Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 2 – Arco 2

Capítulo 8: Sangue sob a Lua Azul

Quase tropeçando num galho, continuou a disparar pela densa floresta. Suas roupas eram rasgadas e seu corpo começava a sangrar após sua pele ser cortada pelas árvores. Procurava desesperadamente aquele lugar. Um forte cheiro de queimado invadiu suas narinas e ela sentiu vontade de vomitar. Não, não era só de algo queimado... Era carne queimando. Carne humana.

Quando a escuridão clareou, os corpos e o fogo também surgiram em seu campo de visão. Os gritos ecoavam na sua cabeça, de novo e de novo, como um disco riscado que se repetia. Como unhas no quadro negro que fincavam em sua mente. Ela gritou e chorou. As lágrimas se tornaram sangue quando o corpo da mulher e do homem forte caíram no chão a olhando com desespero, murmurando algo que a fez berrar ainda mais.

Até que uma garotinha se postou na sua frente com um grande e demoníaco sorriso. Sua risada e olhos dourados estavam adentrando cada vez mais em sua mente... Até que...

***

Desta vez não foi um grito, mas uma tentativa que resultou em uma série de arfos roucos. Ryota limpou o suor da testa e arrumou sua postura na cama. Estava sentada havia algumas horas, tentando dormir. Deitar era um ato que a estava deixando desconfortável por algum motivo, e sentar parecia muito melhor... Quem ela queria enganar? Seu sono estava terrível, os horários completamente quebrados e sua mente parecia um turbilhão prestes a explodir.

O suor escorria como se alisasse sua pele. Seu corpo estava quente demais... Ela precisava de ar. Agora. Ryota cambaleou na direção da janela, e quase sem forças, a abriu, mas o vento não veio. Estalou a língua e praguejou a estação em que estavam antes de colocar os chinelos e se arrastar até a porta.

Sua cabeça doía. Seu corpo doía. Não queria pensar. Não podia pensar. Só tentar fechar os olhos fazia sua pressão baixar. 

— A... Maldição... 

Quando saiu para o corredor, não estava fresco o suficiente. Ela rastejou pelos corredores e olhou através das janelas da mansão, admirando a noite. Deveria ser madrugada naquele momento, pois ela tinha voltado ao quarto logo depois de conversar com Fuyuki e com Jaisen já bem tarde da noite.

— Ah, merda, eu não sou de falar essas coisas, mas... Pro jardim... Hã?

Enquanto pensava num jeito de sair - já considerando pular a janela -, viu uma movimentação que a fez parar. Ela precisou limpar os olhos para distinguir a figura que tinha visto passar às pressas pelo gramado e sumir na mata.

— ... Kanami? Será que aconteceu alguma coisa?

Considerando a possibilidade, Ryota tentou correr para o andar de baixo, mas logo percebeu que não estava em condições físicas para isso. Então, ela andou o mais rápido que pôde na direção do jardim. Ao chegar nas escadas, inspirou fundo, recuperando o fôlego, e colocou um pé no degrau.

— Aonde está indo?

A voz que a parou no corredor era fria e direta, e Ryota sabia muito bem de quem era. Não era alguém que gostaria de ver agora com a cabeça cheia, mas, mesmo assim, se virou na direção de Sora.

— Quero tomar um ar.

Ele a olhou de cima a baixo, analisando o pijama de inverno que usava.

— Ocorreu algum problema grave na sua varanda para precisar sair de seu quarto?

Ah, que maravilha. Ele não vai me deixar sair.

Era fácil deduzir aquilo só de ver a expressão séria e nada convencida de Sora.

— Como imaginei. Por favor, retorne aos seus aposentos imediatamente, senhorita.

— Olha, eu realmente preciso tomar um ar. Não me importo se vier comi-

Agora.

Ryota juntou as sobrancelhas, mas não recuou.

— Eu vi a Kanami indo pra floresta. Aconteceu alguma coisa?

Pela primeira vez em tempos, Sora fez uma expressão para Ryota que não era de raiva. Ao abrir um pouco mais os olhos estreitos, ele respondeu, caminhando em sua direção:

— Não é da sua conta. 

— Mas-

— Vá para seus aposentos, e isso não foi um pedido, senhorita.

Ficou claro pela distância que estavam qual era a intenção de Sora. Ele estava sério sobre não ser só um pedido, era o aviso final. O gêmeo, ao contrário da irmã mais nova, tinha sempre uma presença forte e afiada, coisa que Kanami parecia esconder bem - houveram poucos momentos em que ela havia demonstrado alguma emoção, e uma delas foi no jardim, enquanto intimidava Sora a se afastar.

E Ryota soube por instinto que aquilo não acabaria bem pra ela se o enfrentasse. As habilidades dele estavam, pelo menos, no nível de Zero.

Então, suspirando, ela recuou o passo no degrau. 

E desviou do golpe com o braço que Sora lhe desferiu assim que lançou-se para o corrimão, escorregando para o primeiro andar. Embora o ataque não a tenha acertado, Ryota tocou o pequeno corte feito de raspão com as unhas do gêmeo, que ficou para trás.

Ou foi o que tinha achado, pois ele já estava lá embaixo num piscar de olhos, e avançou novamente de mãos limpas. Ryota escorregou por baixo dos braços dele novamente e, buscando ao máximo evitar um conflito, disparou para fora da mansão. 

— A senhorita não pode fugir de mim. Não nessa velocidade.

Ryota grunhiu alto quando tropeçou, ou melhor, quando os pés de Sora habilmente a acertaram nas pernas. Antes de seu rosto colidir com o chão, seus braços se apoiaram no solo e ela apenas deu uma cambalhota para frente, sentindo uma grossa gota de suor escorrer por sua têmpora.

— ... Olha só, Sora. Eu não quero brigar com você. É sério.

Que merda. Eu tô fraca demais pra lutar...Fora que bebi um monte de vinho! Agora ferrou tudo. 

No entanto, mesmo erguendo as mãos, o gêmeo continuou a andar em sua direção com os olhos estreitos. O salão principal do primeiro andar estava silencioso e escuro, sendo iluminado somente pela luz da lua vinda das janelas atrás de Ryota - logo ao lado da porta por onde tentou correr.

Faltavam poucos metros até o jardim. Se fosse capaz de fazer isso, não só estaria ao ar livre, como também poderia provar um pouco do seu valor para o guardião. Ryota não queria causar problemas para Fuyuki ou Zero enfrentando Sora. Ela não queria preocupar Kanami, que foi muito gentil com ela. Não queria mesmo, mas... Naquele momento, viu uma oportunidade de fazer Sora parar de importuná-la de uma vez por todas.

Mas, mais do que isso, podia sentir que ele sabia disso e não a deixaria sair.

Ah, que seja então... Se você quer vir, então vem pra porrada, otário!

Dando um sorriso lateral, Ryota provocou mentalmente o adversário e se ergueu, puxando as mangas de seu pijama. Descalçou os chinelos, tendo ciência de que só a atrapalhariam, e entrou em posição de combate ao cerrar os punhos.

Foi o suficiente.

A velocidade alcançada no impulso de ambos foi absurda, ao ponto de um som alto dos dois colidindo seus braços um contra o outro soar pelo salão. Quem atacou primeiro foi Sora, ainda de mãos vazias, mas traçando golpes com os dedos da mão unidos, como se tentasse cortá-la. Ciente da sua intenção, ela desviou ao máximo das investidas.

Segurando um dos pulsos dele, Ryota desferiu uma cotovelada no queixo do gêmeo e o afastou com um chute na barriga. Entretanto, aquilo não pareceu ser tão efetivo, pois ele logo contra atacou com um chute no alto. A perna dele fez um movimento elegante, como uma serpente veloz, e acertou o pescoço dela na lateral, a lançando para o lado. Bateu contra a parede.

— Aaai, essa doeu. — Ainda sorrindo, Ryota murmurou para Sora, que, para sua surpresa, devolveu o sorriso.

Erguendo-se e enxugando o suor no queixo, ela andou devagar na direção dele. Então voltaram a colidir, porém, desta vez, ambos passaram algum tempo trocando golpes limpos com as mãos e pernas. Ryota demorou um pouco para alcançar sua velocidade, mas, após uma sessão de defesa, um de seus socos atingiu em cheio o rosto de Sora.

Agora!

Percebendo que ele havia direcionado sua atenção para o ferimento no rosto, segurando o nariz com uma das mãos, e acabou se afastando involuntariamente por conta da força do golpe, Ryota correu pela porta.

— Ainda não!

Veio por trás e a derrubou na pequena escadaria para o jardim. Eles rolaram pelo gramado, acertando um ao outro, machucando seus corpos e roupas. Ryota tentou se erguer após ter a cara enterrada contra a grama, chutando o queixo de Sora. Foi quando um estalo altíssimo soou, e um arrepio de medo a percorreu. Teve a certeza de que tinha, no mínimo, fraturado o pescoço dele.

— Ah...

No entanto, Sora nada disse. Apenas virou os olhos vermelhos brilhantes e afiados em sua direção, arregalados. Um sorriso macabro se formava em seu rosto, unido ao pequeno feixe de sangue que escorreu de sua boca. Havia algo de diferente em seus olhos, mas ela não soube dizer o que - na verdade, não teve tempo para descobrir, pois lá estava ele tentando atacá-la novamente. 

Mas, desta vez, com algo em mãos.

Ryota segurou o pulso dele a tempo da lâmina somente roçar no seu ombro. Uma faca de combate.

— Opa, peraí, Sora...! Não precisa disso tudo! Aaaaaaaah! Seu puto!

Já estavam do lado de fora. Não havia motivo para continuarem a lutar ou ele sacar uma arma e continuar a forçar a faca na direção de seu ombro com um riso baixo, numa expressão de ansiedade e felicidade. E foi nessa cena que a faca kukri afundou em seu ombro direito, a fazendo gritar de dor enquanto a lâmina entrava lentamente na sua carne.

— Ugh! Sai de cima de mim, seu louco de merda!

Gritando com raiva, Ryota inclinou a cabeça para trás e atingiu a de Sora com a testa. Sim, ela deu uma cabeçada nele - e uma bem efetiva, pois o gêmeo caiu de costas e a deixou se arrastar, ainda com a faca encravada acima do peito e bem próxima do ombro.

Ainda querendo xingar, mas se sentindo mal, Ryota arrancou a lâmina com tudo e grunhiu com a dor. O sangue respingou e escorreu pelo seu pijama. Numa careta de mal-humor, ergueu seus olhos para Sora, que também tinha se posto de pé e voltou a andar em sua direção, soltando a mesma risada baixinha. Um pouco de sangue escorria pelo seu rosto.

— Ah, pronto, ele despirocou de vez. Ô Sora, já tá bom, não precisamos mais... Aaah, tá surdo, mano?!

Após se colidirem novamente, Ryota percebeu que não adiantava mais. Precisaria derrotá-lo, ou torcer para que Kanami aparecesse, ou que ele voltasse ao normal. Mas duvidava que qualquer uma das três opções acontecessem tão cedo.

— Só preciso ficar lon- AAAAAAAAAAAARRRRGHHHHHHH!!

Foi rápido demais. Sequer teve tempo para processar que ele tinha sacado a segunda faca kukri e direcionado a lâmina na direção de seu olho esquerdo. A visão escureceu completamente e uma dor agoniante a atingiu. Levada pela agonia, Ryota não teve dificuldade em afastar Sora novamente, atingindo-o com o cotovelo e dando um soco em seguida.

Ela caiu de joelhos, praguejando e gemendo. O sangue escorria cada vez mais. A visão direita estava desfocada e também ardia. Estava vendo tudo em preto e vermelho. Ou melhor, agora mal podia ver. Respirou entredentes, tentando não perder a consciência pelo choque. 

— ... Tá bom. Se você quer brigar a sério, então tá...! — Tapando o olho esquerdo com a mão e se erguendo de forma bamba, Ryota tentou ver onde Sora estava. Ainda podia escutar suas pequenas risadas, e lembrou-se de algo semelhante ter acontecido antes. Um riso diabólico e sangue manchando seu corpo. — Vê se não reclama depois que eu te quebrar todo, seu merda.

Sora estreitou os olhos, alargando o sorriso. Ele esperou pacientemente Ryota retirar a camiseta de manga comprida e rasgá-la, fazendo um tapa-olho improvisado. Descalça sob a lua azul, uma fúria fervente a atingiu quando, pela primeira vez, avançou para o combate. 

Garantindo que a primeira faca kukri estivesse longe dele, a garota não se importou quando a lâmina rasgou parte do seu braço direito - e novamente sentiu uma pontada forte no buraco do esquerdo -, mas segurou seu pulso de forma que pudesse fazê-lo derrubar a arma. 

Mas Sora não precisava delas para matar. Ele só precisava estar consciente. Seus olhos ainda tinham um brilho afiado e perigoso quando a adversária, desta vez, desviou de todos os seus ataques e devolveu na mesma moeda, o acertando com sua força absurda.

Socos, chutes, cotoveladas, e até mesmo golpes aprendidos assistindo Sora os realizar eram reproduzidos. Um deles, traçando uma marca preta no rosto quando golpeado com a lateral da palma enrijecida, causou uma queimadura instantânea em seu rosto.

Processando o novo tipo de dor causado pelos ataques velozes à flor da pele que traçavam queimaduras pretas ferozes por sua fúria, Sora riu em êxtase.

Ela deu um, dois passos na direção do rapaz rindo enquanto os ferimentos lentamente começavam a se curar. Mas isso não a intimidou, e nem a fez recuar quando o assassino praticamente surgiu na sua frente com um só salto.

— Basta.

A voz tiniu pelos ouvidos de ambos, e pararam. Um dedo foi apontado para a testa do gêmeo. E ele, ao ver a irmã mais nova o encarar com os mesmos olhos afiados, contorceu a risada num grunhido irritado.

— K-Kanami?

Kanami, ao virar seu rosto para a jovem surpresa, fez com que o brilho assassino de seus olhos retornassem para a versão dos sem emoção de sempre.

— Retorne para a mansão, Ryota. Você precisa cuidar desses ferimentos antes que seja tarde demais. E, sim, eu estou bem. — Ela interrompeu quando Ryota abriu a boca para perguntar o que já havia sido respondido — Vá.

Seus olhos passaram dela para Sora, que também tinha parado onde estava e havia retornado ao normal. Ele apenas abaixou o rosto e escondeu a expressão que fazia com a franja comprida. 

Agradecendo baixinho, Ryota apenas reverenciou rapidamente Kanami antes de voltar para a mansão.

***

Ela bufou, seca.

— A barreira está instável. A presença acabou desaparecendo na floresta, mas estou mantendo a mansão segura, como me disse, meu irmão. E o que você estava fazendo?

Como ele não respondeu, nem tentou olhá-la de volta, Kanami continuou:

— Enfrentando os outros desse jeito, achando que é superior a todos... Está perdendo a paciência fácil demais, principalmente ao usar aquilo. Você poderia tê-la matado.

Uma brisa fria balançou seus cabelos. Após ficar em silêncio por mais alguns segundos, e percebendo que ela não diria mais nada, Sora virou-se e sumiu num piscar de olhos. 

Kanami suspirou ainda mais alto e olhou para as manchas de sangue no jardim, pensando em como explicaria aquilo para a mestre no dia seguinte.



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