Sakurai Brasileira

Autor(a): Pedro Suzuki


Volume Único

Capítulo 34: Cara de fome

Atravessando um vilarejo de tamanho médio e andando na neve por mais um tempo, eles chegaram à solitária casa do mago, que toda feita de madeira, possuía um telhado alto e triangular, coberto pela neve, e era ligada a outras duas construções: um depósito de tralhas e um estábulo vazio. Nos arredores da casa era possível ver apenas neve, pequenos montes, alguns ocasionais seres sobrenaturais e árvores secas, nada de muito interessante. 

Passando pela entrada amontoada de roupas, cabides e malas, o interior da casa parecia mais comum e aconchegante, com papeis de parede floridos, coloridos em vermelho e amarelo, cortinas do mesmo padrão, jarros contendo flores falsas, moveis acolchoados com a sensação de caro e coloridos com padrões bordados a mão, diversas pinturas de cenários e retratos cobrindo quase todas as paredes e uma grande lareira acesa. 

Apesar de toda essa bagunça, a casa era perfeitamente limpa. 

Logo que chegou, Hiroshi passou a procurar em todas as paredes por um calendário. Ao lado de um relógio antigo de cuco, ele encontrou o que procurava, mas não conseguiu acreditar no que viu. 

— Esse calendário não está desatualizado? — perguntou Hiroshi. 

— Que eu saiba ele está completamente normal... — respondeu Pavlov. 

— Mas isso não faz sentido... 

Contra todas as suas expectativas, Hiroshi não estava centenas ou dezenas de anos no futuro, o calendário indicava que, na verdade, ele havia voltado dois anos antes de ter sido enviado ao vazio. 

— Então isso significa que... — Porém, seu pensamento foi interrompido por mais gritos incompreensíveis do mago. — Seu amigo não cansa de falar? Desde a vila ele está assim... 

— Não sei o que deu com ele, nunca vi implicar tanto com uma pessoa assim — respondeu Pavlov. 

— Pode traduzir o que vou dizer agora para ele? 

— Fale. 

No fim, traduções errôneas e palavras mal colocadas só o irritaram mais ainda, fazendo os gritos e xingamentos aumentarem de intensidade. Hiroshi e Pavlov desistiram de tentar acalmá-lo e começaram a o ignorar, o que surpreendentemente funcionou bem. 

— Pelo menos descobri que ele não tem nada a ver com os magos do Japão e aparentemente ele faz “aquilo” de forma inconsciente. 

— Magos? — perguntou Pavlov enquanto entregava uma vasilha de madeira contendo uma sopa amarela, quente ao ponto de soltar fumaça, que visualmente parecia mais rala que o costume para Hiroshi. 

Ah, ignore isso, só estou pensando alto — Hiroshi assoprou a sopa e deu um pequeno gole. — Hm... Vocês têm carne aqui? 

— Ele tinha o suficiente para ao menos passar o inverno, mas... Eu acabei me empolgando e trazendo mais aves que deveria. 

— Agora entendo o motivo dele ficar de tão mal humor — Desde que havia voltado, o corpo de Hiroshi ansiava por cozinhar, e essa era a desculpa perfeita para isso. — Isso está com cara de ser um jejum de uma boa comida, mas por sorte, você encontrou um excelente cozinheiro! 

— Meu amigo é bem chato em relação a comidas novas, então nem pense em fazer algo estranho, você pode até ser um bom cozinheiro, mas ele provavelmente vai odiar. 

— Obrigado pelo aviso, vai ajudar. — E Hiroshi colocou a sopa de lado e começou a pensar em diversas possibilidades de pratos. 

Um dos pássaros correio encarou a sopa fixamente por alguns segundos, pulou em direção a vasilha, mas foi pega em pleno ar pelo Pavlov. 

— Trabalhava com o que no Japão? — perguntou enquanto acariciava a ave mau humorada. 

— Minha especialidade era pães, estava perto de abrir uma padaria. 

— Está planejando fazer um sanduiche então? 

— ...Tem algum lago ou rio por perto? 

— Tem um lago, mas está congelado, obviamente. 

— Deve servir. Seu amigo tem algum problema com peixes? 

— Ele odeia. 

— Perfeito, é mais divertido assim. 

Pavlov inclinou seu rosto, confuso, sorriu e se levantou para colocar seu casaco e chapéu. 

— Vou querer ver de perto o que vai aprontar. 

— Espere, é melhor que fique aqui, garanto que vai aproveitar ainda mais — disse Hiroshi. 

— ...Tudo bem, vou confiar em você. 

— Posso pegar emprestado um pouco dessa sopa? 

— Fique à vontade. 

Pavlov o acompanhou até a porta, deu as instruções do caminho até o lago, desejou segurança a Hiroshi e esperou até que ele saísse de sua vista para voltar para dentro, bater a neve de suas roupas e fechar a porta.  

— Aquele homem finalmente foi embora? — perguntou o mago. 

— Para sua tristeza, ainda não. 

O mago estalou sua língua e se trancou em seu quarto para estudar. Já Pavlov, decidiu ler um dos romances da vasta estante de livros para visitas, que o mago deixava disponível em sua sala de estar, a frente da lareira principal. 

Os personagens foram introduzidos, os conflitos se desenrolaram, os protagonistas se apaixonaram, se desentenderam e quando se deu conta, já havia terminado o livro de mais de duzentas páginas, mas Hiroshi ainda não havia voltado. 

Pavlov andou para a entrada, checou para ver se Hiroshi estava preso do lado de fora, mas sem nem sinal dele, ele voltou, pegou o segundo volume do romance, se sentou e começou a ler. 

Assim como quando terminou o primeiro, ele se levantou para ir a entrada, mas ficou tentado pelo gancho deixado pelo final do segundo livro e mudou seu caminho para a estante para pegar o terceiro volume. 

O tempo passou, e na metade do quarto volume, Pavlov caiu no sono. 

— Que cheiro bom de... Que cheiro é esse!? — Pavlov acordou confuso, desnorteado, sentindo seu pescoço doer, mas se levantou as pressas para checar o aroma que vinha da cozinha, derrubando o livro no chão. 

— Já acordou? Bom dia! Será que fui barulhento demais?... Ainda não conheço essa cozinha direito...— disse Hiroshi. 

— Nossa, que bom que está vivo... Será que eu errei nas instruções do caminho? Por que demorou tanto? 

— Respira um pouco, relaxa, estava tudo certo com suas instruções. Eu que não consegui me conter ao ver... Isso. — E Hiroshi apontou para uma jarra marrom enorme e cheia de ornamentos. — Infelizmente não é comestível. 

— Meu Deus, que abominação é essa!? — Pavlov pulou para trás de tanto susto ao ver que, dentro da jarra, havia uma cabeça de um polvo gigante de cinco olhos. — Polvos não vivem águas salgadas? 

Hiroshi parou de cozinhar e precisou de algum tempo para pensar em como explicaria o que havia acontecido. 

— Simplificando bastante, enquanto eu nadava no fundo do lago, acabei sendo pego por uma corrente que me levou até um mar. 

— O mar mais perto fica a quilômetros daqui... 

— Vim correndo. 

Pavlov deu um olhar vazio e talvez pelo sono, decidiu só aceitar isso. 

— Se não é comestível, para que trouxe isso? 

— Um presente para o seu amigo, tive uma sensação de que seria útil para ele. 

— Mas e esse cheiro? — Pavlov seguiu o cheiro e vasculhou toda a cozinha, até que chegou em um pote retangular com um líquido estranho. — É isso, daqui que estava vindo esse cheiro! Mas o que é isso? 

— No caminho da volta consegui trocar o resto do corpo do polvo por alguns vegetais e temperos, misturei quase tudo e coloquei aí. 

— Acho que estou sendo intrometido demais... Estou ansioso para o almoço! — E Pavlov voltou a sala para terminar seu livro, mas logo voltou. — Teria alguma coisa para essa ave faminta que não para de me bicar? 

Hiroshi jogou um peixe pequeno e a ave engoliu de uma só vez. 

— Eu deveria ter trazido mais? — perguntou Hiroshi. 

— Se trouxesse mais do que isso, já poderia abrir uma peixaria!  

Além da jarra que continha a cabeça do polvo, havia mais três barris cheios de peixes até o topo. 

— Que barulho todo é esse, logo de manhã? — perguntou o mago. 

Pavlov o arrastou para fora da cozinha e os dois conversaram, jogaram xadrez, leram e discutiram até Hiroshi terminar o almoço. 

— Fiz três pratos: uma entrada, um prato principal e uma sobremesa, espero que gostem — disse Hiroshi, entregando o primeiro prato. 

— Ovas de peixe e... O que é isso? — perguntou Pavlov. 

— Uma torrada comum. 

— Isso está bem longe de ser comum. 

— Só come logo. 

Caviar com uma torrada, do tamanho para se comer em uma mordida. Esse foi o primeiro prato.  

Pavlov orou em silêncio e comeu a entrada sem muita cerimônia.  

Hm! Isso aqui está muito bom! Realmente tem o gosto de um peixe de primeira. 

O mago, porém, estava desconfiado, e demorou um pouco mais para comer. Ele cuidadosamente levantou a torrada até seu nariz e apreciou o aroma da comida, aparentemente gostou, pois, sua expressão se abriu antes mesmo de comer. Então, ele colocou a torrada em sua boca e mordeu com delicadeza. Fez uma pausa dramática de alguns segundos, mas logo bateu na mesa e gritou para Pavlov: 

— Esse homem é um monstro!  

— Por que diz isso? — perguntou Pavlov. 

— Como alguém consegue demonstrar tanta proficiência culinária só com uma torrada? 

— A... Torrada? Não as ovas? 

— Um leigo como você só prestaria atenção no óbvio, é claro, mas se apreciar com calma, fica claro as intenções dele! Torradas costumam ter pouco ou nenhum destaque para exaltar o ingrediente ou patê que colocamos sobre, porém, ele foi ousado para inserir sabor, foi bem-sucedido em manter a crocância e acertou perfeitamente! Você provavelmente só presta atenção nos vinhos, mas se fosse mais atento conseguiria sentir a magnitude desse feito! Ele fez um ingrediente de primeira, que até os mais experientes chefes de cozinha costumam deixar brilhar sozinho, ficar melhor ainda! 

Eh... Ele gostou ou odiou? — perguntou Hiroshi. 

— Traduza para mim, agora! Onde fica o seu restaurante!? Me passe o endereço logo, nem que seja do outro lado do mundo eu irei! 

— Ele gostou bastante e pediu o endereço de seu restaurante — disse Pavlov. 

— Como eu disse antes, eu ainda não abri. 

Pavlov traduziu, o mago bateu na mesa com mais força ainda, quase derrubando os pratos e gritou: 

— É um crime contra a humanidade esse cozinheiro genial não ter um restaurante! — O mago pegou as mãos de Hiroshi, olhou nos seus olhos e as apertou com força. — Por favor, me dê algum tipo de reserva para quando for abrir um restaurante! 

Pavlov traduziu e Hiroshi respondeu: 

— Tem algum papel e tinta por aí? — Hiroshi escreveu “Ingresso VIP” e assinou com o nome do mago. — Contarei para o Pavlov o endereço, pode vir a qualquer momento que eu não te decepcionarei! 

Pavlov traduziu enquanto Hiroshi tentava conter sua felicidade por conseguir seu primeiro cliente. 

— Muito obrigado! — disse o mago. 

A atitude dele mudou completamente desse dia em diante, até chegando a ensinar um pouco de Russo a Hiroshi. Com esse ar agradável, o resto da estadia foi divertida.  



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