Volume 1

Capítulo 21: Organização dos Sonhos

 

— Você... venceu. — Depois de dizer isso, ele some.

— Emma... o que... cof! Aconteceu...? Cof!

— Calebe. Você... tá bem? —

— Tô vivo — tusso ao dizer. — Melhor dizer assim.

Sashi ri em meio a gemidos de dor e cansaço.

— E cadê o senhor Charles?

Boa pergunta. Olho em volta quando tento me levantar, quase não conseguindo, mas ele não está em canto algum. Charles desaparece completamente. Velho...

Sashi embainha a espada rachada em vários cantos e vai até mim para me ajudar. Do jeito que estou mais quebrado que arroz de quinta, eu vou precisar dessa ajuda mesmo. Eu apoio meu braço por trás do pescoço da Sashi e caminhamos devagar, de volta ao dormitório.

Por mais incrível que parecesse — e àquela altura, já não fico mais surpreso — o dormitório está inteiro. Intocado. Como se nunca houvesse tido algo ali. Pelo menos posso ficar tranquilo quanto ao fato de ser expulso por depredação de patrimônio público

— Sashi.

— O que foi, Calebe? Está doendo muito? Quer parar?

— Não é isso. É que eu quero... te contar uma coisa.

—...? — Sashi torce os lindos lábios marcados com sangue. — Me contar?

— Sim. — Tusso mais um pouco, tendo espasmos de dor em vários lugares. — É algo importante...

— E o que seria?

Minha visão.

 

 

*****   *****

 

 

Uma semana se passou desde nossa luta contra Yatsufusa, que descobrimos ser um persona extremamente poderoso de uma estudante recém-transferida para a universidade Morro Branco, Emma. No dia seguinte, uma notícia chegou até mim através de conversas.

Emma foi hospitalizada, em estado crítico, por uso excessivo do remédio que ela usa para dormir. Os médicos não estavam muito animados para a recuperação dela e a própria universidade prestou todo o apoio à família.

Devido aos acontecimentos recentes e a questão do maníaco que mata pessoas dormindo, a universidade Morro Branco suspendeu as aulas e atividades por um período indeterminado, até que tudo se acalmasse. E eu, como alguém que tinha acabado de levar uma das maiores surras da minha vida, não achei ruim.

Muito pelo contrário; a reitoria do campus e o corpo administrativo permitiram, com muito choro, os estudantes dormirem no campus desde que respeitassem um toque de recolher e protocolos de segurança. Os demais foram para suas casas.

Não tive mais notícias do Bernardo, Micaela, Emma... ninguém. E agora estou aqui no meu dormitório, como tenho passado grande parte dos dias, praticando aquela meditação que Charles me ensinou. Já estou pegando o jeito da coisa e agora consigo dormir mais rápido e bem melhor que antes, além de que minha conexão com Sashi melhorou bastante.

Digamos que o corpo da Sashi — e não entendam isso mal — agora é meu refúgio pessoal. Posso simplesmente acalmar minha mente, imaginar qualquer lugar paradisíaco como uma praia abandonada, o topo de uma montanha ou uma ilha isolada no meio do mar e apenas ficar lá dormindo, descansando, olhando pro tempo. É uma habilidade que adquiri nesses dias, durante minhas práticas.

Não me acostumei com isso ainda, mas é algo que gostou muito de fazer. É como descansar o dobro; corpo e mente. Como tanto faz se estou dormindo ou não, Sashi é livre para fazer o que quiser nesse tempo. Ela fica cuidando do quarto enquanto estou fora, me protegendo contra qualquer tipo de pesadelo engraçadinho que possa aparecer.

Como as pessoas tem ficado mais ociosas, a quantidade de incidentes envolvendo pesadelos aumenta no campus. Charles, em um período de uma semana, ainda não foi me ver nenhuma vez.

— Calebe? — A voz de Sashi ecoa naquele universo pessoal que, agora, é uma piscina cristalina infinita onde eu boio sobre um colchão inflável. — Calebe? Está acordado?

— O que foi, Sashi?

— Tem três esquisitões aqui, querendo falar com você. Ao que parece, são personas.

Reviro os olhos por baixo dos óculos escuros de marca.

— Diz pra eles voltarem depois. Tipo daqui a uma semana, pode ser?

— Eles estão insistindo. Estão dizendo que são da Mandala.

— De novo essa porra? Se o velho quer tanto falar comigo, por que ele mesmo não vem como sempre faz?

— E eu sei? Vem logo resolver isso.

— Aff! Tá, tá bom — digo com um suspiro e me levanto. — Troca comigo aí, Sashi.

Quando assumo seus olhos, três seres bizarros, parecendo que saíram de algum filme bizarro com tema de Halloween, estão parados na porta com rostos impacientes.

— Certo. Cheguei. O que vocês querem? — digo com a máximo de educação que meu humor me permite no momento.

O do meio, com roupa de Chapolin Colorado — até o martelo é igual, nossa! — começa com certa agressividade.

— Já dissemos, não dissemos? Você vem com a gente. E não adianta acordar, pois cercamos essa área com gás sonífero.

— Espera! Você tá fazendo tudo errado! — Outro persona do lado direito dele, uma mulher com roupa de uma maga de RPG medieval — com direito a óculos redondos, chapeuzinho pontudo e tudo mais —, interveio. — A gente não veio pra brigar. Viemos conversar com você. Podemos entrar, por favor?

Ela pede com tanto jeitinho que acabo cedendo. O trio de fantasiados entra e encontra meu corpo dormindo como uma pedra sobre a cama. E eles se sentam na cama vaga enquanto nós sentamos perto dos meus pés, o “marretinha” mascarado ali me olhando como se quisesse pular logo o falatório e partir pra porrada.

— Vocês são capangas ou empregados do velho?

— Velho? — A maga questiona, sem entender.

— Ele tá falando do senhor Charles! — O outro persona, um urso pardo enorme que mal coube lá dentro, usando lencinho no pescoço parrudo e botas nas patas traseiras, disse de repente, apontando uma das garras pra mim.

Eu quase tenho um troço com aquela ação inesperada.

— Caralho, o urso fala!

— Sério que está se referindo ao senhor Charles como “velho”? — late o cosplayer de Chapolin.

— Novo é que ele não é, né?

— Certo. Já que se referiu a ele desse jeito, e as descrições batem com o relatório que chegou na central, você com certeza é o Calebe. O Fictor com o dom raro.

Fictor?

— É o termo técnico para os agentes oníricos “apadrinhados” — A maga responde, percebendo a minha confusão. — E nós somos Fictors a serviço da Mandala. Meu nome é Lena. — Ele estende a mão gentilmente.

— Ah, é... prazer. Sou Cal...

— Já sabemos seu nome, bonzão! Temos um dossiê completo seu. Sabemos até quantas vezes caga por dia, então vamos logo pular a parte das apresentações e vamos direto ao que interessa: você vem com a gente.

— Erick! — diz Lena com reprovação.

Que cara mais marrento! Ele pensa que, por ter um martelinho de brinquedo Extra GG e uma roupinha colada com anteninhas, pode sair pagando alto pra cima da gente?

— Olha, eu não sei qual é o seu problema, mas não tenho nada contra nenhum de vocês, tá? Eu e Sashi só queremos ficar em paz.

— Sashi? — O urso repete com a voz grossa e bestial.

— Sashi? Que Sashi? — Lena pergunta.

— Minha persona, ué.

— E você deu um nome piegas desse pra um persona? Sabe que é a mesma coisa de dar um nome para si mesmo, né? Acho que não sabe, pelo visto. Que cara estranho! Hahahaha!!

— Erick! Pode, por cinco minutos, não falar nada e deixar eu conversar com ele?

— Claro que eu tenho um nome! — Sashi assume o corpo de repente. — Calebe me deu esse nome e o carrego com muito orgulho!

Tirando o arrombado que está rindo e zombando da gente, o urso e a Lena se entreolham, surpresos.

— Que foi?

— Então é mesmo verdade! Seu persona tem consciência e personalidade próprias. Isso é incrível!

— É assustador, na verdade. — Um urso pardo enorme dizendo que algo é assustador. Há claramente algo errado aqui.

— Que mané consciência e personalidade própria! Ele tá fingindo, não tão vendo? O cara tá dormindo e tá falando com a gente através do persona, simples assim! Como podem ser tão ingênuos e tapados?

Só que os olhos daquele pau no cu, comicamente, crescem tanto que parecem que vão se ejetar da cara dele no momento em que levanto da cama com um bocejo, esticando os braços. Sashi, diferente do que ele esperava, não desaparece e continua a encará-lo com um sorriso esperto no rosto. Os outros dois também se impressionam.

— E então, Erick? Acredita em mim agora? — pergunto, coçando os olhos.

Mesmo depois de uma semana, nem todas as dores sumiram. Mas com os exercícios de meditação e o sono constante, junto do descanso da mente, estou me sentindo novinho em folha. Sashi nunca esteve tão vigorosa e saudável quanto agora.

— Num tô acreditando...

— Caralho!

— E-E-Ela não desapareceu! Ele tá acordado, não tá? Ou tô vendo coisas?

— Se você tá vendo coisas, então eu também tô — concorda o urso, os pelos enriçados.

— Que porra é essa?! — Erick não sabe como reagir àquilo.

— E você pode nos ver, mesmo acordado?

— Como qualquer outra pessoa — respondo.

— Puta merda! Eu não...

— Certo, certo! Já entendemos o quão poderoso e especial é o senhor, mas nossas ordens não mudaram. — Erick se levanta, dizendo aquilo com sarcasmo e deboche. Eu ainda ia sair no soco com ele, anotem o que digo! — Temos que te levar até a central da Mandala. Nossa chefe quer bater um papinho com você.

— Não... — Levanto um dedo na frente dele.

— Não? — Ele repete, franzindo o cenho.

— Não antes de me dizerem do que se trata e onde está o velho. Por que ele não veio falar comigo pessoalmente?

— Ora, você acabou de chegar e já quer sentar na janelinha? — Erick andou até mim de forma ameaçadora. — Só porque você ficou um tempinho com nosso chefe, tu pensa que...

Um TLIM metálico soou dentro do quarto e o brilho da ponta da katana de Sashi reluziu próximo do pescoço do paralisado Erick. Ao perceber perigo, o urso levanta de uma vez e fica de pé, ameaçando a Sashi com aquelas patas enormes.

— Mais um passo... — Os olhos de Sashi estão assustadoramente sérios. —... e você perde a cabeça aí mesmo.

Lena também se levanta, mas ela se põe entre os dois, com gestos apaziguadores. Tadinha... ela só queria uma conversa.

— Qual foi, cara? Não vai mandar seu persona tirar a lâmina do meu pescoço? Ou ela tem taaanta “personalidade” assim que sequer consegue mandar nela direito?

O cara não para! Santo Deus! Mesmo com uma katana afiadíssima prestes a descabeçar o maluco, ele continua nos provocando. Deve estar bem confiante de que é mais forte que a gente para estar com essa postura marrenta.

— Erick! Já chega! Mais uma palavra e eu mesma deito você no soco! — ruge Lena com um “se liga” na cabeça dele.

— Argh! Droga, Lena! De que lado você está?!

— Queira nos perdoar pela postura do nosso colega. Ele é bem... — Ela faz uma pausa, talvez procurando um adjetivo que melhor substituísse “pau no cu”. — Enérgico em suas abordagens e acaba por se precipitar.

“Pau no cu” ainda seria melhor.

— Desencana — digo enquanto Sashi recua, embainhando a katana. Os dois personas fazem o mesmo. — Eu bem que tô acostumado.

— Quanto à suas demandas, nós realmente não sabemos — admite a maga. — Só recebemos ordens de leva-lo até a central, mas não temos qualquer informação sobre o teor da reunião. Eu juro que é verdade. Quanto ao senhor Charles, quem poderá lhe dizer mais é a chefe.

Erick revira os olhos, mas mantém a boca fechada. O urso solta um grunhido. Aliso o queixo, pensando, pensando... Acho que eu posso muito bem confiar nela. Se o do martelinho resolver inchar muito, é só apagar ele. O urso não parece ter muita coragem pra fazer nada, então posso ficar tranquilo quanto a ele.

— Bom... bem que eu poderia ir, mas tem um problema...

— Que problema?

— É que eu estudo nessa universidade e, ultimamente, eles não tão deixando ninguém sair, nem entrar. Quem ficou, ficou. Quem foi, foi.

— Ah, mas isso não será um problema — Lena ri. Eu e Sashi nos entreolhamos antes dela continuar: — Você vai permanecer na faculdade de todo o jeito.

— É, mas eu acabei de acor... dar... — Um cheiro muito forte atinge minhas narinas como um soco. O mundo começa a capotar ao meu redor.

— Bons sonhos, Calebe. ♪

 

 

*****  *****

 

 

Ao abrir os olhos, me toco que já está de noite. Todos os personas sumiram e levaram a Sashi embora. Malditos!

Eles pensaram que me apagando, conseguiriam, automaticamente, me colocar dentro do meu persona. Isso prova o que Charles disse pra mim sobre o meu dom: Uma incógnita.

Agora eu tenho que tentar dormir — não sei como — para tentar me conectar com a Sashi de novo, onde quer que ela esteja. Aproveitando que eu já estou na cama, começa a meditar. Relaxar a mente, os músculos... relaxar, relaxar, relaxar.

Por mais que eu esteja relaxado agora, o sono é zero! Droga! Já tinha passado um bom tempo dormindo de manhã e depois fui apagado de novo. Levaria horas para que eu sentisse algum traço de sono de novo. O que eu faço? O que eu faço?

— Merda! Não tem como eu adormecer! Será que eu tento me apagar? Será que...? — Ao me levantar de uma vez, o dedo mindinho vai bem na quina da estante da tv, afundando meu dedinho uns dois centímetros pra dentro do pé. — Aaaaarrghhh!! Merda, porra, caralho, bu...!

Só que, mesmo cego com a dor, uma coisa me chama atenção ao olhar para a mesa. Um troço pequeno, meio escondido no meio das caixas, livros e tralhas que eu costumo largar ali em cima.

— Isso é... urgh!

O remédio para dormir da Emma! Não acredito que ela deixou isso aqui! Quase como se um pilar de luz descesse sobre o pequeno objeto, eu o encontro no meio da bagunça. O meu passe para o corpo da Sashi!

Nunca tomei algo assim e, sendo a primeira vez, não sei se vai haver algum efeito adverso ou não. Um remédio controlado daquele pode me causar algum mal..., mas que outra escolha eu tenho? Por via das dúvidas, pego só meio comprimido.

Com um gole de água, eu tomo o remédio e então deito na cama, praticando a meditação. Pouco a pouco os efeitos do remédio vão surgindo. Os músculos acalmam, a respiração fica mais e mais lenta. Como se eu pudesse passar uma borracha na minha mente, um branco dá lugar a inconsciência, projetando a última coisa que mentalizei em meu estado consciente.

Sashi! Tô indo!

...

Acordo com um balançar enjoativo enquanto minha visão é de um piso de mármore xadrez brilhante, refletindo a luz de lustres espalhafatosos. Estou sendo carregado pelo urso falante enquanto que Erick discute com Lena sobre como enrolaram para me trazer por culpa das táticas mais “diplomáticas” da persona maga.

Assumir o corpo da Sashi de forma tão abrupta por causa do remédio me causa algumas náuseas e pontadas na cabeça. Deve ser algum efeito colateral. Nada que eu não possa suportar.

Sashi? Sashi? Você ainda tá aí?

Calebe? Como você...?

Eu tomei o remédio que a Emma usa para dormir.

Por isso eu tô me sentindo tão... tão... tooonta?

Você está bem, Sashi?

Tô com... sono. Muito... sono.

Será algum efeito colateral do remédio também? Sashi?

Ca... lebe. Vou... só... tirar... um cochi...lo... Zzzz...

Sashi? Sashi?!

Sashi dormiu? Isso é mesmo possível? Isso significa que agora sou eu no corpo dela, sem sua ajuda. Um simples universitário em um corpo de uma menina samurai megapoderosa sem qualquer tipo de técnica. Parabéns para mim.

Como eles parecem não se tocar que acordei, me mantenho assim e tento obter o máximo possível de informações de onde estou e sobre eles. Infelizmente, nada de muito relevante é dito além de que não estamos mais em Morro Branco.

Estamos em um prédio no coração da grande São Paulo! Porra, por que tão longe?! Nem fodendo que eu teria como ir e volta de São Paulo sem que ninguém percebesse.

— E então, o que acham que a Nadia vai fazer com ele? — Erick pergunta em algum momento da conversa. — Quer dizer, olha que sujeito estranho. Um cara desse não pode ficar livre por aí, fazendo o que quer com um poder desse.

— Ela não pode fazer nada a menos que o senhor Charles dê permissão — pondera Lena. — E com certeza vai sobrar pra gente se formos interferir nisso.

— Mas se ela julgar que ele pode ser perigoso para expor o Mundo dos Sonhos e nós, a Nadia pode prendê-lo sem o consentimento do senhor Charles — adiciona o urso, com certo temor. — O que será que o Diretor iria pensar sobre um cara que tem um persona que pensa por conta própria. Já imaginou a bomba-relógio que apareceu nas nossas mãos?

Prender?!

— Já que o Charles tá ausente e não se pronuncia sobre nada faz algum tempo, a assessora dele tem carta branca pra fazer o que quiser — comenta Erick. — Duvido que ele iria se posicionar sobre qualquer decisão sobre aquele merdinha.

— Bem... isso, vamos saber agora.

Nós paramos de andar de repente. Até agora estou me segurando para não despejar aquele galeto que comi no almoço em cima do pelo perfeitamente escovado do Teddy Bear.

— Licença! Estamos entrando, Nadia! — anuncia Lena.

— Podem entrar — responde outra voz do outro lado.

Assim que passamos da porta é o momento que escolho para pôr meu plano de fuga em ação. Giro o corpo e desço uma cotovelada no que seria a nuca do urso, arrancando um grunhido dele enquanto caio rolando no chão. No meio da manobra, eu saco a espada e as chamas violetas aparecem ao mesmo tempo que minha arma deixa a bainha.

Caralho, que massa! Tô que nem aqueles prota maluco de filme de ação japonês!!

Mas Erick não me dá tempo para sonhar e já pula pra cima de mim para me atacar com aquele martelinho de criança tamanho família.

Martelinho Martelão: MARTELAumentar!

A área do martelo aumenta e, na mesma hora, em um pensamento de um instante, decido trocar de defender pra esquivar e salto para trás, escapando de ser esmagado como uma barata.

Caralho!

O ataque acerta o piso perfeito de porcelanato brilhante, detonando uma boa área circular e deixando rachaduras horríveis correndo por todo o espaço próximo, tanto no chão como em pilares e paredes. Porra, que golpe pesado! No mesmo instante que ele acerta o chão, gira o martelo nas mãos e me acerta um golpe no meio do ar, como se rebatesse uma bola de tênis, e me joga contra a parede com violência.

Consegui bloquear o golpe sem maiores problemas, mas não estava esperando um ataque com tamanha força e velocidade. Que martelinho enganoso! Só que agora eu não consigo me mexer e sair de dentro da parede onde estou enterrado.

Merda! O que é isso?!

Uma aura roxa está circulando meu corpo, impedindo meus movimentos, me prendendo na parede. Está vindo da maga Lena lá atrás, a qual está com um livro flutuante aberto, as páginas sendo folheadas rapidamente com um vento sobrenatural.

O urso e o projeto de Chapolin me cercam e se preparam para me trucidar ali mesmo. Aparentemente não tenho como ganhar deles sem a Sashi! Que plano de merda, hein?!

— Já chega! — Uma voz feminina poderosa e imponente se faz ouvir dentro da sala, reverberando, nos envolvendo. — Todos parados.

Erick e o urso recuam. Lena cessa sua magia e os três se viram para uma figurona que vem andando pomposamente até nós, vinda do alto. Uma passarela vai se montando na frente dela, criando um caminho para ela descer dos céus, tal qual uma deusa, como se todo aquele lugar existisse para servi-la.

Essa sabe como fazer uma entrada.

— Então você é o Calebe — A voz dela é calma e etérea. Dá a impressão de que estou falando com alguma entidade. — O Fictor que tem se tornado cada vez mais famoso por aqui.

— É... não sei se isso foi um elogio, mas se tiver sido, obrigado.

Ela pousa no chão, as cerâmicas se dispersando e voltando aos seus lugares de origem. Eu tenho noção de que Nadia é seu nome real, mas o que vejo na minha frente é seu persona, assim como todo aquele lugar só podia ser parte de algum campo lúdico.

Se eu descobrir o fio onírico que sustenta esse lugar, é só partir para conseguir escapar. Até descobrir — e essa é parte difícil do negócio — a melhor decisão que posso tomar é ficar quieto e acatar tudo que eles disserem.

Em um primeiro momento, o persona de Nádia não parece tão diferente de uma pessoa fantasiada, assim como Lena e Erick. Sua roupa se resume à um vestido branco, com detalhes pretos e dourados, comprido e luxuoso; uma capa de plumas brancas cobrindo seus ombros, me lembra as asas de uma garça. Pedras brutas e roxas brilham em brincos, entre suas tranças negras. Sapatilhas com uma fileira de pedras preciosas enfeitam seus pés que lembram pés de boneca.

Seu olhar, os olhos de um azul sobrenatural, é calmo e avaliador.   

— E então, você é Calebe ou a Sashi? Com qual dos dois eu falo?

Ela sabe mesmo sobre a gente. Charles deve ter caprichado no relatório.

— Sou eu, Calebe — respondo. — Como vocês estão querendo falar comigo, Sashi e eu trocamos.

— Trocaram, né? Hum, interessante. — Ela olha para os três paus mandados emparedados e ordena: — Nos deixem a sós por um momento.

— Certo. — Eles dizem ao mesmo tempo e saem por uma porta que surge magicamente no pilar bem ao lado.

A porta some pouco tempo depois.

— E então? O que quer falar comigo?

— Há tantas coisas que eu gostaria de falar com você, mas há uma questão mais urgente e que acho que é de seu interesse, o que seria um bom tópico para iniciarmos nossa pequena conversa.

Enquanto eu sigo ela pela passarela de pedras flutuantes e polidas, a altura me dá um panorama mais amplo daquele lugar.

A sala de Nádia me lembra um hall de um castelo ou um palácio pomposo de algum rei ou imperador. Mas também é só isso; nada de mobília, decoração... nada de nada. Só pilastras brancas e gigantes enfileiradas, chão e um teto que parece se estender ao infinito, não importa o quanto subamos.

Duas cadeiras de pedra se montam sozinhas no ar, feitas da porcelana e das pedras dos pilares ao redor, reunidos e remodelados. Ela faz um gesto, me convidando para sentar. Engulo em seco e procuro só focar na cadeira de pedra flutuante ao lado. Me esforço para esquecer o fato de estarmos a vários metros do chão em cadeiras voadoras sem nenhum sinal de terra firme à vista.

Outro dia normal, Calebe. Só outra porra de dia normal! Nada demais!

E então? Que assunto é esse que você diz que é do meu interesse? E onde está o velho? Ele que manda nessa bagaça toda e não comparece à reunião? Deve estar por aí caçando mais problema pra eu ajudar ele a...

— Calebe — interrompe Nádia, seus olhos se endurecendo.

—...? O que foi?

— O Francisco está entre a vida e a morte.

 



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