Reino da Verdade Brasileira

Autor(a): Lucas Baldi


Volume 1

Capítulo 3: Primeiro passo

 

 

Me equipo com uma pequena bolsa de couro, um casaco preto de lã de ovelha e uma calça grossa de pano marrom. Fecho os olhos com firmeza e inspiro o ar gélido. Um tremor percorre meu corpo. O rosnado tenebroso faz minha mente reverberar, enquanto os dentes enormes destroem o corpo do combatente da cidade. Demoro a perceber que estou suando frio.

O minotauro, envolto em sua aura sombria, me faz tremer — um nó se forma em minha garganta. Me sinto como uma frágil formiga prestes a ser esmagada pelo peso de uma rocha. A morte… esteve tão próxima. Tudo o que posso fazer agora é ser grato por ainda estar vivo.

Emy sempre me vê como uma pessoa forte e inteligente, mas naquele momento eu me senti como um covarde medroso. Um turbilhão de pensamentos aflige minhas noites, onde qualquer barulho exterior me causa tremores ao acordar de madrugada. 

Tomo um longo gole de água e fecho os olhos enquanto esvazio minha mente, extinguindo devagar os tremores em meu corpo. Se isso tomar conta de mim o dia inteiro, eu não serei melhor do que agora.

Visitar esse grupo de coleta vai manter minha cabeça ocupada e talvez trazer um pouco mais de dinheiro para casa. 

Desço as escadas apoiado no corrimão, e o aroma dos temperos atrai meu olhar para a sala de jantar. 

— Oi, Lumi — Minha mãe fala, com uma panela de feijão nas mãos cobertas pelas luvas. — Aonde você vai? A janta está pronta.

— Oi, mãe — falo em baixo tom. — Eu vou visitar o grupo de coleta da cidade para tentar trabalhar lá — vejo Emy me olhando da sala, apenas com os olhos visíveis de trás da parede. — Papai me disse que seria uma experiência legal e que eles são bons no que fazem.

— Mas e a fazenda? Você não trabalha com o papai? — Emy fala enquanto se aproxima.

— Trabalho. Só que — falo com confiança, e ergo meu dedo indicador na testa dela. — ir com eles vai me dar experiência ao explorar regiões afora e me deixar mais forte — Ela arregala os olhos com admiração e faz um biquinho. Ela… minha pequena e linda irmã. Eu quero continuar sendo o irmão que ela tanto ama. Não posso decepcionar esses olhos. Eu tenho que protegê-la. — Vai ter várias montanhas e recursos super difíceis de pegar!

—Uooooh! Que legal! — Ela pula animada, e Amice me ergue levemente os lábios, seu olhar gentil recaindo sobre mim. — E você vai trazer algo legal pra mim?

— Talvez uma flor mágica ou um cristal brilhante. Mas só se você for boazinha.

— Eu sempre sou boazinha!

— Tudo bem, você pode ir — Minha mãe assente. Kanro desce do segundo andar e dá um largo sorriso ao me ver, depois olha para Amice. — Faça o teste e venha logo para casa. Procure evitar problemas e situações perigosas. Quando passar, falaremos sobre sua saída em expedições.

— Sim, senhora — uma mistura de amor e medo se espalha em meu peito. Seu apoio é como um impulso caloroso em minhas costas que afasta as inseguranças.

— Já você — Ela olha para Kanro semicerrando os olhos, o tom afiado como uma navalha. Meu pai fica surpreso e desvia o olhar. — Vai garantir que ele fique bem e seguro.

— Sim, senhora. — Ele ri sem graça, desviando o olhar para mim.

— Hihihihi — A risada suave de Emy ecoa pela sala. 

 

*

 

Sou recebido por uma brisa congelante ao sair, e penso comigo se vale a pena trocar esse calor em minhas costas por uma caminhada na mansa chuva. Não há jeito. Abro o guarda-chuva e o relâmpago nas montanhas o faz cair dentre minhas mãos.

Vejo sombras de grifos nos céus, que duelam ao redor do pico mais alto da Montanha do Guerreiro Esquecido, como se dançassem entre os raios e desviassem das nuvens escuras mais carregadas. 

Seguro firme o objeto caído e olho para frente. Exijo que minha perna se mova, que o primeiro passo seja dado. A vegetação balançava constante com as correntes de ar, com o calmo chuviscar que assola as uvas caídas nas margens do rio. 

Piso no primeiro degrau que desce a varanda. Um choque percorre o meu corpo, mas ceder a ele está longe da escolha que fiz hoje. Meu avô colocaria as mãos em minhas costas e me empurraria para onde eu quero ir. 

Dou o segundo passo, e minha bota afunda em uma poça de lama e água. Acima de mim, a chuva tamborila no guarda-chuva.

O fluxo de mana em meu corpo se acende. Inspiro mais ar do que qualquer um seria capaz e sinto a magia pulsando nas Lótus de Mana. Meus músculos relaxam quando a energia finalmente se acomoda. 

— Sempre me interessei por este seu talento — A gentil voz feminina me faz pular e soltar um vergonhoso grito. 

Da trilha que leva à cidade, a aventureira abaixa o capuz verde e solta uma risadinha. Seus olhos cor de mel, puxados levemente para um tom de cinza claro, encontram os meus. Meu coração acelera. Seu cabelo loiro, levemente úmido, desliza pelos ombros até alcançar os seios, enquanto suas fofas orelhas pontudas surgem entre as belas ondulações. Seu sorriso meigo me traz uma alegria que eu não sinto há tempos.

— Te assustei, Lumizinho? — Meu rosto está quente. Ela se aproxima sem tirar o olhar de mim. — Sabe, usar a magia para melhorar sua respiração. Você poderia aguentar  quantos duelos seguidos se desenvolvesse?

— Elanor! — O guarda-chuva cai. Envolvo ela em meus braços e apoio meu queixo em seu ombro. — Eu senti sua falta… — falo um pouco mais baixo. Ela retribui o abraço.

— Assim eu vou me sentir mal — Ela sussurra, gentil, e voltamos a nos olhar. — Eu vim correndo para cá assim que fiquei sabendo do que houve. Fiquei muito feliz de saber que o cavaleiro real acabou com aquele monstro, mas a primeira coisa que pensei foi se você e o João estavam bem. Ele estava com aquela ideia de entrar na guarda da cidade e você frequenta um comércio próximo.

— A gente conseguiu sair — falo com hesitação, e empurro o horror dos corpos multilados falando sem pensar muito: — João conseguiu entrar na guarda naquele maldito dia. Devia ver como ele está orgulhoso.— dou uma risada sem graça. — Mas naquele dia — Um flash de lembrança cruel. — Eu… Eu-

Ela coloca o indicador na minha boca. Quando tento tirar, percebo minhas mãos tremendo, minhas pernas sem força. Minha garganta foi pega em um nó seco. 

Que estado deplorável eu me encontro. — E a Vossa Alteza Real? Da última vez que o vi, ele disse que ia explorar uma dungeon com algum goblin de mana. — Ela pega o guarda-chuva e abre, protegendo nós dois. 

— O Bruno ficou ocupado com as coisas de príncipe no último mês — Elanor abafa uma risada debochada quando eu falo “príncipe” em especial.

Quando ela descobriu que ele era filho da Rainha do Décimo Reino, pensou que estávamos tentando pregar uma peça. Mas ficou perplexa quando percebeu que era verdade. Não a julgo, eu também ficaria sem saber como reagir se descobrisse que um dos meus melhores amigos faz parte da família real.

Bruno sempre diz: “Eu sou um príncipe” desde que éramos menores. Então eu meio que cresci sabendo que ele é da realeza e que a “tia Alyssa” é a renomada rainha. Lembro quando João o trouxe para brincarmos no chafariz da cidade, e mesmo aos dez anos, ele já demonstrava uma aptidão nata no domínio de água.

Água é um elemento leve de dominar, segundo ele. Dá para usar a chuva em feitiços e até mesmo rios. Bruno disse que usuários experientes conseguem fazer uso do suor do oponente, mas eu duvido disso.

— E você? Está indo para onde? — Ela entrelaça nossos braços e me guia para a trilha que leva a cidade. — Irei te acompanhar — Ela dá passos animados.

— Vou fazer o teste para o time de coleta de Karin. Meu pai disse que é uma boa oportunidade para eu me aprimorar sem me expor ao perigo — Ela fixa os olhos em mim e hesita, mergulhada em seus pensamentos. — Eu vou para vários lugares. Acho que boa parte das flores medicinais são encontradas em cima de montanhas, então vai me render bons exercícios. Aprender sobre materiais e ganhar um pouco de dinheiro também. Se eu passar, é claro. E não, não há muito a se desenvolver em um talento que só pode “respirar melhor”, Elanor. 

— Humph — Ela dá de ombros. — Você nem sequer tem treinado que eu sei — Minha pálpebra esquerda pisca sozinha. — Mas tudo bem, vou deixar passar. Desta vez. Agora sobre a Coleta… eu nunca imaginei que você ia querer entrar — Saímos da vegetação e seguimos a trilha entre as outras casas, onde a fumaça subia das chaminés. — Eu te apoio. Levanta essa cabeça que você vai passar sim. Por mais preguiçoso que tenha se tornado. 

— Ei, eu não fiquei preguiçoso. Só não vejo motivos para treinar além do básico. — A risadinha de Elanor me tira um revirar de olhos. 

É um pouco desanimador não conseguir acompanhá-los em nível de força. Eles têm uma fluidez de magia pelo corpo que eu naturalmente não sou capaz de acompanhar. Seja cobrir-se com mana ou canalizar energia para usar algum feitiço.

Eu nunca treinei com o propósito de ser melhor ou pior que alguém, mas queria encará-los de frente em uma luta. Só de pensar neles três lutando minhas mãos formigam. Tão determinados a explorar e viver sem medo dos perigos que podem surgir. 

Eu nunca tive um objetivo claro do que quero fazer.

Eu aprendi a cuidar da fazenda com o meu pai desde pequeno. Treinei com ele e meu avô até ter força suficiente para me defender sozinho na cidade. Acho que eu sempre gostei de estar onde estou, e não meço esforços para mudar isso. 

Agora meu mundo virou de cabeça para baixo, com uma sensação no peito que piora a cada noite enquanto a imagem de uma criatura — que eu jamais vira — dilacera meu âmago. 

Aquilo… como é possível? 

Estava morto num instante, mas depois… vivo.

Elanor aperta minha mão. É o único toque que ainda me prende à realidade.

A chuva diminuía lentamente, quase como uma despedida, enquanto os portões de Karin surgiam à nossa frente. Apenas um guarda desta vez. A armadura repleta de lama, as olheiras fundas mescladas à sujeira do rosto.

Apoiado em uma foice tão alta quanto ele, mantém os olhos estáticos, encarando o vazio, sem reagir à nossa passagem. Elanor me aperta e me puxa para longe. Ultrapassamos o portão, pisoteando gravetos, roupas, lamparinas quebradas e… 

Karin reflete a ausência de cor dos céus, a calmaria e vastidão. Uma cidade outrora abarrotada de pessoas caminhando para todos os lados em seus mais diversos serviços agora está vazia como um vasto milharal, a mercê do uivar cruel dos ventos e ruas enxurradas de medo.

O terror de que o cenário possa se repetir. Karin é apenas uma cidade bonita do canto de Elderer que se pode ver os adoráveis grifos, favorecida pelas rotas seguras e ausência de monstros. 

Mas o que nos tornamos, depois que aquela criatura apareceu e levou vidas com ela? Não sei se ainda sou o mesmo depois daquilo. Ou se algum dia vou ser de novo.

Cada passo parece trazer um peso diferente em meus ombros. Cada olhar das crianças que não saem de suas casas para correr no chafariz, das mães com receio de visitar o comércio, homens com medo de não poderem proteger suas casas e idosos com olhos sem vida.

Frutas e carnes apodrecem em barracas vazias, tão repulsivas que nem mesmo os mendigos ousam se aproximar.

 Ânsia levou o gosto desagradável de bile à minha boca quando nos aproximamos da rua de onde tudo ocorreu. Com o joelho incerto de que me manteria de pé, pisei firme e segurei a mão de Elanor. 

— Por aqui, não — murmuro, com os olhos presos em um brinquedo largado na lama. — Vamos dar a volta pelos cantos.

Os gritos perturbam minha cabeça com mais força do que o latejar em meus ouvidos. 

Levo Elanor às pressas para a direção contrária, ando o mais veloz que minhas fracas pernas me permitem.

Os passos.

Entramos em uma rua apertada, cheia de caixas abandonadas e ratos famintos farejando restos no chão.

Os gritos, os ossos esmagados.

A voz de Elanor se torna um eco distante. Sinto o tremor no chão. A escuridão vem atrás de mim, farejando cada passo.

O rosnado estrondoso, tomando tudo.

Paro na travessa seguinte, entre um dos comércios fantasmas e o chafariz, que esguicha uma nova chuva aos céus. Com o coração na boca, viro para Elanor.

Não estou seguro. Nem aqui. Nem com ela. 

 

Nem comigo.

 

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