ele já estava prestes a usar aquela habilidade antes que Mia o impedisse. Mas agora, sem tempo para hesitação, ela se ativou instantaneamente.

Seu olho esquerdo inundou-se de sangue, como se algo dentro tivesse rompido. Filetes escorreram pelo canto, enquanto nariz, boca e ouvidos expeliam trilhas vermelhas.

Os músculos quase dobraram de tamanho, mas, internamente, cada fibra parecia estar sendo dilacerada. Veias e tendões quase se rasgaram sob a pressão. A pele foi marcada por inumeras fissuras, como se a qualquer momento fosse se partir.

Mas ele se moveu de forma sobre-humana.

Em um instante, posicionou-se diante de Samira, abraçando-a — 0,1 segundo atrasado em comparação aos tiros que choveram sobre o carro. O descontrole da direção foi inevitável. Sentiu vários projeteis atingindo seu colete sob a jaqueta, que por muito pouco sustentou todos os impactos evitando danos letais.

Seu corpo ardia, suas veias latejavam como se o sangue corresse a uma velocidade impossível. O coração pulsava tão forte que, se prestasse atenção, poderia ouvi-lo martelando dentro do peito.

Quando o carro entrou na contramão e foi atingido por outro veículo, os airbags explodiram, envolvendo-os em almofadas de nylon branco. Antes que pudessem reagir, um novo choque os lançou contra a mureta de proteção, e a gravidade desapareceu por um segundo. O carro girou no ar, despencando do viaduto.

A lataria atingiu o solo de lado, uma sorte imensa — se tivessem caído de frente ou de costas, seriam reduzidos a carne moída e aço retorcido. Mesmo assim, o baque foi devastador. O gosto de ferro preencheu a boca de Miguel. Seu corpo especial permitiu que sobrevivesse, mas cada célula gritava por alívio.

Tudo durou menos de dez segundos.

De volta ao normal, Miguel sentiu seu corpo exaurido ao extremo, assim como uma dor colossal. Sua pele pálida ameaçava se rasgar com as inumeras lacerações. Quase não conseguiu se mover. Apenas sua determinação o manteve de pé.

Precisava fugir dali.

O carro em frangalhos vazava combustível, enquanto o sistema elétrico e  motor já ardiam em chamas. Os perseguidores não estavam longe.

Ele agarrou Samira e sumiu rapidamente...

***

Quando Miguel acordou, um teto branco mofado surgiu em sua visão. O quarto estava escuro, salvo pela fraca luz azul de uma luminária no canto, projetando sombras distorcidas nas paredes sujas.

Ele gemeu inconscientemente. Seu corpo doía pra caralho. Até mexer os dedos fazia seus músculos gritarem em protesto.

A cama em que estava não era nada confortável, mas ele não tinha o luxo de reclamar.

— Já acordou, hein.

A voz rouca veio da lateral. Miguel virou o rosto com esforço e viu o velho de jaleco sujo, largado num banquinho de plástico, costas escoradas na parede. Ele bebia direto de uma garrafinha redonda, o cheiro forte de pinga se misturando ao mofo do ambiente.

— Como Samira está?

O velho resmungou algo inaudível antes de responder:

— Sua garota tá bem. Ainda dormindo. Devia se preocupar mais consigo mesmo.

Os olhos fundos dele analisavam Miguel que naquele momento mais aprecia uma múmia, todo coberto de ataduras. Bebeu o resto da cachaça, jogou a garrafa de lado e pegou um cigarro amassado do bolso do jaleco. Seus dedos cromados brincavam com o cigarro enquanto a outra mão, também protética, fazia a tampa do isqueiro abrir e fechar, repetidamente.

Depois de acender o cigarro e soltar a primeira tragada, ele falou:

— Você e sua mina tão famosos. A bagunça de vocês passou em tudo quanto é noticiário.

Miguel sentiu o corpo enrijecer.

"Isso é ruim..."

— Bem… ao menos acho que eram vocês.

— O que quer dizer com isso?

O velho soltou a fumaça devagar. O cheiro do tabaco se espalhou pelo quarto abafado.

— Nos vídeos, seus rostos tavam cobertos por camuflagem óptica. Inteligente. Assim a polícia nunca vai saber quem são.

"Mia...?"

Miguel estreitou os olhos, pensativo.

— Mas você sabe que era a gente.

— Qualquer idiota no meu lugar ligaria os pontos. — Ele deu de ombros. — Quando vi você daquele jeito, achei que um caminhão tinha passado por cima. E considerando o estado do carro nas filmagens… — seu olhar se estreitou. — Me pergunto como diabos você sobreviveu.

O velho fez uma pausa antes de continuar de forma lenta.

— E ainda, como, em só quatro horas, já tá acordado?

Miguel desviou o olhar. Não tinha por que responder.

O velho soltou um suspiro pesado, tragou mais uma vez e soltou a fumaça pelo nariz.

— Bom… sou velho o bastante para sacar quando é melhor não saber das coisas.

O velho ofereceu um cigarro para Miguel, mas o garoto recusou com um balançar de cabeça. Depois de se levantar, Miguel cambaleou alguns passos até conseguir manter a firmeza.

Seu tronco despido estava coberto por ataduras, assim como os braços, sob os tecidos que enfaixavam sua pele, ele sentia uma textura gelada e viscosa, além de um cheiro amargo bem forte, provavelmente uma espécie de pomada medicinal. Olhou em volta, a procura de suas roupas.

— Sua camisa e jaqueta estão secando na maquina lá atrás. — Apontou com o dedão para trás de si, em direção a porta do quarto. — Lavei elas, estavam nojentas. Aliás, sua jaqueta tá toda furada, a camiseta também. Os tiros que passaram pelo kevlar não foram fundos. Ainda bem que você investiu num traje decente. Isso te salvou.

— É... uns dias atrás uma jaqueta barata que eu havia comprado me deixou na mão.

O velho gargalhou roucamente até tossir.

— As balas estão bem ali, caso queira guardar como lembrança.

Miguel sorriu sem graça. — Pode jogar fora. — Então levou uma mão a barriga, ouvindo-a roncar. — Tem alguma coisa pra comer? Estou morrendo de fome.

— Tem sobras de sushi sintético e frango frito. — O velho se levantou. — Bora lá comer, me deu fome também.

***

No alvorecer, Samira despertou após uma longa noite de sono. Ainda estava exausta, mas não queria fazer corpo mole. Assim que deixou o sofá, sentiu uma leve dor no abdômen.

Ergueu a camisa e encontrou um curativo próximo ao umbigo. Com um suspiro, puxou a bandagem e espiou a pele: um pequeno buraco coberto por um gel leitoso.

— Aff... — resmungou. — Tanto faz. É só cobrir com uma tatuagem depois.

Após ajeitar a roupa sobre a cintura, olhou em volta, procurando por Miguel. Nada dele. A ausência dele a fez suspirar outra vez.

O cômodo estranho parecia um pequeno escritório. Havia uma mesa grande de madeira, com papéis espalhados, o sofá velho onde dormira, um ventilador de teto cujas hélices rodavam fracamente e uma estante repleta de livros, a maioria com capas rasgadas e páginas amareladas.

Explorando o lugar, passou os dedos sobre a mesa. A poeira se acumulou na ponta dos dedos. Ela riu travessa e murmurou:

— O dono pediu por isso, hehe.

Com alguns gestos rápidos, desenhou um pênis com asas sobre a superfície empoeirada. Soltou uma gargalhada satisfeita com seu trabalho antes de se espreguiçar.

Ao erguer um dos braços acima da cabeça, gemeu de dor, a expressão se contorcendo.

— Ai, ai...

Desta vez, o incômodo vinha do ombro esquerdo. Choramingou um “ah, nemmm...” enquanto puxava o tecido para espiar. Outro curativo, idêntico ao da cintura.

— Filhos da puta, mano...

Praguejou ao lembrar dos policiais atirando contra o carro. Mas então a lembrança veio nítida: um vulto se colocando à sua frente no momento dos disparos.

— Miguel...

Só poderia ter sido ele. Um aperto tomou conta de seu peito. Na noite anterior, Miguel parecia o mesmo de sempre — tranquilo, calmo — mas Samira estava debilitada demais para perceber seu real estado. 

Encontrou o resto de suas roupas jogadas sobre uma poltrona de couro sintético, já bastante descascado. Seu celular também estava ali, a tela estilhaçada, circuitos expostos, alguns poucos cacos de vidro ainda grudados na carcaça destruída. Ela suspirou profundamente antes de se vestir apressadamente e sair.

No corredor, um velho calvo apoiava os cotovelos na janela, fumando e bebendo, apesar de o sol mal ter nascido. Samira hesitou por um momento, mas se aproximou. O homem vestia uma calça jeans gasta e uma camiseta branca sem mangas, manchada de café.

— Seu namorado tá dormindo — disse o velho antes mesmo que ela falasse. — Deve estar com fome. O que quer comer?

— Quero ver Miguel — Samira pediu, sem rodeios.

O velho riu e acenou com a cabeça. Esses dois pirralhos, ambos em cacos, e ainda assim, preocupando-se mais com o companheiro do que consigo mesmo.

— Ele tá bem ali. Não precisa se preocupar.

Ela o seguiu até uma sala, onde o ar carregava um leve cheiro de ração e pelos. Miados curtos e latidos abafados se misturavam ao fundo, despertando a curiosidade de Samira, mas Miguel era sua prioridade naquele momento.

Ao entrar, suspirou aliviada. Miguel dormia no chão, sobre um colchão fino. Foi até ele, agachou-se ao seu lado, acariciando o rosto de seu amado.

— Ele acordou de madrugada, só pra saber como você estava. Que inveja que eu tenho de vocês pirralhos. — O velho bufou e bebeu outro gole de pinga. — Comeu e voltou a dormir. Aliás, você está bem?

Samira assentiu. — Ainda tô um pouco cansada, mas estou bem. Só sinto um pouco de dor, aqui e aqui.

— Sei...

Samira não percebeu o velho olhando-a de forma esquisita, os olhos semicerrados.

— De qualquer forma, pegue isso. — Ele ofereceu a ela dois frascos de acrílico. Dentro de um havia pílulas verdes, no outro, pílulas rosas. — O verde é pra dor. O rosa é caso precise dar uma de ninja. Vai inibir a hemorragia por um curto tempo, mas depois o ferimento se abrirá com tudo, tome cuidado.

Samira pegou os frascos. — Por que está nos ajudando?

— Os humanos tendem a ser mais cooperativos quando apontam armas para a cabeça deles. Entende o que eu quero dizer, né?

Samira riu sem graça. — Foi mal.

— Tá tudo bem. — Ele deu de ombros. — Seu namorado estava desesperado ontem, é compreensível. Vou sair pra comprar o café da manhã.

— Valeu, tio.

O velho ria enquanto saia.

***

— … Então… está quebrado?

Samira perguntou hesitante, segurando o dispositivo RISE nas mãos. O display desligado refletia seu rosto, e a expressão entristecida.

— Eu não sei… talvez… — Miguel respondeu, desanimado.

— Esse é aquele novo aparelho da Corporação Okitan, né? Deixa eu ver.

Samira, ainda sentada ao lado de Miguel, engatinhou alguns passos para frente antes de esticar o braço e passar o dispositivo ao velho, Edgar.

— Tio, você manja de TI?

Edgar pegou o RISE, analisando-o com curiosidade.

— Na verdade, não. Mas já tive um modelo da geração passada que deu pau e não queria ligar. Depois que levei num conhecido que curte essas paradas, descobri que o problema era um vírus que veio junto de uns pornôs que eu tava baixando.

Samira torceu os lábios, bufando para si mesma. Miguel não esboçou reação. Ainda que normalmente achasse graça nos comentários do velho, não estava de bom humor. Ficou em silêncio por um instante, mas logo acrescentou:

— Durante a perseguição, Mia começou a agir estranho antes de sumir. Ela parecia… confusa. Como se estivesse tentando interagir com algo ou alguém. Daí, do nada, começou a gritar. O holograma dela se distorceu, códigos estranhos aparecendo por toda parte, se enroscando nela. E então… desapareceu.

Edgar devolveu o RISE para Samira.

— Provavelmente foi um vírus. Comigo não foi exatamente assim, mas quando meu parça restaurou meu aparelho, vi uns códigos bizarros pipocando na tela. Levou um tempão pra consertar. E, no fim, perdi tudo. A IA foi pro caralho. Bosta… três mil reais enfiados no cu.

Resmungando, Edgar enfiou um sonho de doce de leite na boca. O creme escorreu pelos cantos, melecando seus dedos de açúcar enquanto mastigava de boca cheia.

Miguel encolheu os ombros, guardou o RISE no bolso e voltou a comer. Mas os doces que ele tanto amava não tinham o mesmo sabor naquela manhã. Samira também comia pouco.

— Não se preocupa tanto, Miguel. — Samira falou, os olhos brilhando ao lembrar de algo. Pegou um pedaço da torta confeitada e o ofereceu para Miguel. Seu sorriso cresceu ao vê-lo abrir a boca para aceitar.

Edgar pigarreou alto, enojado com o mundo cor-de-rosa que os dois estavam criando na sua frente.

— Alice vai ajudar a gente.

— Quem é Alice? — Miguel perguntou, mastigando a torta de abacaxi.

— Ela é a NeuroHacker da nossa gangue. Tenho quase certeza de que pode ajudar a trazer Mia de volta.

— Oh, isso é bom. NeuroHackers são fodas nessas coisas. — Edgar assentiu. — Aquele meu conhecido era um, embora meia-boca, mas ainda me ajudou. Se essa tal Alice for talentosa, ele pode recuperar sua IA.

— Mia não é uma simples IA! — Samira corrigiu, inflando as bochechas. — Mia é nossa companheira! E é a outra mulher de Miguel.

Edgar quase se engasgou com o café preto, tossindo dramaticamente enquanto olhava para os dois.

— Cough… cough… então tá, né.

Depois do café da manhã, Miguel e Samira se despediram de Edgar. Já estava na hora de voltarem para casa.

— Tomem cuidado, pirralhos. Se precisarem de mais remendos, sabem onde me encontrar. Mas da próxima vez vou cobrar, hein!

Miguel sorriu de canto, acenando com a cabeça.

— Eu volto, velhote. Não gosto de ficar devendo ninguém.

Edgar deu de ombros.

— Tchau, tio! — Samira acenou. — Depois eu volto pra ver os gatinhos.

— Hehehe. Então é bom que fiquem vivos até lá.

Apoie a Novel Mania

Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.

Novas traduções

Novels originais

Experiência sem anúncios

Doar agora