Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 14: Fúria

Estava tudo escuro. Podia ouvir alguns sons, mas estavam tão longe que eram indistinguíveis. Sentia que estava quente, mesmo não tendo um corpo para "sentir''. A consciência estava se esvaindo. Havia perdido sangue demais.

Eu sou patética até morrendo.

Ainda se lembrava das risadas. Da voz… Não, das vozes das crianças que riam de forma gostosa enquanto corriam pelo campo de futebol. De como gostavam de pregar peças nela, e estudavam juntos quando tinham dificuldades nas matérias escolares. 

Foram dias felizes. Lembrava-se bem de quando Nessa, acompanhada de um tímido Ian, pediu para que ela se juntasse à eles no jogo, certa vez. Foi há quase quatro anos. Desde então, ela se aproximou deles, e era agradecida pelos pais com palavras e presentes. Ryota amava os biscoitos de manteiga que Nessa preparava.

Jaisen gostava de bagunçar seus cabelos quando se atrapalhava no serviço. Ele berrava alto, de braços cruzados, e fazia a cara mais assustadora do mundo. Mas, depois, acabava fazendo um belo jantar, assando as suas carnes favoritas. Ele a ensinou a cozinhar, quando ainda bem pequena, e Ryota aprendeu a se cuidar. Tornou-se independente.

Sua mãe, Stella, tinha lhe ensinado a ler e escrever.

É mesmo… A mamãe…

“Muito bem, Ryota. Agora que você aprendeu a ler e escrever, pode fazer qualquer coisa. Lembre-se sempre de aprender o máximo de coisas possíveis, e retribua a todos pelo conhecimento que recebeu. É com a experiência, sua ou a de quem repassou, que se aprende a viver.”

Sentadas na pequena sala, durante o inverno, abraçadas, elas liam livros. Emprestavam os dos vizinhos, não importava o conteúdo, apenas para estudarem e passarem o tempo. Stella a ensinou a amar o aprendizado e a repassar a importância dele. 

A pequena Ryota fazia bolos todos os anos para a mãe, em seu aniversário. Ou tentava. Ela cuidava das flores dos vasos, e - tentava - ajudar a limpar a casa durante os finais de semana. Sempre cumprimentava os vizinhos, como foi ensinada, mas de um jeito energético e exagerado demais. Seu sorriso meigo era adorado por todos.

A mamãe sempre foi minha heroína. Ela sempre foi muito forte, era linda e inteligente. Mas, além disso tudo… Tinha um coração enorme.

Os cabelos louros e curtos de Stella eram seu charme, assim como seu largo e caridoso sorriso. Ela era meio desastrada, e, como uma mãe solteira, se esforçava ao máximo todos os dias para dar à filha o melhor que podia. Mesmo que se irritasse, mesmo que chorasse sozinha às vezes, mesmo que pensasse coisas ruins em momentos difíceis… Ela nunca desistiu. Porque tinha o seu pequeno sol, e ela era o seu motivo para continuar a viver.

***

Parecia uma manhã como todas as outras, mas não para a pequena Ryota. Ela, que havia acordado antes de sua mãe e preparou a mesa do café como podia, estava ansiosa. Até o almoço, receberia a visita do avô Albert, que viajava da capital de Thaleia, Hera, até o vilarejo Aurora apenas para vê-la.

— Pequenina!

— Vovô! 

Risadas ecoaram pela casa quando um velho apareceu na porta com o maior sorriso do mundo e abraçou a garotinha.

— Aaah… Você já cresceu tanto! — choramingou ele, com lágrimas nos olhos.

— Eu fiz um bolo de cenoura ontem! Sozinha… Eh, quase.

Assim que recebeu um olhar afiado da mãe, de braços cruzados, Ryota abaixou o tom de voz e se corrigiu, apenas para ser erguida no ar pelo velho.

— Sério?! Que legal! Vou comer tudinho!

— Está mimando ela de novo, Albert.

Albert torceu as sobrancelhas para o apontamento de Stella.

— Aaah… É só um pouquinho… Não vai fazer mal.

— É o que o senhor sempre diz… Hm?

Rindo enquanto balançava a cabeça para a atitude boba do velho, Stella se surpreendeu quando uma segunda figura se esgueirou na porta. Era um pequeno garotinho de olhos cinzas profundos.

— Olá.

Se ajoelhando para ficar na altura dele e sorrindo, Stella tentou falar com o pequeno, que se retraiu e escondeu-se novamente. 

— Aaah, vamos Zero, não seja tão tímido. Venha, apresente-se para minha netinha… Ah! Espera!

Ao ser colocada no chão, a pequena Ryota voltou seus grandes olhos azuis para as costas do garotinho que fugiu para longe. Albert inclinou a cabeça, coçando a bochecha.

— Achei que ele pudesse se distrair um pouco com alguém da mesma idade, mas… Aaah. 

Ao suspiro do avô, Ryota piscou algumas vezes antes de abrir os braços:

— Vou convidar ele pro almoço!

— Aaah, sim, sim. Faça isso, minha pequenina.

Recebendo o apoio do avô e o consentimento da mãe, Ryota correu porta afora e não viu quando os dois fecharam a porta e iniciaram uma séria conversa.

— Achei!

Após procurar durante algum tempo, Ryota logo localizou o garoto sentado atrás das pilhas de fenos. A passos lentos, ela se aproximou. Ele estava abraçando as pernas, olhando para a frente. 

— Oi! Ah, oi? Tá me ouvinduuuu?

Se agachando, após falhar em chamá-lo, sacudiu a mão na frente do rosto dele, esperando uma reação. 

— … Uh.

— Ah! Agora sim! Você me olhou direitinho! — Ao segurar o rosto dele com as mãos, ela o ergueu, forçando-o a encará-la. Até que a garotinha deu um suspiro de surpresa e admiração. — Caramba! Seus olhos são lindos! Aaaah, é a primeira vez que vejo alguém com olhos assim!

Diante da fala dela, que parecia sincera até demais, o garoto arqueou as sobrancelhas, mas não recuou quando ela o soltou. 

— Ei! Quer ser meu amigo? Qual o seu nome? Ah, espera, calma, eu ia te convidar pra almoçar lá em casa hoje! Tem bolo de cenoura de sobremesa e eu mexi a cobertura! Mas não conta pra mamãe que passei o dedo na massa antes, tá?

Ryota pôs o dedo indicador na frente dos lábios, rindo baixinho de forma sapeca.

— … Zero.

— Hm?

— M-Meu nome… É Zero.

Após um brilho momentâneo surgir nas íris do garoto, assim ele a respondeu com uma voz rouca após tanto tempo sem falar. Porém, Ryota, que não sabia disso, apenas abriu um sorriso ainda maior e segurou sua mão.

— Zero? É um nome bem esquisito e diferente, mas eu gostei. Isso te faz especial, né? Ao menos é o que a mamãe me disse.

Colocando-se de pé, Zero estremeceu quando as mãos dos dois se apertaram um pouco mais e ele foi puxado às pressas de volta para a casa.

***

O som da lâmina escorregando entre os dentes tiniu. Sora resmungou baixo enquanto empurrava a grande boca com suas últimas forças. Não estava ferido ou cansado, mas aquele era o golpe mais forte dado pela coisa até então. Era a primeira vez que conseguia tocar diretamente a névoa.

— Acorda logo, idiota! Você não prometeu um encontro com seu outro amiguinho idiota lá na mansão?!

Numa tosse contida, Ryota riu enquanto abria os olhos.

— … Você e a Kanami são dois cara-de-pau, mesmo.

Sorrindo para a atitude descarada por saber uma informação particular, a garota inclinou o corpo levemente para a frente, e agarrou a pressa afundada na sua coxa.

— Namoral, eu já cansei de ficar sangrando dois dias seguidos. Então me solta logo, mano!

Ao grito de raiva dela, seu braço esquerdo tremeu com as veias saltando e o dente saiu na força bruta. Sora arregalou os olhos para a cena, e percebeu que estava bem mais fácil para empurrar, agora que estavam em dois.

Apertando ainda mais a mão na névoa sólida, uma pequena fumaça começou a subir. A mão dela estava quente. Não, estava pegando fogo. E então, como se uma quantidade absurda de calor tivesse sido concentrada em um só lugar, o dente começou a derreter e se desfazer.

Ao redor, a névoa diminuiu de tamanho e foi se dissipando conforme Ryota se erguia e empurrava com os pés aquilo para trás. Foi com um só corte da faca kukri de Sora que ela desapareceu completamente no ar.

Expirando com dificuldade, Ryota tentou erguer a mão esquerda e arregalou os olhos para o tom amarelo da sua palma. Lembrava algo como lava, mas mesmo tão quente, não doía. Era estranho, mas pouco a pouco a pele começou a voltar ao seu tom avelã natural conforme ela se acalmava.

Se não me engano, aconteceu um negócio parecido quando lutei com o Sora…

Os cortes e golpes, em algum ponto da luta, começaram a queimar com a velocidade alcançada.

— … Ah.

— Aguenta aí. 

Após colocar-se de pé, acabou cambaleando e recebeu de vez todo o cansaço do corpo. Mas, antes mesmo de cair, Sora prontamente a segurou no ombro, passando o braço por trás dela. 

Um pouco zonza, Ryota apenas assentiu, e acompanhou o guardião a passos lentos para um pouco mais longe.

— Parece que a coisa se acalmou… Eu acho. Hã?

Foi só quando passaram ao lado do filhote que perceberam. Ele não estava mais se movendo, e não parecia respirar. Um suspiro pesado escapou dos lábios do rapaz, que apenas decidiu seguir em frente sem mencionar o ocorrido para a outra.

— Precisamos nos encontrar com a madame Eliza o mais rápido possível. Ei. Não fica escorregando desse jeito, senão eu te mato de vez, entendeu, Ryota?

— … E não é que você me chamou pelo nome agora? — sussurrou ela com dificuldade.

Alguns instantes depois, estavam de frente para uma das únicas árvores ainda intactas da região. Antes de tocá-la, Sora esticou os dedos de ambas as mãos e aguardou a mudança de forma das duas facas kukri para anéis com listras azuis. Um símbolo de floco de neve piscou na madeira.

— Aguenta aí. 

Um clarão repentino surgiu antes da dupla desaparecer.

***

Os passos dela ecoavam pelo extenso corredor. Ao seu redor, algumas empregadas andavam rapidamente de lá para cá, fazendo os preparativos. 

— Sigam para os fundos da mansão e usem a saída de emergência. Nos encontraremos em breve.

Assim disse Fuyuki para algumas dessas pessoas, que assentiram meio nervosas e dispararam para longe. A notícia de que algo ruim estava acontecendo já havia circulado e todos estavam cientes do perigo. A duquesa passou para garantir que todos estavam indo na direção correta. Não queria que houvessem feridos ou possíveis reféns.

Num suspiro pesado, olhou pela janela para a floresta. Havia muita névoa, tanta que parte dela subia pela copa das árvores. A mansão já tinha começado a ser envolvida por ela, e a temperatura havia despencado de repente. 

— Mas isso não é um problema, é claro. 

Fuyuki não sentia frio e nem tinha problemas com o calor. 

A duquesa acelerou o passo e chegou até as escadas, indo em direção ao terceiro andar. Precisava garantir a segurança, pelo menos, daquele quarto.

— Uééééé? Tá indo onde, princesinha?

Pedaços de vidro voaram quando algo explodiu na janela, e Fuyuki apenas deu um pulo suave para trás. No entanto, aquilo não impediu que a bola de ferro espinhosa voasse na sua direção. 

— Como sempre, lhe faltam modos, não é mesmo? Não me recordo de permitir sua entrada em minha propriedade…

Os olhos esverdeados de Fuyuki se estreitaram para a arma completamente congelada no ar, assim como a corrente segurada pela garotinha.

Um largo e bizarro sorriso se formou no rosto dela.

— … Insanidade.

— Ah, há! Já faz um tempinho, néééé? Tava morreeeendo de saudades dessa sua carinha fofa!

Assim riu Mania, puxando a corrente com força de volta - instantaneamente, o gelo se estilhaçou. 

— Então, Princesa do Gelo… Será que conseguiu mudar o seu destino depois de um ano? Ah, há, há, há, há..!

Ao comentário da garotinha que riu alto, Fuyuki torceu o rosto numa face de pura fúria, e a mansão começou a tremer e congelar.



Comentários