Ryota Brasileira

Autor(a): Jennifer Maurer


Volume 10 – Arco 4

Capítulo 22: Maga Veridian

A muralha de rochas que preenchia seu campo de visão eventualmente foi manchada pelas sombras quando a luz do sol finalmente repousou no horizonte. O cheiro do mar adentrava suas narinas como se pudesse impregnar, e a bela vista da natureza era capaz de colar em sua memória como uma verdadeira fotografia magnífica.

Embora os desagradáveis sentimentos nostálgicos marcassem, havia outra coisa que, naquele instante, era infinitamente mais horrendo e memorável que a Baía de Dione — e essa coisa era a pessoa diante de seus profundos e escuros olhos azuis.

— … Kuro.

O nome daquele garoto de cabelos negros e olhos violeta escapou de seus lábios como um suspiro, e a expressão da garota derreteu de espanto para uma seriedade fria. Em contrapartida, o rapaz que mal havia chegado à adolescência, com suas vestimentas largas e escuras que lhe permitiam camuflar sua presença em ambientes escuros, continuou a encarar com a mesma surpresa no olhar.

Não houveram passos dados por nenhum dos dois, mas certamente não se afastaram. Naquele curto período de tempo em que se olhavam, ainda processando a presença de ambos no mesmo ambiente, a tensão no ar pareceu vibrar em seus ouvidos e voz.

Eu devia imaginar que aquela Entidade maldita estava brincando comigo desde o começo…

Repentinamente, a percepção do sorriso sábio de Sofia Megalos tornou-se efêmeramente cínico. A sensação que queimava no fundo da garganta e estômago ferveram em seu interior como fogo, acelerando seu coração quando os sentimentos de raiva e frustração começaram a aflorar.

Era óbvio. Deveria ter sido desde o início.

Sofia certamente estava se divertindo agora ao ver a garota controlada como uma marionete sendo feita de boba. Estaria ela rindo no Empíreo, assistindo o desenrolar dos acontecimentos que já conhecia o destino, como um filme que revia mas nunca se enjoava de desfrutar? Quantas mais omissões teriam sido ditas, ou não ditas, por aquela mulher? Quantas mais pessoas que seria obrigada a confiar continuariam a mentir e usá-la?

Acalme-se. Não é hora para se perder em pensamentos.

Haveria tempo para discutir com a Sabedoria em breve — agora, haviam coisas mais importantes para se concentrar. A identidade da Maga Veridian, que escondia-se na Baía de Dione, e a razão da presença de Kuro naquele mesmo ambiente.

… O quanto será que Sofia pode prever?

Teria ela conhecimento, desde o início, do tempo e hora exatos em que ambos teriam que sair, andando pela praia em um pôr-do-sol, para se reencontrarem? O quanto aqueles eventos frustrantemente certeiros eram manipulados?

Enquanto um pedaço de sua mente repetia aquelas infinitas perguntas, a garota deu alguns passos adiante na praia. O som das ondas do mar chegando até a areia era como música aos seus ouvidos, chegando até sua mente barulhenta e caótica enquanto não descolava os olhos de Kuro.

— … Meus assuntos não envolvem você. Estou aqui para encontrar outra pessoa.

Percebendo que o garoto, agora com voltando para a expressão casualmente neutra, pareceu se encher de cautela com sua aproximação, Ryota voltou a falar com seu tom de voz baixo e frio, embora um ligeiro tom de rancor pudesse ser ouvido. 

Ela não estava com tempo ou cabeça para discutir sobre qualquer outro assunto, mesmo que fosse profundamente do seu interesse. Afinal, Kuro possuía algum relacionamento com a mulher que tomou a vida de seu avô, Albert Megalos, salvando-a antes que pudesse matá-la com as próprias mãos.

Ainda se lembrava perfeitamente de como perdeu totalmente o controle. Mesmo agora, enquanto usava a pulseira de fios pretos que anteriormente pertencia ao avô, as memórias e dor marcadas em seu coração e alma não desapareceram. Por trás das íris azuis escuras havia um ódio profundo pela mulher que Kuro protegeu, mas pelo garoto que outrora teve um momento de calmaria ao seu lado, havia apenas um nítido ressentimento.

… Talvez, no fim das contas, Marie não estivesse assim tão errada sobre ele.

Quando aquele pensamento cruzou sua mente, ela ouviu a voz naturalmente baixa do garoto de olhos púrpura:

— … Como encontrou este lugar?

Ryota parou seus passos a alguns metros de distância de Kuro, que sequer se moveu. Ao contrário das outras vezes em que conversou com ele, o garoto parecia visivelmente incomodado com alguma coisa. Nas duas vezes em que interagiram, a garota reparou que ele sempre era distante e parecia ter dificuldades com interações sociais comuns ao ponto de sequer possuir conhecimentos fundamentais ou interesse em outros seres humanos.

Era um tipo estranho para se relacionar, e embora ainda pudesse sentir aquela estranheza na forma que se portava, havia agora uma cautela tão grande que Ryota imediatamente reparou na anomalia. O arrepio que percorreu sua espinha conforme sua mente trabalhava em compreender a razão daquela pessoa estar ali, bem como a origem de sua reação de espanto, finalmente giraram as engrenagens em sua mente conturbada para chegar a uma única e simples conclusão.

Seus olhos se arregalaram um pouco e, naquele segundo, foi como se um choque arrebatasse o corpo de Kuro — pois foi como se o próprio percebesse que ela também entendeu. Uma sincronia perfeita de raciocínio causada por uma mudança tão sutil em suas expressões e comportamento, mas certamente o assustador olhar de Ryota foi a causa de Kuro dar um único e hesitante passo para trás ao ouvir as palavras que rastejaram para dentro de seus ouvidos:

Ela está aqui.

Não foi uma pergunta, tampouco uma confirmação — era uma certeza absoluta, um pensamento, um sentimento de puro ódio e raiva compilados em uma única sequência de três palavras pronunciadas em uma voz rouca e baixa. 

Ryota sabia que Kuro usaria a menor das chances para escapar. Seus poderes de sombra poderiam não necessariamente ser poderosos, mas a praticidade e flexibilidade no uso eram certamente assustadores. No mínimo, caso houvesse uma perda mínima de alguns segundos, ela veria seu corpo desmanchar-se nas sombras e desaparecer para todo o sempre.

Era um pensamento claro que passava na mente de ambos — fera e presa, que estava encurralada contra uma enorme parede de pedras. Era uma simples questão de velocidade para descobrir quem se sairia melhor naquelas circunstâncias, embora o ligeiro suor e os olhos atentos de Kuro indicassem que sua postura normalmente indiferente estava sendo facilmente abalada agora, o que poderia permitir à garota uma pequena vantagem caso ele atrasasse sua reação graças à essas emoções paralisantes.

— Recue, Kurogane.

Foi quando naquele curto espaço de tempo, uma voz familiar chegou aos seus ouvidos, e ambos os presentes mostraram uma reação de puro espanto outra vez.

A silhueta feminina que se revelou atravessando as sombras do próprio garoto, que discretamente preparava uma forma de escapar, era de uma mulher que nenhum deles esperava ver, embora ambos soubessem que ela ali estava.

Com o passo lento, olhos marcados pela exaustão e a ausência de um braço esquerdo até o cotovelo, Gê atravessou o portal de sombras que Kuro usaria para escapar e colocou a mão na cabeça do menino como um ato de conforto.

— M-Mas… Mãe…

— Recue, meu filho. 

— … Sim.

Após uma hesitação por parte de Kuro — não, Kurogane —, os ombros dele relaxaram um pouco. Era como se a presença daquela mulher de rosto abstruso fosse o suficiente para o garoto sentir que tudo ficaria bem, e confiasse em todas as suas palavras com a maior certeza daquele mundo. 

Ryota observou a interação dos dois sentindo um misto tão grande de emoções dentro do próprio corpo que sequer foi capaz de se mover. Houve repulsa, raiva, ódio, tristeza, frustração, dor, inveja, luto… Incontáveis estímulos a atravessaram naquele segundo como um choque, e seus olhos apenas foram capazes de assistir Gê fazer carinho na cabeça de Kuro antes de erguer seu rosto igualmente inexpressivo para ela.

— Estive lhe esperando, filha da luz.

— … O quê?

— Fui informada de que necessitava de meus serviços, então decidi recebê-la em minha casa.

— Mas que de merda você tá falando…? 

A expressão de Gê pareceu enrijecer um pouco com a confusão da garota, como se pensasse em algo enquanto suspirava para si mesma.

— … Aquela mulher continua sendo um verdadeiro incômodo.

Após murmurar para si mesma, a moça de cabelos e olhos negros como a escuridão voltou a falar com Ryota em um tom suave, porém sério:

— Eu sou a Maga Veridian, curandeira de Urânia. 

Ryota arregalou ligeiramente os olhos para aquela revelação. Seu primeiro pensamento foi de que aquela detestável mulher estava mentindo, porém nada indicava que aquilo realmente pudesse ter acontecido. Nem Kuro ou Gê se moviam ou falavam em tom de quem tentavam afugentar ou propositalmente irritar a garota, o que era ainda mais estranho.

Em contrapartida, enquanto lutava para controlar os próprios impulsos de saltar para cima da curandeira que estava a menos de alguns metros diante dela, Ryota tentou acalmar a si mesma para que pudesse raciocinar.

— Como vou acreditar em você, sua assassina?

A expressão de Kuro enrijeceu levemente, mas Gê permaneceu inalterada.

— Estou ciente de que fez um contrato com Sofia Megalos, e ela me informou de sua visita há algum tempo. Sua pretensão é encontrar uma forma de reverter o poder de uma Entidade, estou correta?

Ryota não respondeu, mas sequer havia necessidade para isso. O silêncio era o suficiente para a compreensão de que a curandeira estava falando apenas a verdade. E mesmo que houvesse a chance para retrucar, Ryota sentiu que não conseguiria dizer nada, afinal uma verdadeira enxurrada de informações e pensamentos agonizavam sua cabeça, agora.

Ela sabia? Ela sempre soube? Desde quando? Por quê?

Uma pilha insuportável de perguntas direcionadas ao mundo surgiam, mas nenhuma delas recebia qualquer resposta — e ela sabia que só poderia sanar aquelas questões com Sofia. Até em momentos como aquele, aquela Entidade tinha um papel imensamente importante.

— Se ainda houver interesse de sua parte em discutir sobre-

— Eu me recuso.

Ryota cortou as palavras de Gê antes mesmo que pudesse terminá-las. Foi um tom tão afiado que poderia ter sido facilmente disparada como uma lâmina, mas a curandeira não expressou um único sentimento no rosto.

— Não irei trabalhar ao lado de uma desgraçada como você.

— Possui absoluta certeza disso?

— É claro que sim!

— Estou indagando porque possuo a necessidade de relatar à você que embora possuamos desavenças passadas, não poderá salvar quem deseja sem a minha ajuda.

— Como você ousa-

Sentindo sua raiva explodir, deu um passo adiante para confrontar a curandeira de mais perto. Entretanto, seus pés sequer se moveram — afinal, estavam presos como se afundassem em areia movediça, porém dentro das sombras de Kuro. Não importava o quanto forçasse, não havia forma de escapar enquanto o próprio garoto assim a mantivesse presa.

— Não a machuque.

— Sim, Mãe.

Gê deu um tapa suave e carinhoso na cabeça de Kuro antes de se aproximar de Ryota, que frustrantemente relutava com os pés presos dentro das sombras. Então, as duas trocaram olhares. A garota de olhos azuis tentou esticar sua mão na direção da curandeira, mas um chicote de sombra imediatamente prendeu seus pulsos para baixo.

É quase igual àquela vez…!

Uma situação terrivelmente semelhante a quando viu aquela mulher fugir de seus punhos com os poderes de Kuro, há quase um ano atrás.

Gê parou diante de Ryota, finalmente permitindo que as duas mulheres de expressões exaustas e depressivas pudessem se ver de perto. Era reconhecível em ambas sentimentos semelhantes, talvez até mesmo as circunstâncias que as levaram a ser quem eram agora fossem parecidas, mas as emoções uma pela outra certamente eram completamente opostas.

— Respeitarei sua decisão de recusar meus serviços, Ryota. Entretanto, torno a avisar que pode se arrepender dessa decisão futuramente.

— Você não sabe de nada! Não fala como se soubesse das coisas!

Mas não importava o quanto a curandeira tentasse conversar com a garota, nos olhos azuis havia um misto tão grande de emoções, uma dor tão profunda e enraizada que Gê não seria capaz de chegar ao seu coração com suas próprias palavras. Ela sabia que não havia nada que pudesse ser dito por ela para consertar as coisas ou, ao menos, permitir que discutissem apropriadamente sobre aquele assunto.

— Se vou me arrepender ou não, o problema é meu! Então cala essa sua boca e some da minha frente antes que eu estoure essa sua cara agora mesmo!

Gê franziu suavemente a testa ao ver que as palmas das mãos de Ryota começaram a brilhar quando seu chi começou a ser concentrado, enviando um calor suave, mas forte o bastante para enfraquecer momentaneamente as sombras de Kuro. 

O garoto colocou um pouco mais de esforço quando percebeu isso, puxando Ryota ainda mais forte para trás e para baixo. Uma veia de raiva surgia na têmpora dela enquanto continuava a relutar como um animal selvagem, os sentimentos sendo revividos da mesma forma que naquele dia, há tantos meses atrás.

— … Caso deseje repensar em sua decisão, será bem-vinda em minha casa. Por hora, estarei repousando aqui na baía, mas não posso lhe informar por quanto tempo antes de minha partida. 

Ryota fez um pouco mais de força contra as sombras, como se pudesse arrancar seus pulsos à força para rasgar o pescoço de Gê com os dentes, mas não saiu um centímetro do lugar.

— M-Mãe… Ah.

Kuro chamou por Gê em voz baixa, como se a alertasse. A curandeira suavizou sua expressão um pouco quando ouviu o som de surpresa na voz do menino, não precisando nem virar-se de costas quando ouviu mais e mais passos surgindo. 

Eram de pés pequenos, mas que se movimentavam rápido. Ao total eram três pares, mas pareciam haver mais de onde vieram. Ryota baixou seus olhos cheios de fúria para aquelas silhuetas, então arregalando um pouco os olhos em mais espanto quando viu as crianças que atravessaram o portal de sombras para segurar na roupa de Gê.

“Crianças” era um termo generalizado, pois haviam jovens na faixa dos doze anos e uma menina de seis. Mas certamente ainda eram novos o bastante para serem nomeados assim, e suas expressões eram de puro medo quando se aproximaram para puxar a roupa da curandeira, permanecendo o mais longe possível da garota presa nas sombras.

— Mãe!

— Vem logo!

— Deixa ela aí!

— Estou indo, meus filhos. Me dêem um minuto.

— Não interrompam a Mãe e voltem para dentro, agora.

Respondendo às crianças com um tom surpreendentemente carinhoso, Kuro logo falou com elas em tom ríspido e as fez recuar com seu próprio olhar, não demorando mais que alguns segundos para elas voltarem correndo de onde vieram.

Kurogane soltou um suspiro discreto antes de voltar a se concentrar em Gê, que ainda olhava inexpressivamente para Ryota quando falou:

— … Você tem um bom coração, minha criança. Não permita que essas emoções dentro de si a corrompam ainda mais.

Ryota encarou Gê com fúria, sentindo-se profundamente incomodada com aquelas palavras que pareciam demonstrar preocupação, ficando ligeiramente surpresa quando a única mão da curandeira tocou em sua cabeça da mesma forma que anteriormente fizera com Kuro.

— Ao contrário de mim, ainda há tempo para você repensar no que realmente deseja fazer por si mesma.

Por um instante, Ryota parou de fazer força contra as sombras e relaxou o corpo. Ainda com as íris azuis perfurando as negras, ouviu aquelas palavras suaves como uma pluma serem ditas antes da mão em sua cabeça se afastar na mesma tranquilidade que se aproximou. E, por fim, Gê deu meia volta e caminhou para perto de Kurogane, finalmente adentrando o portal de sombras antes do garoto que deu um último olhar para Ryota antes de também desaparecer, deixando para trás apenas a grande muralha de rochas.

— … Mas que droga?

Ryota permaneceu parada na praia, olhando para a areia, quando seus pés e braços finalmente foram libertos e ela expressou seus sentimentos e confusão com apenas uma única e conturbada pergunta murmurada para o nada.



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