Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 1 – Arco 1

Prólogo: Recordação Sombria

Eram dias calorosos. Fragmentos de um passado não muito distante, porém, guardados no fundo de uma alma brilhante envolta por uma camada cinza de solidão e melancolia. As passagens se misturavam aos diversos sentimentos que brotavam repentinamente em seu coração, como cores, formas, sorrisos e palavras. 

A pequena garota de cabelos longos e escuros corria no gramado verde vivo, sorridente, enquanto era perseguida por um senhor grisalho que soltava gargalhadas. Ele a elevava no ar, segurando-lhe pela cintura, e rodopiavam. As risadas se misturavam. O sol quente e luminoso banhava seus corpos. Porém, a luz era tamanha que a garota se percebia incapaz de reconhecer o rosto do velho.

Foi então que a memória se desfez com luzes semelhantes a glitchs, retornando com outras vozes e uma cena diferente, porém conhecida.

Um garoto de cabelos violeta estava lá. A imagem era mais nítida, o que lhe permitia diferenciá-lo das demais pessoas. Na primeira cena, ele estava sentado no chão, abraçando as pernas, escondido. Ele erguia um olhar cinza, sem vida. Um clima sôfrego e vazio parecia sufocá-los. Era como uma carcaça sem alma ou propósito. 

Então, a cena mudava com o brilho falho novamente, desaparecendo como uma estática, e surgindo um fragmento de memória que fazia seu coração disparar. Agora, o garoto sorria mostrando os dentes, alegre, com as bochechas avermelhadas de tanto correr e brincar, como se tivesse voltado à vida. Os olhos cinzas agora brilhavam, ganhando um tom mais voltado ao prateado. Eles a encaravam, refletindo sua imagem, conforme as duas crianças, de mãos dadas, brincavam juntas.

De súbito, percebeu estar sentada em um lugar quente e envolta por alguma coisa. Podia sentir pequenas e suaves batidas em suas costas. Batidas de um coração. Sentia-se acolhida, tranquila... E amada. Foi abraçada por alguém, que sussurrava palavras de carinho incompreensíveis. A mulher encostou a cabeça em seu ombro e, ainda com os braços envolta de seu pequeno corpo, abriu um sorriso...

"Eu te amo."

... Antes de tudo escurecer e esfriar, com a pequena garota sendo colocada de frente para a dona da voz. A cena mudou completamente. Estavam abraçadas, quase da mesma forma, mas a jovem criança estava horrorizada com o que cobria os dois corpos. Manchas pegajosas e vermelhas se espalhavam pelas roupas. O calor do corpo da mulher que a abraçava se esvaía. A garotinha soluçava, sem ar ou qualquer compreensão do que estava acontecendo.

Mas antes de tudo acabar, os cabelos loiros da mulher escorregavam pelo ombro. Era uma cena que já sabia como terminava, mas jamais se acostumava a presenciar. Um último e frio suspiro seria disparado. Os olhos, já estreitos, lentamente começaram a se fechar. Um fio vermelho de sangue escorria pelos lábios que se curvavam.

"Agora, tudo vai acabar."

A boca dela se alargou de forma medonha, num sorriso torto e aterrorizante. 

***

A primeira coisa que viu ao abrir os olhos foi um teto de madeira branco razoavelmente iluminado. Uma luz fosca e azulada transparecia pela cortina ao lado esquerdo da cama, clareando um pouco o pequeno quarto. Ainda com a visão embaçada e a estranha sensação de estar entre um sonho e a vida real, a garota, sentando-se bruscamente, levou o braço pesado ao ombro direito. O calor que havia estado ali desaparecera completamente.

"Eu te amo."

Ela soltou um som baixo e rouco da garganta, esfregando os olhos com a mão livre. Podia sentir seu corpo receber pulsações fortes, lhe causando tremores nos dedos, mandíbula e pernas. O som de seus dentes batendo uns nos outros era perturbador.

Algo frio e pegajoso escorreu por suas costas e rosto. Era suor. Um suor frio e viscoso indicava a tensão que seu corpo estava sentindo desde que acordara. Não somente pela fadiga que deixava seus braços e pernas entorpecidos, mas também por não conseguir falar. Não importava o quanto tentasse, sua voz mal saía ou soava rouca. Um calor intenso a percorria, principalmente no rosto. Podia garantir que suas bochechas estavam vermelhas pela ardência que as preenchia.

Seria o início de uma febre? Talvez a pressão tivesse baixado durante a noite nublada. Ou, ainda, fossem sintomas de um pesadelo sombrio e que lhe causava enjôo só de tentar relembrar.

Precisava se acalmar, ou continuaria a se desgastar, cada vez mais, até retornar para aqueles dias. E a última coisa que precisava agora era lidar com o inferno. Então, implorando mentalmente por paz, respirou fundo, buscando relaxar. Pensar em coisas diferentes, espairecer a pressão. Porém, o ar que saíra de seus pulmões era trêmulo, necessitado. Inspirava... Expirava. Inspirava... Expirava. Inspirava, expirava. Inspirava. Expirava. Expirava. Ela precisava inspirar de novo. Mas não conseguia. Estava arfando pela boca. Pedindo por socorro em silêncio. Tossindo e se desgastando. Respirar doía. Pensar doía. Lembrar doía.

"Agora..."

A voz não saía. Não importava quantas vezes tentasse, o corpo se negava a lhe obedecer. Estava, inconscientemente, recusando-se a esquecer daquela sensação.

Era um sonho que vira diversas vezes. Quando fechava os olhos, voltava ao mundo brilhante e colorido que um dia viveu. Dias calorosos e alegres que eram revividos de novo e de novo, noite após noite, sempre terminando engolidos por sombras, manchas de sangue e solidão. A voz doce se tornava rouca e travada. O calor ia lentamente esfriando, até sentir o peso macio que a envolvia ficar completamente enrijecido, e o corpo sem vida pesava. A mente nublava completamente.

Mordeu os lábios secos enquanto se abraçava.

Queria implorar para que a deixassem em paz. Que lhe permitissem dormir uma noite. Queria ser capaz de descansar a mente sem ser assolada pelas memórias terríveis que a assombravam toda vez que tentava colocá-las de lado.

Era como uma maldição.

Aquela voz continuava a rodopiar em sua mente, como se pudesse tocá-la. Viva, quente, tátil, visível... Um grunhido. Então, ouviu-se um soluço alto e contido soar pelo cômodo pouco iluminado. O calor subia cada vez mais em seu rosto, fazendo seus olhos arderem e coração acelerar. Subia, lentamente, por cada membro de seu corpo.

Jurava que poderia morrer ali mesmo, somente com a dor que dominava o peito.

A lágrima escorreu lentamente pelo rosto, pendendo em seu queixo e caindo na coberta. A mesma que usava há anos atrás, quando ela ainda estava ao seu lado. A mesma pessoa que invadia seus sonhos e os transformava em terríveis pesadelos, como que a julgando por tentar seguir em frente. Por tentar superar. Porém, depois de tudo o que aconteceu...

Depois de tudo o que ela fez... De tudo o que ela não fez... Não merecia. Nunca mereceu.

Seu egoísmo a enojava.

Como se o corpo compreendesse a onda de sentimentos que a assolavam, dentre eles, a repulsa, disparou até o banheiro. Porém, não a tempo de vomitar o suco gástrico dentro da privada.

***

O dia iniciou tarde para Ryota. O sol da manhã começava a dar as caras e acordar todos os moradores do vilarejo, atravessando a janela e iluminando todos os cômodos da pequena casa de madeira. Em um deles, ouvia-se o som de algo caindo e uma névoa quente saía pelas frestas da porta. O espelho do banheiro estava completamente embaçado por conta da alta temperatura. Ao lado, alguém terminava de se banhar, lavando os cabelos e, em seguida, fechando o registro.

O som das gotas caindo nas pequenas poças soaram por seus ouvidos, mas ela não parecia reparar neles. Seus olhos encaravam a parede amarelada, perdidos em algum lugar longe dali. Pensamentos que não queria rondavam sua mente: Falando, sussurrando, comentando, prometendo, amaldiçoando, xingando...

Uma última gota caiu em sua cabeça.

Acordando do transe, a garota resfolegou alto. Percebendo que havia estagnado no banheiro, Ryota limpou os olhos com as mãos úmidas e decidiu sair do chuveiro. Enrolou-se na toalha e começou a se vestir.

Indo em direção ao seu quarto, fechou as cortinas azuis e se postou diante de uma pequena bancada branca com um espelho oval pendurado. Sem erguer o olhar, passou uma loção nos braços e reparou nos cortes e cicatrizes. Eram como linhas brancas e beges que, mesmo não doendo, ficavam bem expostas caso não as cobrisse. 

Então, lembrando-se dos machucados novos que conseguira durante o amanhecer antes de voltar para casa e se lavar, virou as palmas das mãos para cima. 

Arranhões profundos e ardentes marcavam a pele bronzeada. Os dedos semiflexionados tinham pequenas bolhas e calos nascendo, indicando que havia feito um uso frenético e quase que violento dos punhos e articulações. As unhas, curtas, estavam arranhadas.

Um sorriso sem emoção surgiu em sua face. Erguendo o queixo, encarou o próprio reflexo no espelho. Então, reparando nas profundas marcas abaixo dos olhos, juntou as sobrancelhas e torceu os lábios.

— Droga... — murmurou, tocando suavemente o rosto com os dedos. — Como eu sou... 

Patética.

Alguns minutos mais tarde, terminou de escovar os cabelos negros e lisos, que lhe caiam nos ombros. Do lado de fora da casa, escutou o canto dos galos indicando o início de um novo dia. Quase que ao mesmo tempo, vozes baixas começavam a se espalhar, dando vida ao lugar que antes estava em um silêncio quase que desesperador.

Apesar de já estar acordada há muito tempo - se é que podia dizer que havia dormido -, ainda sentia os efeitos da maldição que a atormentaram durante a madrugada. Somente pensar naqueles minutos de sofrimento que pareciam durar uma eternidade fez sua têmpora latejar.

Então, respirou fundo. Com uma das mãos no colo, levou ar ao pulmão pelo nariz, inspirando lenta e profundamente. Em seguida, expirou pela boca e se olhou no espelho mais uma vez, como que buscando coragem para encarar mais um dia.

— Hmm...

Puxou as próprias bochechas e fez uma careta, finalmente abrindo o sorriso que precisava mostrar a todos. 

— Beleza, vamos lá.

Em seguida, mantendo os lábios curvados e a serenidade no olhar, vestiu sua jaqueta vermelha radiante e saiu de casa.



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