Trigo e Loba Japonesa

Tradução: Virtual Core


Volume 2

Capítulo 1

 

As colinas onduladas continuavam perpetuamente.

Os pedregulhos eram proeminentes; grama e árvores eram escassas.

A estrada se estreitava por entre os montes, frequentemente se afunilava tanto que até mesmo uma única carroça era o suficiente para bloqueá-la completamente.

Justamente quando parecia que a subida continuaria interminavelmente, a estrada se inclinou para baixo, e as aparentemente intermináveis rochas nuas e arbustos secos subitamente mudaram para uma tão ampla e aguardada vista.

Enquanto a viagem tenha sido mais interessante do que as infinitas planícies de grama, a maioria acharia a viagem cansativa ao quinto dia.

Da estrada, tingida com uma solidão que sugeria o inverno próximo, a voz soava satisfeita com as ondulações das pedras e com o caminho ocre havia desaparecido. A detentora deste som estava agora aparentemente muito entediada até mesmo para se sentar no banco; ao invés disso ela estava deitada no leito da carroça, acariciando o pelo da sua cauda.

Um jovem homem guiava a carroça, aparentemente acostumado com tal comportamento egoísta por parte de sua companhia. O homem, Kraft Lawrence, era facilmente identificável como um mercador viajante. Este ano faria sete desde que começou por conta própria, e ele parecia estar em torno de vinte e cinco anos. Como que em reconhecimento do frio que veio com o passar do outono, ele apertou o casaco de pele que estava enrolado em volta de seu corpo.

Ocasionalmente, o frio também o levava a acariciar seu queixo, coberto com o tipo de barba que era comumente visto entre mercadores viajantes, desde que se sentou, tinha ficado com um pouco mais de frio. Deixando um sopro escapar, que se tornaria neblina uma vez que o sol se punha, Lawrence olhou por cima do ombro para o leito da carroça.

Normalmente cheia até a borda com várias mercadorias, a carroça estava desfrutando de uma breve pausa. Tudo o que se destacava era a lenha e palha que fornecia calor à noite, junto com uma única bolsa, pequena o suficiente para uma criança carregar.

No entanto, o conteúdo deste saquinho era mais valioso do que uma carroça inteira carregada de trigo jamais seria. O saco estava cheio de pimenta de alta qualidade que valia cerca de mil trennis de prata. Se pudesse ser vendido em uma cidade montanhosa, poderia conseguir mil e setecentas moedas de prata, mas o saco estava sendo usado como travesseiro pela companheira de Lawrence, que continuava preguiçosamente a acariciar sua cauda.

Ela era pequena, com um rosto que era de certa forma imperioso, apesar da sua juventude aparente, lembrando uma rainha relaxando em seu palácio. O capuz de seu manto estava jogado para trás, expondo suas orelhas pontudas enquanto ela acariciava a sua cauda, com uma expressão preguiçosa.

Dada a cauda, as orelhas pontudas, e o fato de seu status como companheira de viagem de um mercador, alguém poderia compreensivelmente pensar em um cão, mas infelizmente ela não era nenhum cachorro.

Ela era aparentemente uma “loba sábia”, uma deusa loba das florestas do distante norte — mas Lawrence tinha suas dúvidas se ela poderia ser apropriadamente chamada de loba.

Afinal de contas, esta “loba” parecia ser uma jovem garota. Chamá-la de loba parecia um pouco impreciso.

“Chegaremos à cidade em breve. Tenha cuidado,” ele disse.

Seria desastroso se as orelhas e cauda da garota fossem vistas por outros. A verdade era que a sagacidade dela humilharia os instintos do melhor comerciante, assim Lawrence não precisava avisá-la do perigo. No entanto, ela estava tão relaxada que ele simplesmente tinha que falar.

Lhe dirigindo um mero olhar, ela apenas deu um grande bocejo.

Concluindo o bocejo com uma exalação vaga, ela agora mordiscava como um cachorrinho a ponta branca de sua cauda castanha escura, como se ela coçasse. Ela não parecia ter a menor preocupação em “tomar cuidado”.

Tendo se apresentado como uma loba e possuindo estas orelhas e cauda, pelo menos Holo certamente relaxava despreocupadamente como um animal.

“...Hrm.”

Uma ligeira vocalização que poderia ter sido uma resposta (ou poderia simplesmente ter sido uma pequena declaração de vitória sobre a coceira) chegou aos ouvidos de Lawrence. Cansado de esperar pela resposta dela, olhou para a frente novamente.

Holo e Lawrence se conheceram duas semanas antes. Devido a um evento estranho em uma das vilas em que Lawrence parou, Holo se juntou a ele, e os dois tinham viajado juntos desde então. Com suas orelhas e cauda, no momento ela seria considerada um espírito maligno, e a Igreja procuraria acabar com sua vida para preservar a ordem.

Lawrence não tinha um pingo de dúvida de que ela era de fato uma loba e não uma simples garota, que acabou com orelhas de um lobo e uma cauda.

Apenas nove dias antes, na cidade portuária de Pazzio, quando uma confusão de moedas de prata estava chegando ao fim, ele tinha visto a verdadeira forma dela.

A enorme loba marrom chamada Holo que entendia a fala humana e possuía uma presença esmagadora que era inegavelmente uma deusa.

No entanto, Lawrence acreditava que sua relação com o Holo, a Sábia Loba deveria ser monetária, de parceiros que emprestam e pegam emprestado, de companheiros de viagem, e de amigos.

Ele olhou para trás novamente, Holo parecia ter pegado no sono. Apesar de suas pernas estarem cobertas pelas calças que usava sob o manto, este ainda estava atrelado ao redor da sua cintura por ter acariciado sua cauda mais cedo, e não havia como negar o fato de que a visão era um pouco libidinosa.

Sua expressão sonolenta era a própria imagem de indefesa, e juntamente com seu pequeno corpo, Holo parecia menos como um lobo e mais com o tipo de garota que um lobo provavelmente comeria.

No entanto, Lawrence não a subestimava.

Suas orelhas de lobo moveram de repente e ela se mexeu, puxando o capuz sobre a cabeça e colocando o seu manto para baixo para cobrir sua cauda.

Lawrence olhou adiante no ponto em que a estrada se aproximava de uma colina e se dobrava. Diante deles, a figura de um único comerciante a pé podia ser vista.

Avisar Holo tinha de fato sido desnecessário.

Holo, a Sábia Loba, tinha centenas de anos, e o jovem de 25 anos de experiência estavam longe de se igualar a ela.

No entanto, Holo parecia ser a mais jovem entre eles, e sua verdadeira idade era muitas vezes maior do que a que aparentava ter, um fato que ocasionalmente irritava Lawrence.

Era a esperança de Lawrence que Holo agisse mais de acordo com a aparência dela, obedecendo ele quando lhe fosse dito. Uma variedade de problemas poderia ter sido evitada dessa maneira, e a loba tinha que agradecê-lo por isso — mas infelizmente, o oposto era muito mais comum.

Lawrence olhou para o leito da carroça mais uma vez.

Apesar da natureza furtiva da espiada de Lawrence, Holo voltou seu olhar para onde ela estava deitada, enroscada em torno do saco de pimenta.

Ela lançou um sorriso mesquinho, como se dissesse que sim, ela podia ver tudo muito bem, antes de fechar os olhos mais uma vez.

Lawrence voltou a olhar para a estrada.

Talvez aproveitando o passeio da carroça, a cauda de Holo se mexia para frente e para trás.

A cidade adiante recebia o estranho nome de Poroson.

Além da cidade, ao norte e ao leste (eles viajariam para cidades e vilas que estavam muitos dias além dos planaltos a vista) as roupas e alimentação das pessoas mudariam — até mesmo os deuses adorados seriam diferentes. A dupla se encontraria em terras verdadeiramente estrangeiras.

Lawrence ouviu que Poroson até recentemente era conhecida como um portal para outro mundo.

Descendo para o oeste destes planaltos cobertos de rochas, poderia se encontrar terras abundantemente férteis e florestas em todas as direções. No entanto, a terra cercada como estava pelas rochas circundantes, forneciam poucas nascentes e era difícil cultivar. A única razão para se dar ao trabalho de fundar uma cidade aqui era a sua posição como passagem para um outro mundo.

Eles continuaram através dos campos. Lawrence podia ouvir os gritos fracos de cabras através da névoa da manhã enquanto contava as muitas lápides em forma de pilares. Os pilares foram esculpidos com os nomes de muitas gerações de sábios na longa história da Igreja e continuavam a purificar a terra ainda hoje.

Muito antes de ser conhecida como um portal para outro mundo, Poroson era uma terra santa para uma determinada fé pagã.

Muitos anos se passaram desde que a Igreja, seguindo a vontade de seu deus, enviou missionários para converter os pagãos, iniciando uma guerra para purificar esta terra contaminada por crenças impuras. Poroson foi um ponto de virada psicológica no processo da destruição da antiga fé. Uma vez que a Igreja estava a ponto de aniquilar a fé pagã na região, os sacerdotes ordenaram que uma cidade fosse fundada.

Poroson logo se tornou a área de teste para os missionários e cavaleiros em direção ao norte e ao leste atrás dos pagãos restantes, e ela chegou a ter a reputação de ser uma encruzilhada para pessoas e bens.

Os missionários com suas túnicas de eremita esfarrapadas e os cavaleiros com espadas justas em mãos, prontos para recuperar a terra em nome de seu deus, já não existiam mais.

Tudo o que passava pela cidade nestes dias eram bens, sal e ferro do norte e do leste, grãos e couro do sul e do oeste. As guerras santas do passado se foram há muito tempo, substituídas pelas contínuas idas e vindas de mercadores astutos.

A presença de Holo tornou necessário para Lawrence tomar estradas com pouco tráfego, mas ao longo de certas rotas comerciais antigas, eles continuamente passavam por carroças carregadas com mercadorias raras. Muitos dos têxteis que viam eram de qualidade particularmente elevada.

Apesar do ativo comércio, Poroson era uma cidade bastante modesta, graças aos hábitos de seus residentes. A riqueza do comércio provia um magnífico muro ao redor da cidade, mas as construções dentro dela eram de humildes pedras, e seus telhados eram cobertos de palha. É verdade que onde quer que bens e pessoas se cruzassem, dinheiro seria deixado para trás e a área vai prosperar, mas as circunstâncias de Poroson eram ligeiramente diferentes.

Os moradores eram todos bastante devotos e davam a maior parte de seu dinheiro para a Igreja. Além disso, Poroson não pertencia a uma nação em particular, mas sim a capital religiosa de Ruvinheigen ao noroeste, assim os dízimos não ficavam em sua própria igreja, mas fluíam para uma cidade maior. Na verdade, a Igreja também se ocupava dos impostos sobre a terra, de modo que Poroson nem sequer controlava suas próprias receitas fiscais.

Os moradores da cidade não tinham interesse em nada além de suas próprias vidas humildes.

Quando o sino soava através da névoa da manhã, os trabalhadores nos campos paravam seus trabalhos e se viravam em direção ao som, juntando suas mãos e fechando os olhos.

A esta hora em uma típica cidade, os comerciantes com o rosto avermelhado estariam disputando por uma posição na praça da cidade, mas aqui não havia tal comoção grosseira.

Sem querer se intrometer com as orações dos moradores, Lawrence parou sua carroça. Então juntou suas mãos e ofereceu uma prece a seu próprio deus.

O sino tocou uma segunda vez, e quando o povo voltou ao seu trabalho, Lawrence fez sua carroça andar novamente. De repente, Holo falou.

“Oh, então você é um homem religioso agora?”

“Vou orar para qualquer um que possa me prometer viagens seguras e bons lucros.”

“Eu posso te prometer uma boa colheita.”

Holo olhou para Lawrence enquanto ele olhava para ela com o canto do olho.

“Então você quer que eu reze para você?”

Holo conhecia e odiava a solidão sentida por deuses. Lawrence acreditava que ela não poderia estar falando sério, mas ele se aventurou a perguntar.

Suspeitava que estava brincando com ele por estar entediada.

Como esperado, a resposta veio em voz propositalmente doce.

“Sim, certamente quero.”

“Pelo que devo orar, então?” perguntou Lawrence, até agora acostumado com este tipo de tratamento de Holo

“O que você quiser. Posso fornecer uma colheita abundante, naturalmente, mas também viagens seguras não são problema para mim. Posso prever os ventos e a chuva e dizer se a água das nascentes é boa ou ruim. E sou a pessoa perfeita para se livrar de lobos e cães selvagens.”

Ela soava como uma jovem da vila exaltando suas virtudes para uma guilda mercante, mas Lawrence pensou por um momento antes de responder.

“Suponho que valeria a pena rezar por viagens seguras.”

“Valeria, não é?” respondeu Holo com um sorriso satisfatório, inclinando levemente a cabeça.

Ver seu sorriso inocente e despreocupado fez Lawrence se perguntar se ela não estava simplesmente tentando vangloriar suas próprias habilidades sobre o deus da Igreja. De vez em quando, Holo exibia uma certa infantilidade.

“Bem, então acho que vou orar por viagens seguras. Seria reconfortante ser capaz de evitar os lobos.”

“Mm. Viagens seguras, certo?”

“Certo.”

Lawrence puxou as rédeas para evitar um jumento pastando na grama.

A porta de entrada para as muralhas da cidade estaria diante deles em breve. O fim de uma fila de pessoas esperando para a inspeção era visível até mesmo na névoa da manhã.

Apesar de toda a cidade fazer parte da Igreja, muitos mercadores chegavam de terras pagãs, então Poroson era extremamente compreensível — a inspeção de bens era muito mais rigorosa do que a inspeção de pessoas. Lawrence estava calculando a provável taxa que cobrariam sobre a pimenta que ele carregava quando notou alguém o encarando ao lado. Havia apenas Holo.

“O que, é só isso?” sua voz soava um pouco irritada.

“Hm?”

“Estou perguntando se você precisa apenas de viagens seguras.”

Olhando fixamente para Holo por alguns momentos, Lawrence percebeu do que ela estava falando.

“O quê? Você quer que eu junte minhas mãos e ore?”

“Não seja ridículo,” disse ela com um olhar aborrecido. “Estou te garantindo uma viagem segura — certamente você não pensa que uma única e inútil oração é o suficiente.”

A mente de Lawrence virou como uma roda de água, quando ele chegou à conclusão óbvia.

“Ah, você quer uma oferenda.”

“Hee-hee-hee.” Holo deu uma risada satisfeita.

“O que você quer?”

“Carne seca de carneiro!”

“Você se empanturrou com isso ontem! Você comeu o que deveria ser equivalente a uma semana.”

“Eu sempre tenho espaço para a carne de carneiro.”

Nunca tímida, Holo lambeu sua mão com a lembrança da carne. Parecia que mesmo a nobre loba era um mero cão na presença de mantimentos secos.

“A carne cozida é boa também, mas simplesmente não consigo resistir a textura da carne seca. Se você rezar por viagens seguras, carne seca de carneiro é o preço.”

Os olhos de Holo brilhavam e sua cauda balançava inquieta debaixo de seu manto.

Lawrence a ignorou completamente, em vez disso olhou para as mercadorias carregadas no cavalo que estava sendo conduzido pelo mercador na frente deles. O dorso do cavalo empilhava uma enorme montanha de lã.

“E aquela lã — é boa ou ruim?”

Lã evidentemente remetia a ovelhas. Holo olhou para o monte de lã, com os olhos cheios de expectativa, antes de responder rapidamente.

“É muito boa — tão boa que quase posso sentir o cheiro da grama que elas comeram.”

“Imaginei. Minha pimenta deve alcançar um bom preço aqui.”

Se a lã era de alta qualidade, a carne seria excelente também. E enquanto a qualidade da carne subia, o seu preço também. Uma carne cara faria com que sua pimenta, que poderia ser usada para dar sabor e preservá-la, ainda mais valiosa, e Lawrence começou a se preparar para vender suas mercadorias.

“Além disso, a carne seca com muito sal é boa. Pouco de sal não é nada bom. Além disso, a carne dos flancos é a melhor, melhor do que a carne das pernas. Ei, você está ouvindo?”

“Hm?”

“Carne salgada! Dos flancos!”

“Você tem um gosto excelente. Isso vai nos custar um bocado.”

“Hah, é uma barganha pelo dobro do preço.”

Era verdade que carne de carneiro era uma pechincha se isso significasse que Holo garantiria viagens seguras. Afinal, sua verdadeira forma era uma loba gigante falante. Ela provavelmente poderia até mesmo protegê-lo de soldados hostis que dificilmente se distinguiriam de ladrões.

No entanto, Lawrence assumiu uma expressão propositadamente vazia ao olhar para Holo.

Seus olhos estavam ávidos pela comida imaginária. Ele não podia deixar de provocá-la.

“Bem, então você deve ter um bocado de dinheiro. Se tem tudo isso, talvez você deva me pagar.”

No entanto, seu oponente era uma sábia loba prudente. Ela logo percebeu o motivo.

Seu comportamento mudou assim que olhou para ele.

“Essa abordagem não funcionará mais.”

Aparentemente, ela tinha aprendido com o incidente das maçãs. Lawrence mordeu a língua em irritação, com o rosto taciturno.

“Você deveria ter pedido educadamente em primeiro lugar. Teria sido muito mais charmoso.”

“Então se eu for charmosa o suficiente ao pedir, você vai comprar um pouco para mim?” perguntou Holo sem um traço de charme.

Lawrence fez seu cavalo prosseguir quando a linha avançava e respondeu categoricamente, “Claro que não. Você poderia aprender alguma coisa com as vacas e ovelhas — tentar ruminar seu pedido, hm?”

Ele sorriu para si mesmo, orgulhoso de sua sagacidade — mas o rosto de Holo ficou branco de raiva, e sem uma palavra, lá no acento da carroça, ela pisou em seu pé.

A estrada era nada mais do que terra batida, as casas simples eram feitas de pedra rústica e palha com grama.

O povo de Poroson comprava nada além das necessidades básicas nas tendas dos comerciantes, por isso haviam surpreendentemente tão poucas barracas.

Um bom número de pessoas se movia na cidade, entre eles mercadores com carroças ou com as costas totalmente carregadas, mas a atmosfera parecia sugar a conversa de uma cidade normal como algodão, portanto era estranhamente quieto.

Era difícil acreditar que esta cidade tranquila, simples e orgulhosa era um nexo do comércio exterior que ganhava quantias estonteantes de dinheiro todos os dias.

Afinal, os missionários cujos sermões de esquina eram largamente ignorados em outras cidades podiam contar com a gratidão das multidões atentas por aqui — então como o lucro era tão alto?

Para Lawrence, a cidade era nada menos do que um mistério.

“Que lugar tedioso,” veio a avaliação de Holo da cidade anormalmente religiosa.

“Você só está dizendo isso porque não tem nada para comer.”

“Você fala como se eu não pensasse em mais nada.”

“Então vamos escutar um sermão?”

Pouco mais à frente deles, um missionário pregava para uma multidão, uma mão sobre um livro de escrituras.

Os ouvintes não eram apenas pessoas da cidade — haviam vários mercadores cujas orações normalmente se dedicavam apenas ao seu próprio lucro.

Holo os olhou com desgosto e disse.

“Ele é jovem demais para me dar um sermão. Quem sabe daqui a quinhentos anos.”

“Eu diria que você precisa ouvir um sermão sobre moderação.”

Brincando de braços cruzados com a faixa de seda na cintura, Holo colocou a mão à boca e bocejou para sugestão de Lawrence. “Ainda sou uma loba. Sermões são complicados e difíceis para nós entendermos,” ela disse descaradamente, esfregando os olhos.

“Bem, até onde os ensinamentos de deus sobre a moderação vão, eles são mais persuasivos aqui do que em qualquer outro lugar, eu acho.”

“Hm?”

“Quase todo o dinheiro feito aqui flui para a sede da Igreja a noroeste, Ruvinheigen — aquele é um lugar de onde não tenho o menor interesse de ouvir um sermão.”

A capital da Igreja de Ruvinheigen era tão próspera que alguns diziam que suas paredes eram de ouro. Os escalões superiores do Concílio da Igreja que controlavam a região se envolveram no comércio para bancar a subjugação dos pagãos, e os padres e bispos de Ruvinheigen eram capazes de humilhar os comerciantes.

Lawrence se perguntou se era justamente por isso que as oportunidades de lucro por aqui eram tão absurdamente abundantes.

Só então, Holo inclinou a cabeça intrigada. “Você disse Ruvinheigen?”

“O quê, você conhece?” Lawrence deu a Holo um olhar de soslaio enquanto conduzia a carroça para a direita uma vez que a rua se dividia.

“Hm, me lembro do nome, mas não como uma cidade — era o nome de uma pessoa.”

“Ah, você não está errada. É uma cidade agora, mas era o nome de um santo que comandou um grupo de cavaleiros contra os pagãos. É um nome antigo — você já não ouve mais falar dele.”

“Hmph. Talvez seja dele que estou me lembrando.”

“Certamente não.”

Lawrence riu, mas logo percebeu — Holo havia viajado centenas de anos atrás.

“Ele era um homem com cabelo vermelho flamejante e uma grande barba espessa. Mal olhou para minhas belas orelhas e cauda antes de mandar seus cavaleiros atrás de mim com lanças e espadas. Me cansei, então tomei minha outra forma e arremessei os cavaleiros ao redor dele antes de afundar meus dentes no traseiro do Ruvinheigen. Ele era bastante magro e longe de ser saboroso.”

Holo disse com orgulho, enquanto relatava o conto galante. Surpreso, Lawrence não tinha resposta.

Na cidade sagrada de Ruvinheigen, havia registros do Santo Ruvinheigen ter o cabelo vermelho e a cidade em si tinha sido originalmente uma fortaleza contra os deuses pagãos.

No entanto, em suas batalhas contra as divindades pagãs, dizia-se que Santo Ruvinheigen perdeu seu braço esquerdo. É por isso que no grande mural na catedral da cidade, ele era retratado sem o braço esquerdo, com as roupas esfarrapadas, manchado de sangue, resolutamente ordenando seus cruzados contra os pagãos, com a proteção de Deus em suas costas.

Talvez a razão do Santo Ruvinheigen sempre ser retratado em roupas tão rasgadas que poderia muito bem estar nu, era porque Holo as tinha destruído. Até porque sua verdadeira forma era a de um lobo gigante. Era fácil imaginá-la deixando alguém ensanguentado depois de brincar um pouco.

Se Holo disse a verdade, provavelmente Santo Ruvinheigen tinha se envergonhado de ser mordido em suas nádegas e omitiu essa parte da história. Nesse caso, o conto do santo perder seu braço esquerdo era uma pura invenção.

Teria Holo mordido o verdadeiro Santo Ruvinheigen?

Ouvindo a história por trás da história, Lawrence riu.

“Oh, mas espere um momento —” disse Holo.

“Hm?”

“Quero que você saiba que eu só o mordi. Não o matei,” disse Holo rapidamente, antecipando a reação de Lawrence.

Por um momento, Lawrence não entendeu o porquê disso, mas logo percebeu.

Deve ter assumido que ele ficaria zangado se ela matasse um de seus companheiros humanos.

“Você é atenciosa nos momentos mais estranhos,” disse Lawrence.

“É importante,” disse Holo, com o rosto sério o suficiente para que Lawrence não a provocasse.

“De qualquer forma, essa é de fato uma cidade tediosa. O meio da floresta é mais animado do que aqui.”

“Eu vou vender a minha pimenta, pegar uma nova mercadoria, e nós iremos para Ruvinheigen, então apenas aguente um pouco mais.”

“É uma grande cidade?”

"Maior até do que Pazzio — mais propriamente uma cidade do que uma vila. É lotada de pessoas e tem muitas lojas.”

O rosto de Holo se iluminou. “Você acha que eles têm maçãs?”

“É difícil dizer se estarão frescas. Com o inverno chegando, acho que elas serão colocadas em conserva.”

“...em conserva?” disse Holo, duvidosa. Nas terras do norte, o sal era o único método de conservação, de modo que ela assumiu que as maçãs em conserva também usariam sal.

“Eles usam mel,” disse Lawrence.

Pop! fizeram os ouvidos de Holo, se mexendo rapidamente sob a capa que usava.

“Peras em conservas são boas também. Além disso, hmm, eles são um pouco raros, mas já vi pêssegos em conserva. Agora isso é algo refinado. Eles cortam os pêssegos em pedaços finos, colocam em um barril com uma camada de amêndoas ou figos, em seguida, preenchem os espaços com mel, e fecham o barril. Leva cerca de dois meses para que fique pronto para comer. Só experimentei uma vez, não há nada nesse mundo que se compare com a doçura que você sente quando coloca um em sua boca, é tão doce que a Igreja estava considerando bani-los... Ei, você está babando.”

Holo fechou a boca assim que Lawrence falou.

Ela deu um olhar nervoso ao redor, em seguida, olhou para Lawrence em dúvida. “Você...você está brincando comigo, não está?”

“Você não é capaz dizer se estou mentindo?”

Holo cerrou os dentes, talvez por não ter como responder.

“Eu não estou mentindo, mas dá para saber se eles realmente têm conservas. De qualquer modo, elas são para os nobres ricos. Não é algo que fica na frente de uma loja.”

“Mas e se estiver?”

Swish, Swish.... a cauda de Holo balançava para frente e para trás sob seu manto tão rapidamente que parecia ter vida própria. Seus olhos estavam úmidos e turvos transbordando expectativa.

O rosto de Holo estava tão próximo ao de Lawrence que ela descansou a cabeça em seu ombro.

Seus olhos estavam desesperadamente sérios.

“... Tudo bem, tudo bem! Vou comprar um pouco para você!”

Holo agarrou o braço de Lawrence com força. “Você tem que comprar!”

Ele sentiu que se olhasse para ela seria mordido.

“Um pouco! Só um pouco!” disse Lawrence. Não ficou claro se Holo estava ouvindo ou não.

“Então isso é uma promessa! Você prometeu!”

“Ok, ok!”

“Então vamos nos apressar! Depressa, agora!”

“Pare de me agarrar!”

Lawrence a afastou, mas a mente de Holo estava em outro lugar. Seu olhar parecia se perder ao longe e murmurou enquanto mordiscava a unha de seu dedo médio.

“Elas podem ter se esgotado. Se chegarmos a isso...”

Lawrence estava começando a se arrepender de ter falado sobre as conservas de pêssego com mel, mas já era tarde demais para se arrepender. Caso se atrevesse a sugerir que não compraria nada, parecia provável que ela rasgaria sua garganta.

Não importava se a conserva de pêssego com mel eram ou não algo que mercadores viajantes pudessem pagar.

“Não é uma questão de terem vendido tudo — eles podem nem ter,” disse Lawrence. “Só entenda isso.”

“Estamos falando de pêssegos e mel, senhor! Não posso acreditar até ver com meus próprios olhos. Isso demanda crença. Pêssegos e mel.”

“Você está pelo menos me ouvindo?”

“Ainda assim, é difícil abrir mão das peras,” disse Holo, voltando-se para Lawrence e olhando para ele.

A única resposta de Lawrence foi um longo e sofrido suspiro.

 

Lawrence planejava vender sua pimenta para Companhia Latparron, cujo nome era tão estranho quanto a cidade em que ela estava localizada — Poroson.

Se fosse rastrear o nome, certamente voltaríamos para o tempo antes de Poroson ser uma cidade e apenas os pagãos habitavam a área. Os nomes estranhos eram tudo o que restava do passado. Afinal, todo mundo aqui era um verdadeiro crente da Igreja, desde do topo de suas cabeças até as pontas dos seus dedos. A Companhia Latparron logo teria seu quinquagésimo mestre e cada um parecia mais devoto que o anterior.

 Portanto, Lawrence mal chegou na companhia — que não visitava fazia meio ano — ele foi recebido com louvor pelo recém-chegado sacerdote, cujos sermões ele simplesmente tinha que ouvir, pois não precisamos salvar nossas próprias almas?

Ainda pior, o mestre da companhia Latparron parecia ter confundido Holo em sua túnica por uma freira em peregrinação e a incentivou a ministrar Lawrence também.

Holo aproveitou a oportunidade para repreender Lawrence, ocasionalmente sorrindo de forma que só ele pudesse ver.

Depois de algum tempo, sua pregação terminou, e Lawrence jurou a si mesmo que não gastaria nenhuma moeda em conservas de pêssego com mel.

“Bem, isso foi demorado, mas vamos falar de negócios agora?”

“Eu aguardo sua boa vontade,” disse Lawrence, claramente cansado — mas o mestre Latparron estava focado em negócios agora, Lawrence não podia baixar a guarda.

Era possível que o longo sermão do mestre era uma tática para abaixar a guarda de seus oponentes, os transformando em presas fáceis.

“Então, que mercadorias você me trouxe hoje?”

“Aqui,” disse Lawrence, recuperando a compostura e pegando o saco lotado de pimenta.

“Oh, pimenta!”

Lawrence escondeu sua surpresa com o palpite correto do mestre a respeito do conteúdo do saco. “Você conhece bem seus produtos,” ele disse.

“É o cheiro!” disse o mestre, com um sorriso ardiloso — mas Lawrence sabia que pimenta ainda por moer cheirava pouco.

Lawrence deu um olhar de soslaio para Holo, parecia que ela estava se divertindo.

“Parece que ainda sou um novato,” disse Lawrence.

“Apenas uma questão de experiência,” disse o mestre. Até onde Lawrence poderia dizer dos modos simples do homem, seu engano em confundir Holo com uma freira também pode ter sido fingimento.

“Ainda assim, Sr. Lawrence, você sempre traz os melhores produtos no momento mais oportuno. Pela graça de Deus, o feno cresceu bem este ano, e os porcos tem engordado apenas andando pelas ruas. A demanda de pimenta subirá por um tempo. Se você tivesse chegado aqui mesmo uma semana mais cedo, eu seria capaz de pegá-las da sua mão por uma mixaria!”

Lawrence só poderia oferecer um penoso sorriso em resposta ao homem alegre. O mestre da Latparron tinha tomado o controle completo da conversa. Agora ele poderia usar agressivas táticas de negociação. Seria difícil para Lawrence recuperar a vantagem.

Comerciantes como estes de pequenas companhias faziam a vida de um mercador mais dura.

“Certo, então, vamos tomar as medidas. Você tem uma balança?”

Ao contrário dos cambistas cuja reputação depende da precisão de suas balanças, as balanças que os comerciantes traziam eram manipuladas como se isso fosse natural. Com produtos como pimenta ou pó de ouro, um pequeno “ajuste” na gradação de uma balança pode fazer uma grande diferença, por isso, o comprador e o vendedor pesavam itens em suas próprias balanças.

No entanto, não era todo dia que Lawrence tratava com produtos de alto preço, como pimenta, então ele não tinha nenhuma balança.

“Não, não tenho uma balança — eu confio em Deus.”

O mestre sorriu e acenou para a resposta de Lawrence. Havia dois conjuntos de balanças em uma prateleira, e ele deliberadamente trouxe o conjunto mais afastado.

Embora ele tomasse cuidado para não demonstrar, Lawrence suspirou internamente em alivio.

Mesmo que ele fosse o mais devoto e fiel seguidor dos ensinamentos da Igreja, um comerciante ainda era um comerciante. Sem dúvidas, o primeiro conjunto de balanças havia sido adulterado. Se a pimenta de Lawrence foi pesada em tal balança, não havia como dizer o quanto ele iria perder. Poderia ser tão ruim quanto uma moeda de prata para cada pimenta.

Lawrence deu a Deus os seus agradecimentos.

“Mesmo se você acreditar em um Deus justo, o homem deve ser capaz de discernir se a escritura diante dele é verdadeira ou falsa. Um homem justo ainda ofenderá Deus caso se comprometa a uma falsa escritura,” disse o mestre, colocando a balança em uma mesa próxima.

Ele provavelmente estava tentando tranquilizar Lawrence dizendo que suas balanças eram precisas.

Embora um comerciante estivesse sempre tentando ser mais esperto que o outro, isso não significa que confiança nunca era necessária.

“Se você me der licença por um momento,” disse Lawrence, de modo que o mestre assentiu e deu um passo para trás.

Sobre a mesa havia um belo conjunto de balança de bronze, que brilhava como ouro.  Era o tipo de jogo que esperaria ver nos escritórios de um cambista rico em uma grande cidade e parecia um deslocado nesta loja.

A frente da loja da Companhia de Comércio Latparron era tão comum que era facilmente confundida com uma casa simples, e os únicos empregados eram o mestre e alguns homens. O interior da loja também era discretamente mobiliado com duas prateleiras situadas contra a parede, jarros que pareciam conter especiarias ou alimentos secos e outros pacotes de retenção de documentos, papel e pergaminho.

Embora as escalas não parecessem estar em sintonia com o resto da loja, o equilíbrio dessas balanças estava correto.

As balanças equilibradas no centro com placas de contrapesos para a esquerda e direita.

Elas não parecem ter sido adulteradas.

Aliviado, Lawrence olhou para cima e sorriu. “Vamos prosseguir com a pesagem?”

Não havia nenhuma razão para não prosseguir.

“Vamos ver, precisamos de papel e tinta. Espere um momento, por favor,” disse o mestre, caminhando para o canto da sala e pegando um pote de tinta e papel da prateleira. Lawrence estava olhando à toa quando sentiu um puxão em sua manga e saiu de seu devaneio. Não havia mais ninguém lá — era Holo.

“O que foi?”

“Estou com sede.”

“Você vai ter que esperar,” disse Lawrence rapidamente — mas imediatamente repensou.

Ela era Holo, a Sábia Loba. Ela não faria uma reclamação assim do nada. Tinha que haver algum motivo por trás disso.

Depois de mudar de ideia, Lawrence estava prestes a pedir para ela se explicar quando o mestre falou de novo.

“Até mesmo os santos necessitam de água para viver. Gostaria de água ou talvez vinho?”

“Água, por favor,” disse o Holo com um sorriso. Evidentemente, ela só estava com sede.

“Só um momento, então.” O mestre saiu e deixou na mesa o papel do contrato, a tinta e a pena e saiu da sala para buscar a água.

Neste sentido ele não parecia um comerciante, mas o modelo de um devoto da Igreja.

No entanto, mesmo Lawrence ficou impressionado com a fé do mestre, ele olhou para Holo.

"Eu sei que pode não parecer assim para você, mas para nós comerciantes este é um campo de batalha. Você poderia ter a água que quisesse mais tarde.”

“Mas estou com sede,” disse Holo, desviando o olhar teimosamente — ela odiava ser repreendida. Apesar de sua inteligência assustadora, ela poderia ser estranhamente infantil, às vezes. Não fazia sentido dizer mais nada.

Lawrence suspirou, e para afastar a sua frustração com Holo, focou sua mente em estimar quanta pimenta ele tinha.

Por fim, o mestre voltou, trazendo uma bandeja de madeira com um jarro de ferro e copos. Lawrence estava envergonhado por ter feito um sócio de negócios realizar uma tarefa tão servil, mas o rosto sorridente do mestre parecia ter deixado os negócios de lado por um momento.

“Bem, então, vamos prosseguir com a pesagem?”

“Certamente.”

Eles começaram a pesar a pimenta enquanto Holo olhava, encostada na parede a uma curta distância, com um copo de ferro entre as mãos.

A pesagem era uma tarefa bastante simples, com um peso conjunto a ser preparado de um lado das escalas e o outro sendo carregado com pimenta até que ficasse equilibrado.

Era simples, mas era cansativo ver o prato do contrapeso balançar, assumir que estava bom o suficiente e avançar para a próxima carga, um comerciante poderia involuntariamente podia causar uma perda significativa a si mesmo.

Então tanto o mestre quanto Lawrence cuidadosamente equilibraram cada carga até que ambos estivessem satisfeitos antes de prosseguir para a próxima.

Por toda a sua simplicidade, a pesagem era um trabalho sensível, levou quarenta e cinco pesagens para terminar. A pimenta variava em função da sua origem, mas um punhado do produto de Lawrence equilibrado aproximadamente com único contrapeso tinha o valor de cerca de uma moeda lumione de ouro. Com base em seus conhecimentos mais recente de taxas de câmbio, um lumione equivalia a trinta e quatro e dois terços de trenni, a moeda de prata comumente usada na cidade portuária de Pazzio. Quarenta e cinco pesagens nessa proporção dariam 1.560 trenni.

Lawrence tinha comprado a pimenta por mil trenni, o que significava um lucro de 560 peças. O comércio de especiarias era realmente delicioso. Claro, ouro e joias — matérias-primas para produtos de luxo — poderiam conseguir duas ou três vezes o seu preço de compra inicial, por isso este era um ganho baixo em comparação, mas para um mercador viajante que passava seus dias cruzando as planícies, era lucro suficiente. Alguns mercadores transportavam aveia de menor qualidade em suas próprias costas, arruinando a si mesmos enquanto cruzavam as montanhas, apenas para conseguir um lucro de 10 por cento quando vendiam na cidade.

De fato, em comparação com aquilo, conseguir mais de quinhentas moedas de prata movendo apenas um leve saco de pimenta era quase bom demais para acreditar.

Lawrence sorriu enquanto colocava a pimenta de volta no saco de couro.

“Certo, isso foi equivalente a quarenta e cinco medidas. De onde esta pimenta veio?”

“Ela foi importada de Ramapata, no reino de Leedon. Aqui está o certificado de importação da Companhia Milone.”

“De Ramapata? Viajou um bocado, então — mal posso imaginar o lugar,” ponderou o mestre, estreitando os olhos e sorrindo enquanto pegava o pergaminho certificado que Lawrence lhe ofereceu.

Comerciantes da cidade, muitas vezes passam a vida inteira nas vilas em que nasceram. Há alguns que saem em peregrinação após a sua aposentadoria, mas não havia tempo para essas coisas quando estavam trabalhando ativamente.

No entanto, mesmo Lawrence o mercador viajante sabia pouco do reino de Leedon, ele sabia que era famosa por suas especiarias. Para chegar lá a partir de Pazzio, era preciso descer o rio até alcançar a costa e, em seguida, subir a bordo de um veleiro que viaje longas distâncias ao sul e atravessar dois mares distintos, um percurso de cerca de dois meses.

A linguagem era diferente, é claro, e aparentemente era quente como o verão durante todo o ano em Leedon, e a população era permanentemente bronzeada, quase negos, desde o momento em que nasceram.

Parecia inacreditável, mas havia especiarias, ouro, prata, ferro que supostamente vinham de lá, e a Companhia Milone atestou a origem da pimenta, cujo certificado dizia ser Ramapata.

Esse país era real?

“O certificado parece autêntico,” disse o mestre.

Os tipos de notas de câmbio, notas promissórias e contratos de que passavam por comerciantes na cidade eram enormes. Supostamente eles poderiam até reconhecer contas assinada por pequenas empresas em terras distantes para não falar de grandes organizações que tinham suas principais filiais em um país estrangeiro.

Reconhecer o selo de uma companhia tão grande como a Milone seria algo fácil. Assinaturas eram importantes, mas a alma de um contrato era o selo.

“Certo, então, vai ser um lumione por medida. Pode ser?”

“Pode me dizer a cotação para o lumione?” Lawrence perguntou de repente, mesmo que tivesse alguma ideia do valor de mercado.

Moedas de ouro geralmente eram usadas como moeda contábeis — isso quer dizer que eram a base para o cálculo dos valores das muitas outras moedas no mundo. Os cálculos eram realizados em moeda de ouro e então convertidos em outras moedas mais convenientes. Claro que, nesta situação o valor mercado da moeda em questão se tornava um problema.

Lawrence ficou subitamente muito nervoso.

“Sr. Lawrence, se bem me lembro, você segue o caminho de São Metrogius nos negócios, correto?”

“Sim. Talvez seja a proteção de São Metrogius que mantém minhas viagens seguras e meus negócios também.”

“Então, presumo que queira o pagamento em trenni de prata?”

Muitos mercadores que viajam querem repetir os sucessos do passado, e assim, em vez de se mover aleatoriamente de uma cidade para outra, eles trilharam os caminhos dos antigos santos.

E assim a moeda que usavam em um determinado momento era bastante previsível.

Para o mestre da Companhia de Comércio Latparron chegar a essa conclusão tão rapidamente significava que ele era um comerciante muito astuto, de fato.

“Em trenni de prata,” ele continuou “a taxa atual é de trinta e dois e cinco sextos.”

A taxa era menor do que Lawrence se lembrava. Mas, dada a importância desta cidade como centro de comércio, estava dentro da margem que ele poderia permitir.

Nos lugares onde as moedas de muitos lugares distintos convergiam, a taxa de câmbio em relação a moedas contábeis tende a ser menor.

Lawrence fez os cálculos em sua cabeça na velocidade da luz. Nesta taxa ele receberia 1.477 trenni pela sua pimenta.

O valor era menor do que havia previsto, no entanto era um preço tolerável. Seria um grande passo para realizar o sonho de abrir sua própria loja.

Ele respirou fundo e estendeu a mão direita em direção ao mestre. “Este preço está bom, senhor.”

O rosto do mestre abriu em um sorriso, e ele aceitou a mão de Lawrence. O espírito de um comerciante nunca se sentia melhor do que no momento de um contrato de sucesso.

Este era um desses momentos.

“Ughh...” Holo interrompeu com uma voz preguiçosa.

“Algum problema?” perguntou o mestre, preocupado enquanto ele e Lawrence olhavam para Holo, que se inclinava cambaleando contra a parede.

Naquele instante, Lawrence lembrou da venda das peles para a Companhia Milone e ele ficou subitamente nervoso.

O mestre da Companhia Latparron era um comerciante sagaz que administrava sua loja sozinho. Tentar vencê-lo provavelmente acabaria mal. Tendo Holo ao seu lado não significava que tinha de tentar enganar os seus parceiros comerciais todas as vezes.

Ao acabar de pensar nisso Lawrence, ele parou. Holo estava agindo de forma estranha.

“U-ugh... eu, eu estou tonta...”

Holo segurava o copo enquanto sua instabilidade piorava, e a água parecia que ia cair a qualquer momento.

O mestre caminhou até ela, olhando preocupado enquanto segurava o copo e apoiava seus finos ombros.

“Você está melhor?”

“...Um pouco. Obrigada,” disse Holo fraca, finalmente ficando de pé novamente com a ajuda do mestre.

Ela parecia cada vez mais uma freira sofrendo de uma crise de anemia. Mesmo alguém que não era tão devoto como o mestre iria querer ajudá-la, mas Lawrence notou algo estranho.

Debaixo do capuz de Holo, suas orelhas de loba não estavam tão abaixadas.

“Uma longa viagem cansaria até mesmo o homem mais forte,” declarou o mestre.

Holo assentiu levemente, em seguida, falou. “Posso estar cansada da viagem. Minha visão parece estar turvando de repente...”

“Isso não é bom. Ah, eu tenho algo.... devo trazer um pouco de leite de cabra? Está fresco, foi da ordenha de ontem,” disse, oferecendo uma cadeira para ela e rapidamente foi buscar o leite, sem esperar pela sua resposta.

Lawrence certamente foi o único que previu que Holo ia faria outra coisa quando ela não sentou na cadeira oferecida e, em vez disso colocou o copo de ferro sobre a mesa.

“Senhor,” disse ela ao mestre, que estava de costas. “Acredito que ainda estou um pouco tonta.”

“Céus. Devo chamar um médico?” perguntou o mestre, olhando por cima do ombro com o coração cheio de preocupação.

Debaixo do capuz, a expressão de Holo não demonstrava nem um pouco a tontura que fingia.

“Olha. Ele está se inclinando diante dos meus olhos,” disse Holo, levantando o copo e derramando algumas gotas sobre a superfície da mesa — de onde fluíram para a direita de Holo e para da borda da mesa, pingando no chão com um pequeno plip.

“O qu —!” Lawrence caminhou rapidamente para a mesa e pôs a mão sobre a balança.

Era o mesmo conjunto de balança que ele tinha calibrado cuidadosamente a precisão mais cedo. Se estivessem um pouco fora, isso significaria uma grande perda para ele, e então ele verificou a precisão da balança com cuidado — mas elas estavam perfeitamente alinhadas com a direção em que a água fluía para fora da mesa.

Isto conduziu a uma única conclusão.

A pesagem tinha acabado, e as placas da balança estavam vazias, exceto pelos contrapesos sobre elas. Lawrence pegou o conjunto de escalas e a girou para se alinharem precisamente na direção oposta.

As balanças inclinaram devido ao movimento súbito, mas quando colocadas de volta na mesa, seu movimento foi diminuindo até eventualmente parar.

De acordo com os contrapesos, os pratos se equilibraram perfeitamente — mesmo com a inclinação da mesa. Se tivesse sido calibrada precisamente, a leitura estaria desbalanceada pela inclinação da mesa.

As escalas claramente haviam sido adulteradas.

“Então, eu bebi água ou foi vinho?” perguntou Holo.

Ela olhou de volta para o mestre — assim como Lawrence.

A expressão do mestre congelou, e o suor apareceu em sua testa.

“O que eu bebia era vinho. Não era?” A voz de Holo soou tão divertida que até mesmo o sorriso dela era praticamente audível.

O rosto do mestre embranqueceu com uma palidez mortal. Se o fato de que usava balanças fraudulentas para enganar mercadores fosse levado ao público em uma cidade temente a Deus como esta, todos os seus bens estariam perdidos e teria de enfrentar a falência imediata.

“Há um ditado que diz que ninguém bebe menos do que o mestre de uma taverna cheia — talvez seja isso que isso significa,” disse Lawrence.

O mestre estava como uma lebre acuada, incapaz de gritar mesmo quando as presas do predador perfurassem sua pele.

Lawrence caminhou de volta para o mestre com um sorriso.

“O segredo da prosperidade é ser o único sóbrio, eh?”

Escorria tanto suor da testa do mestre que você poderia desenhar sua imagem.

“Parece que estou bêbado pelo mesmo vinho da minha companheira. Duvido que nós sejamos capazes de lembrar de tudo que vimos ou ouvimos falar aqui. Embora em troca eu possa ser um pouco irracional.”

“O-o que você...?” o rosto do mestre tremendo de medo.

Entretanto, conseguir uma vingança fácil aqui seria falhar como mercador.

Não havia sequer um pingo de raiva por ser enganado do ponto de vista de Lawrence.

Tudo o que pensava eram frios cálculos de quanto lucro a mais ele poderia extrair de medo de seu oponente.

Esta era uma oportunidade inesperada.

Lawrence se aproximou do homem, ele ainda continuava sorrindo, seu tom ainda era de um comerciante em negociação.

“Vamos ver... acho que a quantidade que concordamos, mais a quantidade que você ia ganhar, mais, oh... você vai nos deixar comprar o dobro da margem.”

Lawrence estava exigindo ser autorizado a comprar mais do que ele tinha dinheiro para investir. É evidente que quanto mais dinheiro um mercador pudesse investir, maior o lucro que poderia conseguir. Se ele pudesse comprar um bem que vale “duas moedas de prata,” por uma única moeda, ele duplicaria o seu lucro, puro e simples.

Mas comprar o valor de duas peças com uma, ele obviamente, precisa de garantia. Uma vez que os mercadores vivem essencialmente de empréstimos de dinheiro, o credor tem o direito de exigir garantia de quem toma o empréstimo.

No entanto, o mestre não estava em posição de fazer tal demanda, razão pela qual Lawrence pressionava uma posição tão irracional. Apenas um mercador de terceira categoria não tiraria vantagem da fraqueza.

“Eu, uh, er, eu não posso...”

“Você não pode fazer isso? Oh, que pena... eu estou me sentindo muito mais sóbrio.”

O rosto do mestre estava tão molhado que parecia quase derreter com o suor se misturando às lágrimas.

Seu rosto era uma máscara de desespero, ele caiu, derrotado.

“Quanto aos bens, vamos ver. Dada a quantidade, talvez algumas armas de alta qualidade? Certamente você tem um monte de mercadorias destinadas a Ruvinheigen.”

“...Armas, você diz?”

O mestre olhou para cima, parecendo ver uma luz de esperança. Ele provavelmente tinha assumido que Lawrence não planejava em pagá-lo de volta.

“Elas são sempre uma boa aposta para conseguir um lucro garantido, e posso obter o empréstimo de volta de forma rápida. O que me diz?”

Ruvinheigen servia como base de reabastecimento para os esforços de subjugar os pagãos. Todos os itens que serviram na luta voavam das prateleiras durante todo o ano. Era difícil sofrer perdas de depreciação quando vendia esses produtos.

Desde que Lawrence seria capaz de comprar o dobro da quantidade normal do empréstimo, ele teria o dobro do seguro contra a depreciação, o que fazia das armas uma boa escolha para uma compra de empréstimo.

O rosto do mestre mudou para o de um comerciante com astúcia calculista. “Armas...você disse?”

“Tenho certeza que há uma companhia comercial em Ruvinheigen com conexões com a sua, vender para eles equilibraria os registros.”

Resumindo, depois que Lawrence vendesse as armas que ele comprasse com o dinheiro emprestado da Companhia Latparron para outra empresa em Ruvinheigen, ele não teria que voltar todo o caminho até Poroson para devolver o dinheiro.

Em determinadas situações, o dar e receber de dinheiro poderia ser conseguido com nada mais do que entradas em um registro.

Esse era o grande triunfo da classe mercantil.

“O que me diz?”

Por vezes, o sorriso de negócios de um mercador poderia ser algo intimidante. Mesmo entre esses sorrisos, o sorriso de Lawrence ao encurralar o gerente da Companhia Latparron era excepcionalmente intimidante, que — incapaz de recusar — finalmente concordou.

“Meu muito obrigado! Eu gostaria que preparasse os bens imediatamente, espero partir para Ruvinheigen muito em breve.”

“E-entendo. Er, sobre o preço...”

“Vou deixar isso com você. Afinal, eu confio em Deus.”

O lábio do mestre se contorceu amargamente no que deveria ser um sorriso penoso. Era inevitável que ele iria avaliasse as armas a preço baixo.

“Vocês dois terminaram?” disse Holo, supondo que a “negociação” agressiva havia acabado. O mestre deu um suspiro de desânimo. Parecia que ainda havia uma pessoa que queria falar.

“Eu diria que minha embriaguez está acabando também,” disse Holo, sua cabeça inclinando para o lado de maneira encantadora — mas ela deveria parecer o diabo para o mestre.

“Um bom vinho e carne de carneiro faria muito bem para o meu espírito. Certifique-se que seja carne dos flancos!”

O mestre apenas assentiu para a demanda casual dela.

“Faça isso rápido, agora,” disse o Holo, parcialmente em tom de brincadeira, mas ouvir essas palavras da garota que habilmente viu através de suas balanças adulteradas fez o mestre se virar e sair correndo da sala como um porco chutado no traseiro.

Não se pode deixar de achar que o mestre estava exagerando um pouco, mas se sua fraude fosse descoberta pelo público, ele estaria arruinado. Nesse caso, um pouco de subordinação era um pequeno preço a pagar.

Lawrence teria sofrido um enorme golpe se o truque não fosse notado.

“Hee-hee. Pobre homem,” disse Holo com uma risada muito contente que a fazia parecer ainda mais vil.

“Você certamente tem um olhar afiado, como de costume. Eu não percebi nada.”

“Eu sou bela e o pelo da minha cauda é sedoso, mas meus olhos e ouvidos também são excelentes. Notei no momento em que entramos na sala. Suponho que tenha sido astuto o suficiente para enganar pessoas como você,” disse Holo, suspirando e acenando com a mão em desdém.

Lawrence teria ficado mais feliz se ela tivesse dito algo mais cedo, mas a realidade era que ele não tinha notado a fraude e que Holo que tinha evitado uma grande perda e a transformado em um grande ganho.

Não o mataria ser educado.

“Não tenho nada a dizer contra isso,” Lawrence admitiu. Os olhos de Holo brilharam dada sua mansidão inesperada.

“Oh ho! Vejo que amadureceu um pouco.”

Lawrence — de fato não tinha nada a dizer — só podia sorrir, envergonhado.

 

Há algo conhecido como “febre da primavera.”

É mais comum durante o inverno em lugares longe de rios ou mares. Com o congelamento dos córregos, as pessoas sobrevivem com carne salgada e pão duro todo o dia. Não que legumes não possam sobreviver à geada, mas é que era um produto melhor para ser vendido do que comido. Comer o produto não ajudaria no frio, mas com o dinheiro que se ganha com sua venda, lenha poderia ser comprada e fornos poderiam ser alimentados.

Porém, comer nada além de carne e beber nada além de vinho tem seu preço, na primavera, muitas erupções nas peles podem ser vistas.

Esta é a febre da primavera, a prova de negligenciar a saúde.

Naturalmente, é conhecimento geral que resistir à tentação da carne e o conforto do vinho pouparia você deste destino. Coma legumes e carne com moderação — como um sermão da Igreja no domingo.

Assim que a primavera chega, as pessoas que sofrem da febre primavera, muitas vezes, acabam terrivelmente repreendidas pelo padre. A gula é, afinal, um dos sete pecados capitais — independente do guloso saber ou não disso.

Lawrence deu um suspiro longo com o abuso de Holo.

Ela arrotou. “Whew... isso foi saboroso.” Ela estava de bom humor depois de mandar para baixo a carne de carneiro junto com um pouco de um bom vinho.

Não só era tudo de graça, mas depois de comer e beber até se empanturrar, ela poderia se enroscar no leito da carroça para uma soneca.

Mesmo o comerciante mais extravagante imporia limites a si mesmo como uma questão de disciplina, mas não Holo.

Batendo os pés em deleite, ela tinha comido e bebido com alegria e parou apenas para fazer uma pausa.

Lawrence pensava que se fosse suas provisões para a viagem, ela não teria comido o equivalente a três semanas — e ela bebeu tanto vinho que ele começou a se perguntar isso estava indo.

Se ela tivesse vendido a comida que extorquiu do mestre Latparron, ela teria pagado uma grande parte da sua própria dívida com Lawrence.

Este era só mais um motivo para a surpresa de Lawrence.

“Agora, ouso dizer vou tirar uma soneca,” disse Holo.

Lawrence não se preocupou em olhar para a fonte desta depravação exemplar.

Além de conseguir um bom vinho e carne de carneiro do mestre da Companhia Latparron, Lawrence tinha obtido uma grande carga de armas a um preço muito razoável. Ele e sua companheira deixaram a cidade de Poroson sem sequer esperar os sinos do meio-dia. Pouco tempo se passou desde então, e o sol agora estava sobre suas cabeças.

Com o céu claro e sol quente, o tempo estava perfeito para uma bebida ao meio-dia, seguida de um cochilo.

Devido à carga, a carroça estava em um estado de desordem, mas com vinho suficiente dentro dela, Holo provavelmente não se importava.

A estrada de comércio que os levaria para Ruvinheigen era cheia de curvas acentuadas e inclinações repentinas nas proximidades de Poroson, mas se suavizava e fornecia uma grande visão enquanto descia lentamente.

A estrada serpenteava adiante.

Era bem utilizada, o que a fazia ter uma superfície sólida com buracos que eram rapidamente preenchidos.

Mesmo que a sua “cama” estivesse repleta de espadas, Holo era facilmente capaz de tirar um cochilo em cima delas e passar a tarde toda assim desde que a estrada fosse suave.

E então havia Lawrence, que não tinha bebido nenhum vinho e passou o dia olhando para as costas de um cavalo, rédeas na mão. Seu ciúme fazia com que fosse fácil não olhar para Holo.

“Hum, eu deveria pentear a minha cauda,” disse Holo — sua cauda, a única coisa com que ela se preocupava. Ela a puxou para fora de suas vestes sem um pingo de preocupação.

Não que houvesse garantia, mas a vista abrangente significava que não havia perigo de ser surpreendido por um viajante que se aproximasse.

Holo começou a pentear a cauda, às vezes jogando uma pulga para fora ou parando para lamber o pelo para limpá-lo.

O cuidado que ela tinha com sua cauda era visível em seu silêncio, prestando atenção apenas no trabalho.

Ela penteou desde a base da cauda, que estava coberta de pelo castanho escuro, até finalmente alcançar sua ponta branca e fofa, e então de repente olhou para cima. “Oh, é mesmo.”

“...O quê?”

“Quando chegarmos à cidade seguinte, eu quero óleo.”

“...Óleo?”

“Mm. Ouvi dizer que seria bom para usar na minha cauda.”

Lawrence desviou o olhar de Holo sem palavras.

“Então você vai comprar um pouco para mim?” perguntou Holo com um sorriso encantador, sua cabeça inclinada.

Mesmo um homem pobre seria duramente pressionado a ceder a esse sorriso, mas Lawrence apenas olhou para ela com o canto do olho.

Números maiores que o sorriso dela dançavam diante de seus olhos — especificamente, a dívida que ela lhe devia.

“As roupas que você está vestindo agora, mais as outras roupas, o pente, a taxa de deslocação, o vinho e comida; — você já somou todos eles? Também há um imposto por pessoas quando entramos numa cidade. Certamente você não está me dizendo que não consegue somar,” disse Lawrence, imitando o tom de Holo, mas ela ainda sorria.

“Certamente posso fazer adição, mas sou melhor em subtração,” ela proclamou, então riu depois de um tempo.

Lawrence sabia que ela estava escondendo alguma réplica, mas seus modos estavam estranhos. Talvez ela ainda estivesse bêbada.

Ele olhou para os cantis de vinho que estavam na carroça. Eles haviam pegado cinco com o mestre Latparron, dois deles estavam vazios agora.

Não era impossível de imaginar porque ela estava bêbada.

“Bem, talvez você devesse tentar somar tudo o que você já usou. Se você é uma loba tão sábia, deve ser capaz de imaginar a minha resposta com o resultado.”

“Tudo bem, vou somar!” disse Holo com um sorriso e um aceno alegre.

Assim que Lawrence olhou para a frente de novo, pensando em como seria bom se ela fosse sempre tão agradável, Holo continuou.

“Você definitivamente vai comprar para mim,” ela disse.

Lawrence lançou um olhar de soslaio para espionar ela sorrindo para ele. Talvez ela realmente estivesse bêbada. Era um sorriso muito charmoso.

“Olha o que acontece com a inteligência da orgulhosa loba quando bebe vinho demais,” Lawrence murmurou para si mesmo. A cabeça de Holo caía de um ombro para o outro.

Se ela caísse da carroça poderia ser ferir. Lawrence estendeu a mão para segurá-la pelos ombros esguios, e Holo agarrou sua mão com uma rapidez que não era brusca como a de um lobo.

Surpreso, Lawrence olhou em seus olhos. Ela não estava bêbada, nem rindo.

“Ora é graças a mim que sua carroça está carregada com mercadorias compradas a um preço barato. Você está tendo puro lucro.”

Seu charme tinha desaparecido.

“C-com que base —”

“Você não deve me menosprezar. Certamente não acha que não percebi que você estava tentando tirar vantagem do mestre da companhia? Eu tenho uma mente afiada e olhos penetrantes, sim, mas não se esqueça, meus ouvidos são bons, também. Eu estava prestando atenção em sua negociação.” Holo sorriu desagradavelmente, mostrando suas presas. “Então você vai comprar um pouco de óleo para mim, não vai?”

Era verdade, Lawrence tinha tomado vantagem da fraqueza do mestre durante suas negociações, e também era verdade que as coisas foram como Lawrence esperava.

Ele se amaldiçoou por estar obviamente satisfeito ao assinar o contrato. Uma vez que alguém sabia que ia fazer um monte de dinheiro, eles se tornavam alvos óbvios.... era a natureza humana.

“Uh, er, bem, quanto você acha que me deve? Cento e quarenta pratas! Tem alguma ideia de quanto dinheiro é isso? E agora acha que vou gastar mais com você?”

“Oh? O que, quer que eu te pague de volta?” Holo olhou para Lawrence com uma expressão de surpresa leve, como se dissesse que ela podia pagar a qualquer hora que desejasse.

Não há ninguém neste mundo que não queira de volta o dinheiro que emprestou. Lawrence cerrou os dentes e olhou para Holo, enunciando a sua resposta com muito cuidado. “Mas é claro que sim.”

Se Holo pagasse de volta o que devia em uma única parcela, ele seria capaz de preencher sua carroça com os melhores bens, o que significaria mais lucros. Mais investimento era igual um retorno maior — o mundo de um mercador girava em torno disso.

No entanto, a expressão de Holo mudou completamente com as palavras de Lawrence. Ela o olhou friamente, como se dissesse: “Ah, então é assim.”

Lawrence hesitou com a mudança completamente inesperada.

“Então é assim que você esteve pensando,” disse Holo.

“O-o que você —”

Lawrence teria terminado com quer dizer, mas a resposta rápida de Holo o cortou.

“Bem, acho que se eu pagar minhas dívidas, serei uma loba livre. Só preciso te pagar.... vou tentar pagar você rapidamente.”

Ouvindo estas palavras, Lawrence compreendeu o que Holo queria dizer.

Alguns dias antes, durante a confusão em Pazzio, Lawrence tinha visto forma de lobo de Holo e ficou com medo. Profundamente magoada, Holo tentou deixar Lawrence, mas Lawrence a parou dizendo que ele a seguiria todo o caminho de volta até o norte para recolher o dinheiro que ela devia por destruir suas roupas.

“Aconteça o que acontecer, você vai me pagar,” ele tinha dito. “Me deixar agora não vai adiantar em nada.”

Holo ficou com Lawrence baseado no raciocínio de que fazê-lo ir até o norte por causa disso seria um incômodo, e Lawrence tinha pensado que o negócio sobre o pagamento da dívida era apenas um pretexto para os dois.

Não, ele acreditava nisso.

Ele acreditava que, mesmo que pagasse a dívida, ela ainda desejaria viajar com ele para as florestas do norte — apesar de que sua timidez a impediria de admitir isso.

Holo agora tinha virado o jogo contra ele. Ela usou a ideia que era dele contra ele mesmo.

Uma única palavra apareceu em sua mente.

Injusta. Holo era realmente injusta às vezes.

“Nesse caso, quando te pagar devo viajar para o norte sozinha, certo? Gostaria de saber como Paro e Myuri estão.”

Holo olhou para longe, propositadamente deixando um pequeno suspiro escapar.

Lawrence, perdido em palavras, olhou amargamente para a garota lobo que se sentava ao lado dele e se perguntou como retrucar.

Ele imaginou que, se fosse teimoso e exigisse que ela lhe pagasse agora e continuasse na provocação, Holo realmente faria isso — o que não era o que Lawrence queria. Era agora que deveria recuar.

Não havia realmente nada charmoso em Holo.

Lawrence olhou para ela, furiosamente tentando pensar em um retorno, mas Holo desviou o olhar obstinadamente.

Algum tempo passou.

“...Nós não decidimos um prazo para você me pagar. Contanto você me pague até chegarmos na floresta do norte é o bastante. Está feliz agora?”

Uma parte de Lawrence ainda era teimoso. Ele simplesmente não podia deixar a atrevida garota lobo ter tudo o que ela queria. Isto era o mais longe que poderia chegar.

Holo pareceu entender isso. Ela lentamente se virou e sorriu, satisfeita.

“É minha intenção pagá-lo quando chegarmos ao norte,” ela disse propositadamente, se aproximando dele. “E é a minha intenção te pagar de volta com juros, o que significa que quanto mais me emprestar, mais lucro você terá. Então você vai fazer isso por mim, sim?”

Os olhos de Holo encontraram os de Lawrence enquanto ela olhou para ele.

Eram lindos olhos com íris marrom-avermelhadas.

“O óleo, você quer dizer?”

“Sim. Você pode adicionar a minha dívida, mas por favor — compre um pouco para mim, pode ser?”

O apelo era estranhamente racional, e Lawrence não conseguia pensar em uma boa resposta.

Tudo o que podia fazer era balançar sua cabeça para o lado como se estivesse esgotado.

“Obrigado,” disse Holo, se acariciando no braço de Lawrence como um gato pedindo carinho — o que não era uma sensação ruim.

Ele sabia que era isso que Holo queria, era uma parte inevitável tanto tempo como um mercador viajante solitário.

“Ainda assim, você realmente conseguiu pechinchá-las, não?” perguntou Holo, acariciando mais uma vez a sua cauda enquanto se recostava em Lawrence.

Esta loba especial podia sentir mentiras, por isso, Lawrence não se incomodou em mentir e respondeu com sinceridade. “Ao contrário, ele se colocou em posição que não me deixou escolha a não ser pechinchar o preço.”

No entanto, a taxa de juros sobre as armas não era boa. O método capaz de maior lucro seria importar os materiais e, em seguida, montar e vender as armas. Quando o negócio de venda de armas fosse concluído, simplesmente as colocaria em algum lugar com uma demanda constante de grandes quantidades de armas e conseguir um lucro justo, o montante pelo qual a mercadoria poderia ser pechinchada é limitado.

Lawrence ia para Ruvinheigen para conseguir esse lucro justo.

“Quanto?”

“Qual é o motivo de perguntar isso?”

Holo olhou para Lawrence da sua posição inclinada contra ele e, em seguida, olhou rapidamente para longe.

Neste ponto Lawrence tinha mais ou menos entendido.

Apesar de estar forçando a questão do óleo, ela estava realmente muito preocupada com seus lucros.

“O quê? Eu estava preocupada em extorquir todo o dinheiro de um mercador viajante, que mal está sobrevivendo. Isso é tudo.”

Lawrence bateu levemente na cabeça de Holo pelo comentário desagradável.

“As armas são o produto mais vendido em Ruvinheigen, mas muitos comerciantes as trazem para a cidade. Assim, a taxa de juros cai, e a quantidade que eu poderia negociar é limitada.”

“Mas você comprou muito, ainda vai conseguir um bom lucro, certo?”

A carroça não estava cheia, mas estava bem carregada. Os bens eram sólidos, e embora os juros fossem baixos, em comparação com o investimento inicial de Lawrence, a quantidade real de material era boa. O fato de que ele estava recebendo o dobro do material para seu investimento era a cereja no topo do bolo. Como diz o ditado: “Uma gota de chuva aumenta o mar,” e assim o ganho de Lawrence pode ser menor apenas se comparado ao lucro da pimenta.

Na verdade, o produto seria suficiente para comprar mais maçãs do que caberiam na carroça, para não falar do óleo, mas se Lawrence dissesse isso para Holo, não havia como saber o que ela exigiria — então ele segurou a língua.

Holo, alegremente ignorante, simplesmente acariciava sua cauda.

Olhando para ela, Lawrence não podia deixar de se sentir um pouco culpado.

“Bem, eu acho que vamos ganhar o suficiente para comprar por um pouco de óleo, não se preocupe,” disse.

Holo balançou a cabeça, aparentemente satisfeita.

“Ainda assim, agora que parei para pensar, um pouco de tempero seria bastante bom,” Lawrence murmurou, enquanto estimava o ganho provável contra o custo das armas.

“Você o comeu?”

“Não me confunda com você, sua gulosa. Estou falando do lucro.”

“Hmph. Bem, por que você não carrega mais tempero de novo?”

“Os preços de Ruvinheigen e Poroson não são tão diferentes. Eu teria prejuízo depois de pagar a tarifa.”

“Então desista,” disse o Holo brevemente, mordiscando a ponta de sua cauda.

“Se eu pudesse obter uma taxa do mesmo nível que as especiarias ou um pouco maior, eu conseguiria o suficiente para abrir uma loja.”

Poupar dinheiro suficiente para abrir sua própria loja era o sonho de Lawrence. Embora tivesse feito uma quantidade considerável com o tumulto em Pazzio, o objetivo permanecia distante.

“Tenho que saber uma coisa,” disse Holo. “Diga... joias ou ouro. São o melhor negócio, não?”

“Ruvinheigen não é um lugar lucrativo para essas coisas.”

Talvez porque um pouco de pelo entrou em seu nariz, Holo deu um pequeno espirro enquanto ela lambia a pele da sua cauda. “...por que não?” ela perguntou.

“A tarifa é muito alta. É protecionismo. Eles cobram impostos altos em tudo, exceto para um determinado grupo de mercadores. Não há negócios para fazer por lá.”

Cidades que enfraqueciam a base do comércio com este tipo de protecionismo não eram incomuns.

Mas a política de Ruvinheigen visava monopolizar os lucros. O ouro trazido para a Igreja em Ruvinheigen seria carimbado com o santo selo da Igreja, e tal ouro traria viagens seguras, a felicidade no futuro, ou triunfar na batalha, tudo pela graça de Deus. Havia até mesmo ouro para garantir a felicidade na vida após a morte, e tudo era vendido por preços exorbitantes.

O Concílio da Igreja de Ruvinheigen controlava os mercadores sob o seu poder para preservar o monopólio, então os impostos sobre o ouro que entrava na cidade eram terríveis e as punições para o contrabando eram duras.

“Huh.”

“Se de alguma forma contrabandeássemos ouro, nós seríamos capazes de vendê-lo por dez vezes o que nós pagamos. Mas o perigo aumenta com o lucro, então não tenho escolha a não ser fazer dinheiro pouco a pouco.”

Lawrence deu de ombros, pensando melancolicamente do fim de seu caminho.

Em uma cidade como Ruvinheigen, havia muitos mercadores que conseguiam em um único dia o que Lawrence tinha passado toda a sua vida se esforçando para conseguir.

Parecia injusto — não, pior do que injusto, era totalmente estranho.

“Oh sério?” era a resposta inesperada do Holo.

“Você teve alguma ideia?”

Ela era Holo, a Sábia Loba, afinal. Ela poderia ter pensado em um esquema desconhecido.

Lawrence se virou para ela em expectativa. Fazendo uma pausa em sua escovação por um momento, Holo olhou para ele.

“Por que você simplesmente não esconde o ouro?”

Se ela sempre fosse tola assim seria encantadora, pensou Lawrence ao ouvir sua sugestão.

“Se isso fosse possível, todo mundo faria isso.”

“Ah, então você não pode fazer isso.”

“Quando as tarifas sobem, o contrabando também — é um princípio básico. As inspeções são muito competentes.”

“Certamente uma pequena quantidade não seria encontrada.”

“Se encontrarem qualquer vestígio, eles cortarão sua mão, no mínimo. Não vale a pena o risco. Valeria se você estivesse trazendo uma quantidade maior... mas isso é impossível.”

Holo alisou o pelo da cauda e assentiu satisfeita com a sua escovação.

 Lawrence não podia ver muita diferença, mas aparentemente Holo tinha seus padrões.

“Mm, é verdade,” disse. “Bem, seu negócio é estável o suficiente. Está tudo bem desde que consiga dinheiro honestamente.”

“Você está certa, mas me parece que tenho uma certa companheira decidida a gastar minhas economias constantemente.”

Holo bocejou, fingindo não ouvir o escárnio enquanto se contorcia para esconder a sua cauda. Esfregou os olhos e rastejou de volta para o seu lugar na carroça.

Lawrence não foi terrivelmente sério. Ele parou de seguir os movimentos de Holo e olhou para a estrada à frente. Tentar falar com ela quando decidiu ir dormir era um exercício fútil, então ele desistiu.

Por um tempo, ele podia ouvir o barulho das armas enquanto ela as empurrava de lado para fazer um lugar para tirar uma soneca, mas logo voltou o silêncio, e ele ouviu o suspiro contente dela.

Lawrence olhou para trás e a viu ela enrolado em uma bola, como um cão ou gato. Não pôde deixar de sorrir.

Ele não poderia dizer o que pensava por muitas razões, mas queria que ela ficasse com ele.

Enquanto Lawrence ponderava isso, Holo de repente falou.

“Esqueci de dizer isso antes, mas o vinho que recebemos do mestre — não tenho nenhuma intenção de beber tudo sozinha. Esta noite devemos beber juntos — e aproveitar o carneiro também.”

Ligeiramente surpreso, Lawrence se voltou para olhar, mas ela já estava enrolada de novo.

Mas desta vez, ela estava sorrindo.

Lawrence olhou para a frente, segurando as rédeas e conduzindo o cavalo com cuidado para não balançar a carroça mais que o necessário.



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