Re:Nascimento Brasileira

Autor(a): Saya


Volume 1

Capítulo 11: Recepção Calorosa

Depois do impacto, tudo se tornou incerto. Emma sentia todo o corpo doer, incapaz de se levantar ou mesmo entender o que acontecia ao redor. Os ouvidos zuniam e a vista borrada, trêmula como se tivesse enchido a cara no dia anterior.

Com o passar dos efeitos, ela enfim pode se situar. Ou, ao menos, tentou. A corredeira ainda rugia no fundo, mas havia algo mais deturpando o hino da natureza. Gritos, nomes sendo chamados e, ainda, o estalo metálico do encontro entre espadas.

Quando por fim se levantou, foi afligida por uma forte dor de cabeça que quase a derrubou de volta. Da testa, escorreu a quentura vermelha na qual ela manchou os dedos para confirmar.

“Sangue...droga!”, pensou, prosseguindo em sondar os arredores.

O caminho a frente estava desmoronado, caído nas águas frias abaixo. De fato, só sobrou as duas extremidades, sendo a mais larga delas por onde veio. Não havia nem sinal da primeira carroça ou dos passageiros que nela andavam. Já a que veio estava na direção oposta, tombada, prestes a cair da mureta rachada.

Alguns metros de distância dalí, Alex estava esparramada no chão, imóvel. E, mais longe, no começo da subida, quatro soldados enfrentavam os encapuzados que Emma vira mais cedo. No entanto, ao invés de dois, eram cinco, e mais começaram a sair da mata. Athert estava recuado, tentando dar suporte aos cavaleiros.

“Merda, merda, merda!”, pensou enquanto corria.

A lesão na perna – ainda não completamente sarada – doía fracamente, uma a mais para a lista de aflições que a garota sentia no momento. Nenhuma delas, porém, impediu seu avanço. Foi de imediato até a armeira, encontrando-a consciente, mas desnorteada.

— Alex! — Seus olhos foram guiados até o pé da amiga, virado em uma posição anormal. — Tá me ouvindo?

— Bem... eu acho que sim. — Ela balançou a cabeça de um lado para o outro até recobrar o foco. — O que rolou?

— Fomos atacados, não faço ideia do porquê nem por quem, mas temos que sair desse lugar logo.

Díspar à sua frágil aparência, Emma conseguiu apoiar Alex no ombro sozinha – com o máximo de esforço, mas conseguiu. O problema, no entanto, veio logo em seguida: um grito escapou da ferreira quando esta tentou colocar o pé no chão. Arrependida no mesmo instante, a condenada voltou com a amiga pro chão e a encostou no muro de pedra.

— D-Droga...acho que torci o tornozelo. — disse ela entre os gemidos. — Não vai dar pra continuar assim.

— Não dá pra ficar com uma só perna?

— É o que?! A ponte tá quebrada, não dá pra pular! O único caminho intacto é a volta, mas a menos que você seja invisível, você vai ser pega ou pelos cavaleiros ou pelos caras que eles tão lutando!

“Cavaleiros...”, ao pensar nisso, uma ideia acendeu em sua mente.

— Vou buscar aquele clérigo!

Dito e feito. Meio manca, fez o seu máximo para alcançar o cavaleiro em bom tempo. Ele parecia exausto, todavia, ele insistia em continuar a canalizar as magias de cura com o cajado. Era notório como a pele ficou mais pálida e o sangue corrente na bochecha menos avermelhado.

— Aí, Athert! — O chamado ativou os instintos defensivos do rapaz, que imediatamente se virou.

Apertou o catalisador firmemente e girou o corpo para executar o ataque que guardou com tanto cuidado. Este, porém, nunca foi intencionado para Emma. Por sorte, Emma teve reflexos mais rápidos e conseguiu arquear o corpo para trás no último instante. O inconsistente balanço o desiquilibrou, e por pouco não caiu no chão.

— Cacete Emma! Não me dá um susto desses não!

— TE dar um susto?! Você quase deu um home run na minha cabeça! — Apesar da situação, foi levada pela raiva. — E o que aconteceu com a tua pele? Maquiagem?

— Não enche, tá legal? — Virou-se novamente, preparado para lançar outra magia.

Uma rápida análise das circunstâncias entregou-lhe a verdadeira natureza do problema. A cada feitiço lançado, Athert grunhia de dor e mais sangue escuro vazava, não só do corte na bochecha, como também do nariz.

— O que tá rolando com você?

— É o preço que pago por não nascer com o dom. — Outro encanto foi conjurado, dessa vez foi capaz de colocá-lo apoiado em um dos joelhos. — Ah... porra! Malditos bandidos!

— Olha, eu não sei qual é a sua relação com aqueles soldados, mas se tu quiser continuar vivendo, vai ter que deixar eles pra trás!

— Relação? Não brinca! Tô fazendo isso pra continuar vivo. Se os bandidos nos alcançarem, já era!

— E também vai tudo por água abaixo se você não parar de usar magia!

Inegavelmente tentado a seguir o conselho da garota, ele olhou para a fileira de soldados protegendo a subida da ponte. Já eram três soldados, um desapareceu da vista.

— Cacete, tá bom! Não vejo opção melhor mesmo.

Os dois foram até a ponta quebrada, onde Alex jazia descansada na ponta da pilastra que vinha de baixo. Nessa corrida, Emma viu algo que mudava toda a situação. Mais à frente na gigantesca reta onde o rio cortava a floresta, a corredeira guardava o que restou da primeira carroça. E, entre os destroços, a universitária observou a familiar figura alta, vestida de preto e com cachos dourados, presa à madeira retorcida.

— Ah... droga!

— Que foi? Qual é o problema da vez? — Os olhos da garota serviram de guia para a própria vista do clérigo. — Não... você não tá pensando nisso.

— Foi mal! — Como uma decepcionante resposta às suspeitas do rapaz, Emma saltou para as águas do rio. — Cuida da Alex pra mim!

— Emma! Ah, inferno! Ela é sempre assim?

— Imprudente? É, talvez. — Alex adicionou.

A água começou batendo nas coxas, porém, conforme avançava e o declive se acentuava junto à a aceleração da correnteza, ficou submergida até o peito. A consciência martelava repetidas vezes a palavra “volte” e “não” na cabeça, mas ela já estava longe demais para voltar.

Se lhe perguntassem, não saberia responder o motivo de cara. Também não se importava em justificar suas ações, e essa tendência insólita se manifestou justamente naquele momento. No instante em que saltou nas violentas águas para salvar sua rival.

Próxima o bastante das águas turbulentas na corredeira, Emma apoiou-se em pedras para se manter fora da água e, acima de tudo, alcançar a inimiga, alheia à armadilha que estava. A jovem pegou uma pequena lasca de pedra solta e jogou-a no pé da Garça.

Sem reação alguma além de uma reclamação silenciosa com a cabeça. Isso, obviamente, não foi o suficiente para a teimosa garota, que continuou com os chamados e arremessos até que, depois de muita insistência, a Garça acordou, tão torpe e confusa quanto Emma estava anteriormente.

— Huh? Hein? — Seus olhos se encontraram com os de Emma e, no mesmo instante, ela tentou partir para cima da possível salvadora.

Entretanto, não só foi impedida pela algema que a prendia na carcaça do vagão como também sua força se provou o bastante para quase desabar com o frágil equilíbrio que o veículo criara nas rochas.

— Ei! Calma aí! — Emma pediu, enfatizando com gestos das mãos.

— Ai.. merda!

— Para de se balançar, vai acabar caindo! — relutante, ela acabou acatando ao pedido da rival. — Me escuta, se você quiser sair daí, vamos ter que trabalhar juntas.

Ela arregalou os olhos, surpresa. Entretanto, essa mesma emoção afogou-se na gargalhada que deu em sequência.

— Como é que é a parada? Cooperar? Tá de brincadeira né?!

— Olha, eu realmente não dou a mínima pra qual motivo imbecil você me odeia. Se quiser ser destroçada na corredeira, vá em frente! Podemos resolver isso em terra firme depois ou você pode ficar aí e morrer!

Aquelas palavras, embora saíssem da boca inimiga, soavam muito convincentes. E ganharam ainda mais credibilidade quando Esther decidiu prestar atenção na posição que se encontrava.

Presa pelo pulso por um solitário grilhão que corria no interior da carroça, tentou puxar algumas vezes, mas sem sucesso. A água que corria abaixo de si e escapava pelas fretas na madeira começara a preencher os cantos mal posicionados do abrigo, adicionando o peso fatal que derrubaria toda a estrutura em pouco tempo.

Conseguia ouvir o ranger da madeira, o soar da corrente e o rugido das águas, armadas de dentes pedregosos, sólidos e sequenciais.

— Adams... se isso for alguma artimanha sua eu vou-!

— Me matar? Você vai tentar de todo o jeito. Agora usa essa cabeça pra alguma coisa útil!

O primeiro passo, claro, era se livrar do cárcere. Em uma rápida sondagem, pegou a lasca de rocha mais integra que achou na pilha que Emma adicionou ao fundo da carroça. Assim, começou a batê-la contra a correte. O movimento vicioso e demorado demonstrou seus frutos mais rápido graças à força da executora, então livre das correntes.

Todavia, ela ainda estava sentada no limite. Um movimento errado seria mais que o suficiente para acabar com tudo. Começou a escalada na superfície inclinada com os pés, tateando cada ponto das tábuas para encontrar o caminho mais sólido e confiável.

Cada novo ponto firme alimentava a esperança e, naquela altura do campeonato, Emma já se pendurava na rocha para esticar o braço e esperar pela rival.

— Vem logo!

— Tô quase... lá! — A carroça trepidou, quase levando-a junto das tábuas que arrancou do vagão.

Sem mais o espaço e firmamento que possuía antes, suas opções foram resumidas a um único salto. Tiro no escuro, com certeza, mas era isso ou ser pego pela corredeira.

— Que se dane!

Posicionou-se e, com toda a força que lhe restava, atirou-se para fora. O impulso para trás terminou de colapsar com a carroça, que logo foi engolida pela espuma. Emma arriscou-se o máximo que pode, estendendo a mão para ela.

Contudo, não foi o bastante. Os dedos das duas nunca se entrelaçaram, e Esther afundou na água turbulenta.

— Garça?!

Ela emergiu da água, puxando o máximo de ar que conseguia para os pulmões. Então, tentou nadar contra a correnteza. A garota pôde ver nos olhos de Esther o mais primal desespero, a vontade de lutar pela vida. Mesmo assim, fora em vão, e ela logo submergiu de novo.

A jovem, atônita, não move um músculo sequer por segundos que mais pareceram horas, até ela mesma se retirar do transe e encarar a realidade.

Garça se foi.

Ela refez o caminho de volta com certa dificuldade, o peso no coração como companhia do começo ao fim. Por fim, chegou abaixo da ponte. Apenas o mortal silêncio preenchia o lugar, e não havia ninguém a ser visto dali. Inábil em controlar a própria curiosidade, subiu na rocha colapsada para alcançar a beira quebrada da ponte, por onde subiria.

No meio da escalada, o pulso foi agarrado por outra mão. Subjugada, ela olhou para cima e encarou nos olhos um dos encapuzados que, para a surpresa dela, a puxou para cima.

Já com os pés na ponte, viu Athert e Alex rendidos, rodeados por meia dúzia dos ladrões enquanto a outra parcela vigiava a entrada. Entre os encapuzados, vestidos com coletes de couro por cima do manto que usavam para se esconder, galochas largas que engoliam metade da panturrilha, luvas e tudo mais para cobrir a pele, havia um que se destacava.

Ele, na verdade, ao contrário dos seus jovens seguidores, era um homem que exibia a meia idade como troféu, o “primeiro enta” de muitos a vir. Barba grisalha em alguns pontos, semelhante ao curto cabelo castanho desbotado que cobria a cabeça. Os olhos eram intensos feito chamas negras, mas o sorriso convidativo de orelha a orelha o dava um charme entre aqueles que preferiam esconder o rosto. Era alto e robusto, músculos e gordura na medida certa para formarem o equilíbrio no corpo.

— E não é que era verdade? São três mesmo! — Ele falou, voz grave e animada como de barista na happy hour. — Duas garotas que... não faço ideia de onde sejam, e um imperial! Hoje deve ser meu dia de sorte.

— Quem...?

— Espera aí! — Interrompeu. — Você não vai fazer perguntas de “quem”, “como” e “por que”, vai? Já vi tantas dessas reações que eu poderia guardar num daqueles vinis das décadas passadas.

— Olha, não queremos problemas.

— E quem quer, moça? Esse mundo fodido já tem problemas demais, e é por isso que existem pessoas como nós para resolver tais problemas! Ah! falando nisso, que grosseria a minha.

Ao mesmo tempo que tentava passar a suposta autoridade, não se importou de manter as coisas simples.

— Sou Gilbert Leon, meus amigos me chamam de Gileon. Do que você vai me chamar depende totalmente de você.

— Olha, é a primeira vez que vejo bandidos se comportarem — Athert zombou, conquistando a atenção do líder.

— Ho ho! Dá pra ver que esse rapaz tem garra. — Ele se aproximou, envolvendo os dedos no queixo do clérigo. — Ao contrário de vocês, cães do Império, temos muita disciplina e honra! Não acha meio suspeito andar por aí numa carroça cheia de “bugados”?

— Bugados?

— É, esses bastardos que parecem humanos, mas são só um monte de... sei lá, alguma merda zoada. Tá vendo aquele cara ali? — Ele apontou para um soldado capturado não muito distante de si. — Achei que podia ser outro de vocês, mas aparentemente era só o Nicolas.

— Cês dão nome pra essas coisas? Na minha vila eu nunca fiz algo assim.

— Claro, você ganha certo carinho por eles depois de manda-los de volta pro buraco de onde saíram mais de vinte vezes. — Com uma série de gestos, os ladrões levaram o espectro até ele. — Salve, irmão! Tá bonito hoje em cara, cortou o cabelo? Demais! Parece até o mesmo corte das últimas 27 vezes. Bom, a gente se vê na próxima amigão.

Com um único toque na testa, o fantasma digital se desfez por completo, desaparecendo em pleno ar.

— Onde é que estávamos mesmo? Ah, sim! Os nossos três convidados. Vocês devem estar se perguntando, “Gileon, por que explodiu o comboio?”, e a resposta é até que bem simples: precisamos de pessoal, e vocês parecem dispostos o bastante para ajudar.

— Não fode.

— Calma lá, amigo, não fiz nada. Aliás, fiz sim, salvei vocês. Ouvi dizer que estão ocorrendo umas coisas sinistras em Stawrin, e vocês sabem que os soldados sempre acabam de volta na fortaleza. Sabe de alguma coisa, vampiro?

— Sei tanto quanto você, “amigo”.

— É, então estamos mesmo no escuro. — Murmurou para si mesmo, logo voltando à calorosa apresentação. — Enfim, isso não importa agora. E podem ficar tranquilos, não queremos nada demais de vocês, só precisamos duma ajudinha em Hermes.

Emma pensou em perguntar, mas calou-se ao imaginar o caso que criaria. A última coisa que precisava ser naquele momento era suspeita. Ainda assim, havia uma atitude necessária para a execução dos planos em mente: ser prestativa.

— No que exatamente? — disse, tentando passar mais confiança.

— Você não pode tá falando sério né? Eles são bandidos, literais criminosos!

— Fecha essa matraca, ô guri! Ao contrário de você, sua amiga aqui parece interessante. — O homem virou-se para ela. — Eu não posso falar dos detalhes sórdidos aqui, mas, se nos acompanharem até a colônia, podemos conversar entre as melhores companhias que esse vasto mundo pode oferecer. Tentador, não acha?

Embora previsse os riscos da negociação, o objetivo começava a se solidificar. Todas as pistas que tinha apontavam para o mesmo local e, se o tempo estivesse mesmo contra si, não poderia evitar alguns problemas, ainda mais se quisesse saciar os próprios desejos.

Derrotar o culto, claro, estava no topo da lista. Mas a luta contra Garça trouxe de volta a questão das forças: ela não estava pronta, e nem poderia encarar os zelotes sozinha. E, por pouco não foi direto para eles.

Fosse hipótese fundamentada ou suposição às cegas, algo dentro de si concluiu que, com toda a certeza...

“Eles estão indo para Stawrin”

Se estivesse certa, então o tempo era mais curto do que esperava. Só em três dias, Yharag colocou a prova suas habilidades e, por algum milagre que nem ela sabia explicar, sobreviveu para continuar a luta. Levada mais pela própria ambição doque pela missão que lhe foi dada, ela disse:

— Nós vamos. — Athert ficou boquiaberto. — Mas com uma condição.

— E qual é?

— O cara ali, Athert. Ele vem com a gente. — Se o rapaz não acreditara antes, ali ficou em completo choque.

— Não vejo problema nenhum, quanto mais pares de mão para o serviço, melhor!

— E quem disse que eu aceitei?! — Ele questionou.

— Não tô nem aí.

— Fala sério!

— Bem-vindo ao clube. — Alex ofereceu-lhe um sorriso tremido. — Não temos café ou biscoito, mas...

O sacerdote afundou o rosto na palma da mão, desejando nunca mais sair daquela confortável escuridão se comparada ao caos do exterior.

— Alex?

— Vou aonde você for, cê sabe.

— Fechou. — Ela voltou os olhos para o líder grisalho. — Vamos ver o que você tem de tão interessante, senhor Gileon.

O semblante audaz que carregava foi de imediato respondido pelo próprio homem desafiado por ela. Os interesses poderiam ser diferentes – muito, pra falar a verdade -, mas somente um caminho os aguardava:

— Para Hermes então!



Comentários