Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 3 – Arco 3

Capítulo 2: Treinamento

O grande jardim, com a grama um tanto esbranquiçada da geada que vinha caindo ao longo dos dias, se estendia quase que infinitamente aos olhos. Ao contrário daquela na antiga mansão, o terreno onde estavam se contentava em ser completamente plano e recheado de estátuas de pedra de animais — algo que deveria estar relacionado à cultura local, uma vez que era possível ver várias semelhantes na cidade.

Enquanto expirava o ar frio entredentes, Ryota semicerrou os olhos e se concentrou. Sentiu seus músculos se tensionando conforme um traço quente se espalhava por seu corpo, se direcionando para os braços, então para a mão, que lentamente ganhava calor e um tom amarelado brilhante.

Era um treinamento necessário em precisava se manter séria e concentrada. Precisava estar em um lugar silencioso, um lugar calmo…

— Então por que eu preciso ficar esquentando essa coisa, hein? Sasaki! Ei, não disfarça! — Ryota berrou para o mentor, que estava logo ao lado dela sentado numa pedra, tomando um cafézinho de uma forma irritantemente serena.

Ouvindo a garota, Sasaki balançou a mão livre sorrindo descaradamente.

— É apenas um treinamento super importante para que você possa externar seu chi sem qualquer interferência ou senso de perigo. Assim que conseguir, poderemos descobrir sua verdadeira natureza e como moldá-lo ao seu favor.

— E pra isso eu vou ficar o dia todo esquentando água pro seu café?! 

Sasaki abriu ainda mais o sorriso, inclinando a cabeça, apenas irritando ainda mais a garota. Embora ficar segurando uma chaleira com água não fosse o que esperava de um treinamento, Ryota jamais conseguiria admitir que estava funcionando. O poder atravessava seu corpo com uma facilidade impressionante quando se concentrava, mas o cansaço físico era intenso. Mais do que isso: Era como se fogo atravessasse suas veias, seu sangue, e então saísse pelos poros de sua mão. Talvez pela falta de costume, fazer um uso contínuo deixava seu braço extremamente quente ao ponto de seus dedos avermelharem.

Enquanto Ryota se concentrava, fitando a chaleira como se tentasse lê-la, Sasaki analisou o calor emanando da mão dela. A palma tinha tomado um tom amarelado, mas bastante fraco. Ela não tinha dificuldades em manifestar seu chi, o que era algo bom. No entanto, quando analisado com cuidado, era possível ver que isso causava tensão demais em seu corpo. Se apenas com isso suas veias já transpareciam na pele, ele nem conseguia imaginar em qual estado estava seu braço quando tinha usado Huo para explodir algo.

Os olhos negros dele se estreitaram quando percebeu algo ocorrer no objeto. Lentamente, sendo quase imperceptível aos olhos, o aço começava a derreter, encolhendo. A área tocada sequer deixava marcas de queimaduras, apenas afundava, derretendo e se desfazendo, até sumir como se nunca tivesse existido.

O treinamento de Ryota era feito na parte da manhã, com ambos acordando antes do sol nascer. Às vezes, alteravam os horários para que o mentor pudesse analisar com mais atenção possíveis mudanças na manifestação de chi de acordo com o horário, coisa que não ocorreu. Embora geralmente trabalhassem ao longo de quatro horas, a garota insistia em continuar, passando noites em claro em seu próprio quarto. Às vezes até já estando no local de treinamento durante a madrugada, surpreendendo Sasaki, que chegava bocejando para acompanhá-la.

— Não adianta tentar pará-la — disse Zero quando Sasaki chegou até a porta do jardim e o rapaz já a estava assistindo se aquecer com agachamentos frenéticos, contando baixinho. — A Ryota só vai se contentar quando puder fazer isso em um piscar de olhos. Ela fazia a mesma coisa quando treinávamos juntos. Acho que faz parte da personalidade dela não se deixar levar por qualquer coisa até que esteja completamente encurralada.

Os olhos prateados dele tinham um brilho gentil, indicando um sentimento que Sasaki conhecia muito bem.

— E? O que você tá fazendo aqui a essa hora? — ciciou Sasaki com um sorriso de canto, cutucando Zero com o cotovelo.

O rapaz se encolheu, desviando o olhar.

— E-Eu só… Só estava passando por acaso. Acordei cedo hoje.

— Ah, sim. Conta outra. — Zero o olhou feio, estreitando os lábios. — Fique à vontade para nos assistir “por acaso”. 

O curandeiro deu alguns passos para frente, então parou.

— Só acho que, enquanto continuar encontrando desculpas como essa, vai acabar perdendo sua oportunidade.

Zero travou por um momento, grunhindo inconscientemente. 

— Hã?

— Apenas um conselho. De um colega apaixonado pra outro.

Após sorrir — de um jeito bastante melancólico —, Sasaki caminhou até o jardim. Zero apenas os assistiu mais um pouco antes de dar meia volta e se afastar.

***

Ryota se jogou na cama. O corpo, embora cansado, já não estava se desgastando tanto. Já podia suportar sem problemas o aumento de temperatura corporal e esquentar água se tornou brincadeira de criança. Naquele dia, ela e Sasaki testaram algumas coisas diferentes, como tocar pedras e objetos variados. Todos eles derreteram consideravelmente após algum esforço.

Ela se sentou na cama, olhando para a palma da mão por um instante antes de caminhar até a janela.

Índigo… Foi disso que ela tinha me chamado?

Mesmo depois de todas as coisas que aconteceram, as palavras de Mania ainda rodeavam sua cabeça. Palavras chave como “Índigo”, “Entidade” e tantas outras pareciam estar, de alguma forma, conectadas. 

— Conectadas… 

A palavra a fez pensar em outra coisa, algo que viera evitando refletir há muito tempo.

Foi o vovô quem trouxe todos ao vilarejo. Ele nunca se importou com o passado de ninguém, mas foi embora logo quando a mamãe morreu. Será que ele… Sabia…

Ryota balançou a cabeça rapidamente. Não queria pensar sobre aquilo. Se houvesse a mínima possibilidade de Albert estar conectado com o atentado de Aurora… Ela não saberia como lidar.

Vovô… Você… Uh?

Seus olhos se arregalaram quando um calor de repente envolveu as costas de sua mão direita, ainda erguida no ar. Bastou um piscar de olhos marejados para que ela percebesse que os dedos de alguém envolveram sua palma.

— Você ainda está acordada? Se continuar assim, vai acabar ficando com olheiras de novo — disse Zero, sorrindo, surgindo magicamente ao seu lado. Ryota sequer reparara que ele tinha entrado no quarto. — Seus dedos estão gelados. Quer mesmo pegar um resfriado?

Embora fossem palavras de aviso que normalmente seriam ditas com um pouco de seriedade, a voz dele era suave. As íris prateadas do rapaz analisavam o rosto e a mão fria da garota, que continuava em silêncio.

— Você está bem?

— Sim.

Zero, ouvindo aquela resposta, balançou os ombros.

— Pode falar comigo sempre que precisar… Embora não seja algo que eu diga em voz alta com tanta frequência — disse ele, coçando o rosto, parecendo sem graça de admitir aquilo mesmo baixinho.

— Eu tô bem. Sério. Só estava pensando em umas coisas…

— Sobre o treinamento?

— Também. 

Os dois caminharam para a pequena e quadrada varanda do quarto, que ficava no segundo andar. Talvez não tivesse sido uma boa ideia, já que uma ventania fria os alcançou logo quando saíram. Percebendo que a garota estremeceu, Zero tocou os próprios ombros, no intuito de entregar-lhe o casaco casual que usava.

— Não precisa, valeu. 

— Mas…

Então, para a surpresa dele, ela se recostou contra seu ombro, fechando os olhos por um instante.

— Só sentir seu calor é o suficiente.

Ryota esfregou as bochechas contra o braço dele antes que este mesmo braço a envolvesse timidamente de lado. Ela fingiu não perceber o tom vermelho que tingiu a face e orelhas de Zero.

A noite estava bonita. Durante os invernos em Thaleia, o céu costumava ficar bem mais aberto que no verão. Era por isso que as estrelas pareciam brilhar muito mais naquele mar escuro acima deles? A meia lua no céu pareceu piscar por um momento.

— Estive pensando sobre o vovô — começou Ryota de repente, após uma longa pausa. — E me lembrei das coisas que o tio Jaisen disse antes, sobre ter sido convidado a morar em Aurora por ele.

Zero assentiu.

— E então… Aconteceu aquilo tudo, como se todos já esperassem por isso um dia. Talvez não da forma como foi, mas… 

— Uma punição, não é? — comentou Zero na ausência de palavras dela. 

— Não perguntei muito a respeito, e acho que nem quero saber, sendo sincera. Mas não consigo deixar de pensar que talvez o vovô… Soubesse desde o começo.

Ela não queria dizer “levou-os para lá de propósito para morrerem”. Albert sabia que haviam pessoas que se arrependiam de seus passados e que queriam recomeçar, mas que também já aguardavam um final infeliz, em algum momento. Que esperavam o próprio purgatório para vir julgá-los por seus crimes.

Ryota torceu os lábios para a ideia.

— Não quero acreditar nisso. Não quero. Mas… 

— Eu também não. — Zero baixou os olhos. — O Albert… O senhor Albert também me deu um novo lar. Foi ele quem me apresentou o vilarejo, quem me deu uma nova razão pra viver. Se lembra disso?

Ela assentiu, recordando-se perfeitamente de quando, certa vez, o avô viajara para vê-la com um arisco garoto de sua idade.

— Ele foi o único que me apoiou depois que perdi minha família. Depois que fui abandonado. O único que estava lá quando aquilo aconteceu e foi o primeiro a me ajudar a seguir em frente. A acreditar que eu poderia criar laços novos… Detestaria ter que odiá-lo por algo assim.

Com uma expressão triste, Ryota deitou a cabeça no peito do rapaz. Dali, de onde estava, podia ouvir perfeitamente as batidas de seu coração. As pulsações estavam um pouco mais rápidas que o normal, mas ainda eram calorosas e gentis. 

— Mas só vamos descobrir a verdade quando falarmos com ele — disse Zero, passando cuidadosamente o dedo por uma mecha rebelde dos cabelos dela, colocando-a no lugar.

— Sim. Desculpa por falar de algo tão ruim de repente.

Sem olhá-la, os dedos que estavam em seu rosto puxaram de forma brincalhona sua bochecha rosada.

— Tudo bem, não me importo. Prefiro que faça isso ao invés de ficar guardando tudo pra si mesma. Não que eu possa falar muito…

Ryota sorriu para a última frase sussurrada. Aos poucos, Zero também estava se soltando e falando um pouco mais sobre si. Sobre seus pensamentos e sentimentos, ao invés de somente ouvi-la quando chegava ao limite, passando a mão por sua cabeça. Era um ato que a garota apreciava muito, mas que, após todos os acontecimentos, ela desejou poder retribuir e evitar ficar sempre preocupando os outros por puro egoísmo e orgulho frágeis. 

— Obrigada — ciciou ela em resposta. — Por me ouvir e por me deixar te ouvir. 

Ela sentiu que o corpo dele enrijeceu.

— Não é chato me ouvir falar?

— Claro que não. A chata sou eu por sempre ficar reclamando no seu ouvido.

— Isso não é verdade.

— É sim.

— Não é não.

Ryota riu.

— Somos dois chatos que não sabem reclamar, então. Feliz?

— Aceitável.

— Esqueci de perguntar antes, mas você queria falar algo comigo? Digo, hoje você veio me ver no meio da noite, e tal… Não é a sua cara. 

Ryota ergueu o rosto, ainda olhando a paisagem, sentindo o queixo dele roçar no topo da sua cabeça.

— Nada em particular.

— Mesmo? Vou ficar brava se estiver mentindo.

— Não estou mentindo, besta. 

Percebendo-o hesitar por um momento, ela inclinou a cabeça. 

— É só que…

— “Que”? — repetiu ela. 

Os lábios de Zero se estreitaram, lutando contra as próprias palavras.

— … -de você.

— Oi? Não ouvi direito.

Zero pigarreou, mais de vergonha do que raiva de si mesmo.

— Eu estava com saudades de você — falou rapidamente, balançando os ombros por algum motivo incompreensível. Então, reparando no silêncio momentâneo dela, Zero logo se corrigiu: — Q-Quero dizer… Você andou bastante ocupada nos últimos dias e eu não queria te atrapalhar. E-E… Você ficava o tempo todo com aquele metido. O que quero dizer é que faz tempo que não ficamos… Sozinhos. Não, espera, na verdade, eu quis dizer que-

— Certo, certo, eu já entendi, Beterraba. Você ficou carente, né? 

Como se fosse uma resposta óbvia, Ryota assim concluiu brincando, erguendo as palmas das mãos e balançando a cabeça. À essa resposta, Zero estreitou os olhos e puxou cruelmente as bochechas vermelhas dela, que estavam quentes. Mas os dedos dele estavam gelados e por isso Ryota se remexeu de agonia dando um gritinho histérico.

“Um conselho…”, as palavras de Sasaki haviam atingido Zero mais do que ele gostaria. Ou talvez não fosse isso. Na verdade, só o estavam incomodando por terem vindo daquele homem com quem não conseguia se dar bem. Era apenas ele mesmo se importunando, é claro. Não tinha nada demais nisso. Não haviam motivos para se preocupar com as palavras dele…

Mas Sasaki não tinha dito aquilo por brincadeira ou pura provocação. Havia um brilho fosco em seu olhar que indicava tristeza, uma certa melancolia. Foram palavras sinceras de alguém que tinha experimentado aquilo e esperava que o outro não sofresse do mesmo. Zero não queria aceitar aquilo. Não queria admitir. Mas, mesmo assim, seu peito ficou agitado o dia inteiro até que ganhou coragem para vir ver a garota durante a noite — e na hora perfeita, aparentemente. 

Zero não suportaria perder mais ninguém e tinha certeza de que Ryota sentia o mesmo. Foi o que havia dito a ele em uma conversa passada, enquanto falavam sobre o futuro. Ainda tinha medo de que algo acontecesse e detestava esse seu lado fraco por isso. Detestava ter que se preocupar tanto com alguém ao ponto de se sentir mal, ao ponto de isso afetá-la tão diretamente.

Ryota viajaria sozinha para Hera. E Zero prometeu a si mesmo que confiaria nela. Prometeu a si mesmo que não interferiria em seus planos até que a própria pedisse por isso. 

Mesmo que fosse muito difícil.



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