Volume 1

Capítulo 3: Minha Preguiça em Contraste aos Aldeões Trabalhadores

 

— Eita, já amanheceu?

 

O sol já estava iluminando o meu quarto através das cortinas atrás de mim.

 

Checando o relógio ao lado da minha cama percebi que já são nove horas da manhã.

 

— Faz tempo que eu não acordo nesse horário, hein.

 

Que horas eu fui dormir ontem mesmo?

 

Ah, lembrei. Eu fiquei jogando aquele jogo até tarde e…

 

Acabei ficando viciado em “Village of Fate” e fiquei vendo o que os aldeões estavam fazendo até de madrugada.

 

Durante esse tempo eu percebi várias coisas.

 

Eles vão dormir de um jeito meio esquisito. Assim que escurece, eles jantam e vão dormir imediatamente. O Gamz ficou acordado sozinho de vigia até umas oito horas da manhã, mas depois ele foi dormir também.

 

A coisa mais preocupante é como eles são dependentes de Deus. Eu pensava que ia ser conveniente se eles fossem totalmente fiéis e devotos a mim, mas depois que eu li um diálogo deles ontem de noite,  eu acabei mudando de ideia.

 

— Você não vai vir dormir também, Gamz?

 

— Não, Rodis. Não temos como saber se algum monstro pode vir nos atacar ou não, então eu vou ficar de vigia.

 

— Não precisa se preocupar com isso, cara. Você não viu o milagre divino mais cedo? Nós também recebemos um oráculo, isso só pode significar que o Deus do Destino está nos protegendo. Os monstros também não vão se aproximar mais por causa do poder divino de Deus.

 

— Espero que sim, mas...

 

Desculpa, mas Deus (nesse caso eu) não tem nenhum tipo de poder assim não.

 

Os aldeões também estão pensando que Deus vai resolver o problema sobre a questão das madeiras e todo o resto, mas a realidade não é muito bem essa.

 

— Ai, cara… não tenho muita certeza se vou conseguir manter eles seguros se isso continuar assim. É melhor eu avisar eles que meus poderes são limitados e que eu não sou onisciente se não isso não vai dar certo.

 

O que eu faço, hein?

 

Ontem, eu fiz uma pesquisa sobre o processo de secagem de madeira na internet, pra ver se posso fazer alguma coisa para diminuir o peso nas costas dos aldeões.

 

Com certeza ninguém se arrependeria de ter feito o que eu fiz para ajudar os aldeões.

 

Como de costume, eu quis esquecer a minha realidade e ficar imerso no jogo.

 

Só que na minha frente, no monitor, os aldeões estavam trabalhando duro. A vida deles era completamente diferente da minha.

 

Até mesmo a Carolzinha está dando o seu máximo para ajudar sua mãe. 

 

— Filha, não precisa… 

 

— Eu sei, mamãe. Mas, todos estão se esforçando, né? Não é muito grande assim, e também não é pesado. Eu acho que eu consigo ajudar também.

 

— Tudo bem, filha. Mas se você achar que está pesado pede ajuda pro seu papai, tá?

 

— Tá bom, mamãe.

 

Rodis não parava de ficar olhando pra sua filha enquanto trabalhava. Parecia que ele estava bem preocupado com a Carol. Às vezes parecia que ele ia andar até ela, mas no fim ele acabou conseguindo se segurar e deixar suas preocupações de lado.

 

Carol está andando de um lado pro outro sempre carregando alguma coisa diferente em suas mãos. Mesmo sendo só um jogo, o mundo é vivo e todos estão animados se esforçando. Completamente diferente da minha realidade e do preguiçoso que sou.

 

Eu sei que essas pessoas no meu monitor são apenas personagens de um jogo, mas ainda assim meu coração fica quentinho assistindo eles viver.

 

Quanto mais precisa a imagem, mais a cena me impacta.

 

No meu quarto tem várias embalagens de doce dentro de uma sacola. Todas essas embalagens são das coisas que eu comi ontem.

 

No fim, o que eu fiz ontem só aumentou a quantidade de lixo espalhada pelo quarto.

 

— Enfim, melhor eu soltar umas verdades pra eles pararem de superestimar o incompetente que sou.

 

Se eles continuarem achando que Deus pode fazer tudo, eles vão acabar sendo aniquilados. Já que não tem como salvar meu progresso, e se eu tomar um game-over já era. É melhor eu evitar a todo custo que eles morram.

 

Eu estava sofrendo tentando pensar nas palavras certas para convencer os aldeões sem jogar fora a dignidade do Deus do Destino.

 

Hmm… acho que agora ficou bom…. tomara que tenha ficado, né.

 

Assim que enviei a profecia, comecei a esperar ansiosamente pela reação dos personagens.

 

— Pessoal! Recebemos outro oráculo de Deus!

 

Todos aldeões pararam o que estavam fazendo, e se reuniram em volta da Chem após ela ter gritado isso.

 

— Está escrito… “Recentemente perdi grande parte dos meus poderes divinos. No momento, tudo que consigo fazer é assistir e realizar milagres menores. Desejo que todos vivam em harmonia uns com os outros e sejam devotos fiéis” Amém!

 

E aí? O que acharam dessa? Espero que tenham entendido que os poderes de Deus são limitados e não podem ser usados o tempo todo.

 

Após os personagens ouvirem o que a Chem tinha para falar, todos ficaram em silêncio. Por um momento, o único som que podia ser escutado era o soprar do vento.

 

Será que eu devia ter pensado numa desculpa melhor?

 

Chem começou a orar de joelhos. 

 

— Isso não é nada bom! Talvez, o Senhor do Destino tenha perdido seus poderes após a batalha contra o Deus das Trevas. Mas mesmo assim ele nos abençoou ontem. Não podemos esperar que Deus faça tudo por nós, temos que depender apenas de nós mesmos.

 

Rodis tentou convencer a todos de que eles precisam ser mais independentes.

 

Eu fiquei meio preocupado com o tom da minha explicação, mas será que deu tudo certo só porque é um jogo?

 

Pelo visto a única pessoa que não entendeu direito foi a Carol, os outros não ficaram tão chateados com a notícia. Eles parecem felizes por pelo menos parte de meus poderes terem permanecido. Pelo visto eu consegui convencê-los, né?

 

Ainda que eu tenha sido meio direto ao ponto, pelo menos consegui atingir algum resultado.

 

Os personagens olharam para a bíblia e me ofereceram orações de agradecimento, fazendo a minha quantidade de Fate Points aumentar.

 

Até porque os pontos aumentam de acordo com as orações e sentimentos de gratidão.

 

Parece que dessa vez todos os aldeões ficaram bem impressionados, até que eu recebi uma quantia considerável de pontos, mas ainda não é o suficiente para comprar um Familiar decente.

 

Sinceramente, eu queria ter mais Fate Points.

 

Cada dia que passa eu aprendo mais sobre os personagens e a história do jogo lendo os diálogos… Se bem que, nesse caso, tá mais pra espionar os personagens interagindo uns com os outros, né. Enfim, tanto faz, o que eu tô querendo dizer é que existem muitas coisas que dá pra aprender só de ouvir a conversa deles.

 

Por exemplo, o que as meninas estavam falando agora.

 

— Não podemos continuar dormindo em uma carruagem para sempre. Além disso, eu ficaria mais tranquila se tivesse uma cerca em volta de nós, ia facilitar bastante pro meu irmão nos defender se algum monstro atacasse a gente. 

 

— Verdade. Não podemos usar aquele tronco pra fazer uma cerca porque talvez vai ser usado na construção do abrigo. Além disso, eu também tava pensando sobre como que a gente vai fazer pra temperar a comida, se eu tivesse um pouco de sal já ia ajudar bastante.

 

Normalmente elas conversam sobre suas preocupações, como vão lavar as roupas, cozinhar e tudo mais.

 

Se eu tivesse mais pontos, eu poderia aliviar algumas de suas preocupações, mas por enquanto eu não posso gastar os que eu tenho.

 

— O jeito vai ser comprar mais Fate Points com dinheiro mesmo.

 

 

Coloquei todas as coisas que eu não usava mais para vender em um leilão online. Se eu der a sorte de encontrar um bom comprador, vou conseguir um dinheirinho bom até.

 

Será que tem mais alguma coisa que eu posso vender?

 

Olhando em volta do meu quarto, reparei alguns mangás e jogos que eu não usava mais.

 

Se eu levar para uma biblioteca que compra livros de segunda mão dá pra conseguir um pouco de dinheiro rápido. Claro, seria menos do que se eu vendesse na internet, mas já ia ser alguma coisa.

 

O único problema é… que eu preciso sair de casa se for pra vender assim.

 

Fazem meses… Não, na verdade fazem quase dois anos que eu não saio de casa durante o dia.

 

Dando uma olhada no monitor do computador vi os aldeões trabalhando duro para sobreviver. O começo do jogo tá sendo bem legal, mas eu tenho certeza que vai ficar ainda melhor mais pra frente.

 

É uma pena que se os personagens morrerem eu não vou poder jogar mais.

 

— Até que hoje tá um dia bonito pra dar uma caminhada, né?

 

Observando bem o comportamento dos aldeões, é difícil acreditar que isso aqui é só um jogo.

 

Parece até que eu fiquei viciado em assistir eles, igual as outras pessoas ficam viciadas em assistir Reality Shows nos seus celulares e TVs.

 

Peguei um agasalho antigo que eu já não usava fazia tempo pra sair de casa, estava um pouco sujo, mas eu vesti mesmo assim.

 

Faz tanto tempo que eu não me arrumo pra sair de casa que eu cheguei até a me sentir um pouco desconfortável usando essas roupas.

 

Conferi minha aparência no espelho, e no meu reflexo tudo que eu conseguia ver era um desempregado com uma barbinha feia na cara.

 

Quando eu era criança, eu achava que quando eu fizesse trinta anos eu seria um adulto responsável, uma pessoa de respeito, mas infelizmente a minha realidade atual é bem longe do que eu queria na época.

 

Até agora eu sempre usei as desculpas “Ah, amanhã eu faço isso” ou então “A partir de amanhã eu vou focar e começar a trabalhar duro para melhorar”. Como se deixar as coisas para depois fosse me fazer algum bem.

 

Mas agora eu não penso mais assim.

 

Não depois de ter visto os aldeões dando tudo de si para ter uma vida melhor naquele jogo.

 

Rodis e Gamz tinham voltado a cortar árvores em silêncio, como sempre. Os dois estavam trabalhando duro, fazendo um grande esforço físico debaixo do sol quente, sem sequer reclamar ou soltar algum grunhido de dor.

 

A Chem estava andando vasculhando a área em volta da carroça procurando alguma coisa para comer. Apesar de Gamz ter dito que sua irmã não se dava muito bem com trabalho manual, ela estava conseguindo ajudar do seu próprio jeito.

 

A Layla está lavando as roupas em um rio próximo de onde os outros aldeões estavam. A água parecia tão gelada que até mesmo eu fiquei com frio só de olhar, como se fosse eu que estivesse lá.

 

E a Carol estava cheia de energia e respondia todo mundo com um sorriso no rosto. Mesmo sendo apenas uma criança, ela se preocupa bastante com o bem estar de todos e os ajuda sem nem mesmo pedirem que ela faça alguma coisa.

 

Hoje… hoje eu vou dar meu máximo também, dessa vez eu não vou deixar para depois. Por mais que possam rir da minha cara, dizendo que a minha inspiração é só um personagem de um joguinho, eu não me importo. Eu vou mudar para melhor, mesmo que dando um passo de cada vez.

 

Quando eu saí do quarto e terminei de descer as escadas, meus olhos se encontraram com os da minha mãe.

 

— Você, saindo? Que raro.

 

— Vou aqui pertinho, daqui a pouco eu volto.

 

— Tá bom… vai com Deus, então.

 

Minha mãe estava bem surpresa.

 

Parecia até que ela ia começar a rir. O que será que ela está pensando agora me vendo sair de casa depois de tanto tempo?

 

— Tchau, mãe.

 

Já faz um mês desde que eu tive uma conversa de verdade com alguém.

 

Assim que eu abri a porta senti um vento gelado.

 

Nossa que frio, o inverno já começou?

 

Eu costumava ficar dentro do meu quarto o tempo todo. Quando estava calor, o ar-condicionado ficava ligado, deixando o lugar bem fresco, e no frio o aquecedor ficava ligado. Meu quarto sempre permanecia com uma temperatura estável independente da época do ano, então eu não fazia ideia de como o mundo estava do lado de fora.

 

Não… não é que eu não fazia ideia, eu simplesmente não queria saber de nada disso.

 

Enquanto meus pensamentos continuavam fluindo sem parar pela minha cabeça, fui até a minha bike, destravei o cadeado dela, e me preparei para começar a pedalar.

 

Sendo sincero, eu estava com um pouco de medo de ter esquecido como que andava de bicicleta, mas pelo visto aquele ditado tava certo.

 

Assim que eu comecei a andar de bike, as pessoas da vizinhança começaram a me olhar e cochichar alguma coisa.

 

Será que eles estão zombando de mim?

 

Falando mal de mim pelas minhas costas porque eu não tenho um emprego?

 

Esses malditos pensamentos estão inundando minha mente de novo.

 

Fiquei assustado, com medo. Eu já estava delirando, as cicatrizes e as ilusões daqueles que me ridicularizaram… nada disso queria sair da minha cabeça.

 

Eu queria dar meia volta, deixar tudo de lado e voltar pra casa. Mas me lembrei dos aldeões trabalhando duro. Agora não é hora de voltar atrás.

 

Eu quero ajudá-los a ter uma vida melhor.

 

Dito isso… comecei a pedalar mais rápido em direção a livraria mais próxima.

 

 

Apesar de ofegante, consegui chegar ao meu destino, uma antiga livraria.

 

Por que que um lugar onde eu não conheço ninguém é tão mais calmo comparado ao bairro que eu moro?

 

Vendi tudo que eu tinha levado comigo nas duas sacolas de papelão.

 

Os mangás que vendi acabaram valendo mais do que eu esperava, então eu consegui um dinheiro extra até.

 

Aproveitei e comprei uma revista sobre cabines e casas de madeira, e mais alguns livros focados em projetos de arquitetura usando madeira. Claro, todos livros que eu comprei eram de segunda mão, então saiu bem barato.

 

Sim, eu podia ter pesquisado sobre o assunto na internet, mas é complicado determinar a veracidade das informações lá. É muito mais fácil encontrar o conhecimento de especialistas de verdade em livros do que online.

 

Eu estava planejando ir direto pra casa, mas acabei decidindo parar para comprar uns pudins pro pessoal lá de casa.



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