Trigo e Loba Japonesa

Tradução: Virtual Core


Volume 3

Capítulo 1

 

Faziam seis dias que Lawrence e Holo deixaram Ruvinheigen. A cada dia que passava, o frio ficava mais severo e o frustrantemente o céu permanecia nublado, de modo que mesmo no auge do meio-dia, o mais fraco dos ventos era o suficiente para provocar calafrios.

Como viajavam ao lado do rio, o frio da neblina combinava com o ar gelado e fazia tudo isso piorar.

Até mesmo a água do rio parecia gelada. Estava turva, como se o próprio céu nublado tivesse misturado na correnteza.

Embora Lawrence e Holo estivessem empacotados com roupas de inverno de segunda mão que tinham comprado em Ruvinheigen, o frio ainda era o frio.

E assim, suas extremidades estavam entorpecidas enquanto Lawrence refletia com uma mistura de desgosto e nostalgia sobre os tempos em que, como um jovem mercador, ele tinha que desistir de proteções contra o frio em favor da carga.

Evidentemente, sete anos de experiência ajustaria até mesmo um amador como ele para enfrentar o frio.

Além da roupa quente, havia algo amais que suavizava o frio este ano.

Lawrence agora entrava no inverno de seu sétimo ano como mercador desde que se tornou independente aos dezoito anos, e ele espiava a pessoa sentada ao seu lado no banco da carroça.

Normalmente, ele sentava no banco sozinho.

Mesmo nas raras ocasiões em que ele de fato viajava com outra pessoa, este não sentaria no banco da frente com Lawrence e certamente não compartilharia a mesma cobertura sobre os joelhos para se aquecer.

“Se passa algum problema?” pergunto sua companheira, seu discurso levemente arcaico era evidente como sempre.

Ela era uma linda garota adorável que parecia estar em sua adolescência, com estonteantes madeixas de cabelo castanho que faria inveja a qualquer mulher da nobreza.

Mas o que Lawrence invejava não era nem seu cabelo esvoaçante nem a túnica cara envolta ao redor do corpo dela.

Não, o que ele invejava era a cauda densamente peluda que estava no colo dela enquanto ela a acariciava cuidadosamente.

Era do mesmo castanho que seu cabelo, com exceção da ponta branca, e cada centímetro da cauda era tão quente quanto parecia ser. Se fosse feito um cachecol com o pelo dessa cauda, ele seria objeto de desejo de qualquer esposa de um nobre, mas infelizmente essa cauda não estava à venda.

“Poderia andar logo com esse pentear e colocar sua cauda novamente debaixo da capa?”

Sentada ali envolta em um manto, penteando o pelo de sua cauda, Holo parecia dos pés à cabeça com uma freira fazendo algum tipo de trabalho manual.

Ela lançou um olhar desagradável para Lawrence com seus olhos castanhos tingidos de vermelho antes de seus lábios abrirem, dando um vislumbre de suas presas brancas.

“Minha cauda não é o seu cachecol particular.”

A cauda em questão se mexeu levemente.

Essa mesma cauda, que um viajante ou mercador certamente confundiria com uma simples pele de um tipo qualquer, estava de fato ligada à sua proprietária original, que a acariciava tão meticulosamente. E ela não tinha só uma cauda; debaixo de seu capuz também havia um par de orelhas pontudas de lobo.

Naturalmente, estas orelhas e cauda indicavam que ela não era uma mera humana.

Embora houvesse pessoas que, possuídas por fadas ou demônios, tinham esta ou aquela característica inumana quando nasciam, esta garota não era uma delas.

Sua verdadeira forma era a de uma loba colossal que morava dentro de trigo; ela era Holo, a Sábia Loba de Yoitsu. Um adepto da fé da Igreja se apavoraria diante de uma entidade como uma deusa pagã, mas Lawrence superou tal medo.

Ele estava mais interessado em se apropriar da cauda da qual Holo tinha tanto orgulho e a usar para se aquecer.

“Mas é uma pelo de excelente qualidade; colocá-lo sob a capa manterá minhas pernas tão quentes como uma montanha de peles deixaria.”

Assim como Lawrence desejava, Holo fungou orgulhosamente e colocou a cauda de volta sob a capa entre suas pernas.

“De qualquer forma, vamos chegar na cidade em breve? Vamos chegar antes do fim do dia, não?”

“Só um pouco adiante ao longo deste rio,” disse Lawrence.

“E então, finalmente uma refeição quente. Já enjoei desse mingau frio. Não aguento nem mais uma colher!”

Lawrence podia se gabar de ter mais experiência em comer comida ruim do que Holo, mas estava completamente de acordo com ela.

Comer bem era um dos poucos prazeres de viajar, mas mesmo esse prazer desaparecia com a chegada do inverno.

No frio congelante, as únicas opções eram o pão de centeio duro ou mingau feito a partir do mesmo, com carne seca sem gosto ou com aqueles poucos legumes que podiam ser armazenados por longos períodos de tempo — alho e cebola.

Com seu olfato afiado, Holo não podia comer o alho ou cebola mencionados anteriormente, e embora detestasse o gosto amargo de pão de centeio, ela conseguiu engolir com água.

Para Holo, a gulosa, isso não estava longe de tortura.

“Bem, a cidade para onde estamos indo está no meio de um grande festival, de modo que você pode esperar por todos os tipos de comida.”

“Oh ho. Mas será que sua bolsa de moedas pode lidar com tal extravagância?”

Uma semana antes, na cidade de Ruvinheigen, a ganância de Lawrence o levou a cair na armadilha de uma companhia de comércio desesperada, e ele esteve a ponto de aceitar a completa ruína.

No entanto, após uma série de reviravoltas, ele evitou isso, mas ainda não tinha conseguido lucro, e na verdade acabou com um certo prejuízo.

Quanto às armaduras que foram a causa de tudo isso, ele acabou as descartando em Ruvinheigen pelo preço mínimo em vez de transportar mercadorias pesadas mais ao norte, onde os preços provavelmente eram ainda piores.

Apesar dos pedidos frequentes de Holo para comprar esta ou aquela bugiganga, sua última observação mostrava alguma consideração pelos dilemas complicados de Lawrence.

Ela frequentemente era rude e arrogante, mas seu coração era fundamentalmente bom.

“Não se preocupe, o preço de sua alimentação está dentro do orçamento.”

Holo ainda parecia estar preocupada com alguma coisa. “Mm...”

“Além disso, acabei não sendo capaz de comprar aquelas conservas de pêssego em mel que prometi. Pense nisso como uma compensação por elas.”

“É verdade... mas ainda assim...”

“O quê?”

“Estou meio preocupada com o sua moderação e meio preocupado com a minha. Se eu comer de forma muito extravagantemente, teremos que ficar naqueles alojamentos bem pobres.”

Lawrence sorriu ao entender. “Bem, eu estava pensando em ficar em uma pousada decente. Certamente não vai me dizer que devemos ter quartos separados com uma lareira em cada quarto.”

“Não iria tão longe, mas não seria bom se você usasse meu apetite como desculpa.”

“Desculpa para o que?”

Lawrence olhou para frente para corrigir o caminho do cavalo, nesse momento Holo se inclinou e sussurrou em seu ouvido, “Para alugar um quarto com apenas uma cama, alegando que não tinha dinheiro para mais. Às vezes eu prefiro dormir sozinha.”

Lawrence puxou as rédeas e o cavalo relinchou em incerteza.

Tendo se acostumado bastante com este tipo de provocação de Holo, se recuperou rapidamente.

Ele forçou seu rosto a se acalmar e a lançou um olhar frio. “Não tenho certeza se alguém que ronca tão despreocupadamente tem direito de falar alguma coisa.”

Talvez tomada de surpresa com a rapidez da recuperação de Lawrence, Holo se afastou dele, torcendo o lábio em desagrado.

Lawrence pressionou o ataque, de modo a não deixar esta oportunidade rara de vitória escapar.

“Além disso, você dificilmente seria o meu tipo.”

Os ouvidos aguçados de Holo poderiam facilmente diferenciar a verdade da mentira.

O que Lawrence acabou de dizer — de certa forma — não era uma mentira.

O rosto de Holo congelou, talvez surpresa com a verdade das palavras de Lawrence.

“Certamente você sabe que estou dizendo a verdade,” disse Lawrence, se preparando para o golpe final.

Holo o encarou, estupefata por um momento, sua boca se abrindo e se fechando sem palavras. Eventualmente, ela percebeu que sua própria resposta faria com que Lawrence ganhasse dela.

Suas orelhas caíram por debaixo do seu capuz e baixou o olhar, abatida.

Era a primeira vitória de Lawrence em muito tempo.

No entanto, não foi uma verdadeira vitória.

Embora não fosse necessariamente uma mentira dizer que Holo não era seu tipo, isso também não era exatamente uma verdade.

Tudo o que precisava fazer era falar isso para ela, e sua vingança por todo o tempo em que sofreu como seu brinquedo estaria completa.

Ele refletiu sobre como gostava de ver Holo rindo ou o quão inocente ela parecia enquanto dormia.

E, de fato, seu semblante abatido também era muito charmoso para ele.

Ou, pondo de outra forma —

“Então, você gosta de me ver desse jeito, não é?”

Lawrence encontrou o olhar erguido de Holo e foi incapaz de evitar ficar envergonhado.

“Quanta tolice. Quanto mais idiota o macho, mais fraca é a garota que ele deseja, sem nunca perceber que sua cabeça é a parte mais fraca de todas,” Holo zombou, piscando seus dentes brancos enquanto virava o jogo sobre Lawrence.

“Se eu fosse uma princesa indefesa, você precisava ser o meu cavaleiro intrépido. Ainda assim o que é você, realmente?”

Ela apontou o dedo para ele e o pressionou por uma resposta.

Inúmeras cenas passaram pela mente de Lawrence — cenas que serviam como um lembrete doloroso de que ele não era nenhum cavaleiro aclamado, mas um mercador viajante comum.

Holo deu um breve suspiro, evidentemente satisfeita com a reação dele, mas então pôs seu dedo indicador no próprio queixo enquanto parecia pensar em algo.

“Mas pensando bem, você supõe que de certa forma você seja um cavaleiro. Hm.”

Lawrence procurou em suas lembranças, mas não conseguiu pensar em nenhum momento em que tenha sido particularmente valente.

“O quê, você esqueceu? Você não ficou entre mim e os meus atacantes? Foi nos túneis sob Pazzio, durante aquela idiotice das moedas de prata.”

“... Oh, aquilo.”

Lawrence se lembrou do incidente, mas ainda não se sentia particularmente cavalheiresco. Ele tremia tanto que mal podia ficar de pé, suas roupas em farrapos.

“Não é a força física que faz um cavaleiro. Aquela foi a primeira vez que fui protegida por alguém.”

Holo sorriu timidamente e se aproximou de Lawrence. A rapidez de suas mudanças de humor era sempre alarmante — rápidas o suficiente para fazer um comerciante, mesmo um acostumado com as mudanças nos lucros e perdas, fugir gritando.

Lawrence, no entanto, não tinha para onde correr.

“E você vai cuidar de mim de agora em diante, não é?” A “loba” sorriu um suave e inocente sorriso que lembrava perfeitamente um gatinho. Nenhum mercador que trabalha duro, acostumado com anos de trabalho e de viagem, tem o direito de ver tal sorriso.

Mas esse sorriso era falso. Holo ainda estava irritada com a afirmação de Lawrence que ela não era seu tipo — extremamente irritada.

Lawrence estava bem ciente disso.

“... Desculpe.”

Como mágica, o sorriso de Holo se tornou verdadeiro quando ouviu essa palavra. Ela sentou ao lado dele no banco da frente e riu com clemência. “É disso que eu gosto em você.”

 No bate e rebate de suas provocações, Holo e Lawrence eram como dois filhotes brincando.

No fim das contas, eles estavam muito satisfeitos um com o outro.

“De qualquer forma, acho que não me importo com uma única cama, mas vou querer o dobro de comida na janta para compensar.”

“Eu sei, eu sei,” Lawrence respondeu, limpando o suor desagradável da testa — como se não estivesse frio.

Holo levantou a voz, rindo mais uma vez. “Então, o que tem de saboroso nesta parte do mundo?”

“A especialidade local, você quer dizer? Bem, realmente não sei se isso conta como uma especialidade, mas ...”

“Peixe, não é?”

Lawrence estava prestes a dizer isso, logo a resposta rápida de Holo o surpreendeu.

“De fato. Sim, a oeste daqui há um lago. Pratos feitos com peixes retirados daquele lago é o que se considera como especialidade local. Mas como é que você sabe?”

Holo geralmente podia discernir as motivações das pessoas, mas Lawrence não achava que ela poderia simplesmente ler sua mente assim.

“Oh, apenas senti o cheiro ao vento,” ela falou, apontando para a margem oposta do rio ao longo do qual viajavam. “Aquela caravana, está levando peixes.”

Lawrence olhou e viu pela primeira vez uma caravana de carroças que estava tão longe que tudo que conseguia fazer era conta-las — certamente não poderia dizer o que carregavam. A caravana provavelmente se encontraria com Lawrence e Holo eventualmente, baseado na direção e velocidade com que os cavalos estavam puxando as carroças.

“Embora eu não possa dizer que tipo peixe poderia ser. Seria algo parecido com a enguia que comemos em Ruvinheigen?”

“Aquilo foi apenas frito em óleo. Há pratos mais elaborados — cozidos com carne ou legumes ou preparados com especiarias. Além disso, esta cidade tem outra especialidade.”

“Oh ho!” Os olhos de Holo brilharam, e debaixo da lona, sua cauda abanou com expectativa.

“Pode manter sua expectativa até chegarmos lá.”

Holo estufou suas bochechas um pouco frustrada com a provocação de Lawrence, mas estava longe de ficar brava.

“O que me diz de comprar alguns peixes da caravana caso se provem de boa qualidade?” ela perguntou.

“Não entendo de peixes. Tomei um prejuízo quando lidei com peixes uma vez, portanto tento evitá-los.”

“Mas agora você tem os meus olhos e nariz.”

“Você pode farejar a qualidade do peixe?”

“Eu meio que farejei a sua própria qualidade!” disse Holo com um sorriso maldoso. Lawrence teve que se render.

“Misericórdia, por favor! Suponho que se tiverem alguma coisa que vale a pena comprar, podemos escolher alguns e pedir para prepararem para nós na cidade. Esse também é um negócio mais vantajoso.”

“Sim! Você deve confiar em mim.”

Embora não estivesse exatamente claro onde Holo e Lawrence se encontrariam com a caravana que ostensivamente carregava peixe, a distância entre os dois diminuía rapidamente. Lawrence guiou o cavalo pela estrada.

E mesmo assim — pensou Lawrence consigo, olhando primeiro para a caravana e então para sua companheira de viagem.

Se os olhos e nariz eram bons o suficiente para dizer a qualidade do peixe, talvez ela realmente pudesse avaliar uma pessoa da mesma forma.

Lawrence riu com a ideia, mas ainda o incomodava.

Ele casualmente trouxe seu ombro direito até o nariz e cheirou. Apesar de viver na estrada, não achava que cheirava tão mal — e a própria Holo tinha apenas uma única muda de roupa.

Ele estava remoendo suas desculpas quando sentiu um olhar sobre ele.

“Meu deus. Você é mesmo tão charmoso, não tenho ideia de como lidar,” Holo falou exasperada.

Lawrence não tinha resposta.

 

O rio fluía tão devagar que de relance não parecia estar se movendo nem um pouco. Logo, as pessoas que haviam parado para deixar os cavalos beberem ou trocar suas cargas ficaram à vista. Também havia um raro viajante amolador de espadas — uma espada cravada no chão servia como uma placa. O amolador de espadas bocejou, o queixo nas mãos, se apoiando em sua grande pedra de amolar.

Também havia uma balsa atracada em um cais, onde estava um cavaleiro e seu cavalo, discutindo com o barqueiro. O cavaleiro estava apenas levemente equipado, por isso ele era provavelmente um mensageiro deste ou daquele forte. Muito provavelmente, o barqueiro não queria embarcar em uma viagem sem mais passageiros, o que era o motivo da discussão.

O próprio Lawrence já ficou irritado com barqueiros que não se dispuseram a partir quando ele estava com pressa, por isso a cena trouxe um sorriso amargo ao seu rosto.

À medida que a terra mudava de planícies selvagens sem fim para terras cultivadas, os camponeses fazendo o seu trabalho apareciam mais e com mais frequência.

Não importa quantas vezes visse isso, uma mudança de cenário que vinha junto com a atividade humana sempre fazia Lawrence feliz.

Foi nesse momento que Holo e Lawrence finalmente se encontraram com a caravana.

Havia três carroças ao todo, cada uma puxada por um par de cavalos. As carroças não tinham bancos de condutor, e um homem bem vestido estava sentado no fundo da última carroça enquanto um trabalhador contratado as guiava enquanto andava.

Lawrence ficou impressionado com a extravagância de utilizar dois cavalos por carroça, mas quando se aproximaram da caravana, percebeu que não era por vaidade.

Empilhados no leito das carroças tinham barris e caixas grandes o suficiente para guardar uma pessoa. Alguns estavam cheios de água — aparentemente para os peixes capturados nadarem.

Peixe não salgados de qualquer tipo eram um luxo. Peixes vivos eram mais ainda.

Embora o transporte de peixes vivos fosse raro por si só, havia a mais sobre a caravana que surpreendia Lawrence ainda mais.

A pessoa que evidentemente transportava estas três grandes carroças de peixe fresco era um mercador ainda mais jovem do que Lawrence.

“Peixes, é isso?” disse o jovem na última carroça, respondendo a indagação de Lawrence. Ele usava o casaco tradicional de couro oleado de um peixeiro.

“Sim, queria saber se pode me vender um pouco,” disse Lawrence, que havia trocado de lugar com Holo.

A resposta do jovem mercador foi rápida. “Minhas mais sinceras desculpas, mas todos os nossos peixes já foram encomendados.”

Era uma resposta inesperada; o jovem rapaz pareceu notar a surpresa que causou em Lawrence e puxou o capuz para mostrar seu rosto apropriadamente.

O rosto do rapaz era tão jovem quanto sua voz sugeria. Embora não pudesse estritamente chamado de “garoto,” ele certamente ainda não tinha vinte anos. Peixeiros geralmente eram muito ásperos e viris, mas este jovem era excepcionalmente esguio. Seu cabelo loiro ondulado só contribuía para sua aura refinada.

Mesmo que ele fosse tão jovem como aparentava, o fato de que transportava três carroças de peixe fresco significava que ele não era um mercador a ser subestimado.

“Me perdoe por perguntar, mas você é um mercador viajante?” perguntou o rapaz.

Lawrence não pôde dizer se o sorriso do jovem era genuíno ou mercantil, mas em todo caso, a única resposta aceitável era sorrir de volta. “Sim, acabei de chegar de Ruvinheigen.”

“Entendo. Bem, há um lago a cerca de meio dia de viagem pela estrada que acabamos de vir. Tenho certeza que você pode lidar com os pescadores por lá. Eles vão trazer as excelentes carpas mais tarde.”

“Ah, não, não estou comprando para os negócios. Espera apenas que você pudesse me vender alguns peixes para o jantar. Só isso.”

O sorriso do jovem mercador desapareceu rapidamente devido à surpresa — esta provavelmente era a primeira vez que tinha ouvido tal pedido.

Um mercador transportando peixe salgado a longas distâncias estaria bastante acostumado a vender um pouco na estrada, mas tal prática era bastante incomum ao transportar peixe fresco de um lago nas proximidades.

A expressão de surpresa do jovem mercador logo mudou para uma de uma análise cuidadosa.

Tendo se deparado com uma situação inesperada, provavelmente estava tentando decidir se isso era uma nova oportunidade de negócios.

“Você é muito sério sobre o seu negócio,” disse Lawrence.

“Oh —” disse o rapaz, voltando a si e obviamente frustrado. “Minhas desculpas! Er, isso significa que, se você está à procura de peixe para jantar, vai parar em Kumersun, certo?”

“De fato. Para a feira de inverno e também para apreciar o festival.”

Kumersun era o nome da cidade para onde se dirigiam, a tempo da grande feira da cidade, que era realizada duas vezes por ano, no verão e no inverno.

Também havia um festival que coincidia com a feira de Inverno.

Lawrence não sabia os detalhes, mas tinha ouvido falar que era uma celebração pagã que faria qualquer seguidor devoto da Igreja desmaiar.

A seis dias de viagem ao norte de Ruvinheigen, uma cidade que até hoje funcionava como depósito de reabastecimento para as incursões contra os pagãos da Igreja, as relações entre os pagãos e os seguidores da Igreja não eram tão simples quanto eram no sul.

A nação que controlava as vastas terras ao norte de Ruvinheigen era conhecida como Ploania, e havia muitos pagãos entre a realeza e nobreza. Era natural que houvesse cidades onde a Igreja e os pagãos coexistissem.

Como Kumersun pertencia a nobreza da Ploania, se distanciou das questões religiosas problemáticas. Era uma grande cidade devota à prosperidade econômica, e a Igreja era proibida de converter pessoas por lá. Indagar se o festival da cidade era da fé da Igreja ou a da fé pagã também era proibido de certa forma — a explicação era que era simplesmente uma tradição da cidade.

Dado que tais festivais eram uma raridade e que os pagãos poderiam participar com segurança, pessoas se amontoavam na cidade todos os anos para participar do evento, que era conhecido como o festival de Laddora.

Baseado no que Lawrence ouviu, ele planejou chegar um pouco mais cedo a fim de evitar as multidões, mas parece que foi ingênuo.

“Posso perguntar se você já reservou acomodações?” perguntou o jovem mercador com o rosto preocupado.

“O festival é um dia depois de amanhã. Certamente as pousadas não estão todas ocupadas.”

“Eu te garanto, elas estão.”

Holo me moveu inquieta ao lado de Lawrence, sem dúvida preocupada com onde ficariam.

Independente das suas habilidades de loba, a forma humana de Holo era tão suscetível ao frio quanto um verdadeiro humano. Ela queria sair do clima frio tanto quanto Lawrence.

Lawrence teve uma ideia.

“Ah, mas as guildas mercantis devem arranjar algum lugar para seus membros para a grande feira, por isso vou o que consigo com eles,” ele falou.

Entrar em contato com a guilda mercantil significava aturar um intenso e interminável questionamento sobre Holo, então Lawrence preferia evitar pedir algum favor para eles, mas não parecia que isso seria possível.

“Oh, você está associado a uma guilda mercantil — posso perguntar qual guilda?” indagou o mercador.

“A Guilda Rowen de Comércio em Kumersun.”

O rosto do jovem mercador se iluminou instantaneamente. “Que coincidência maravilhosa! Eu também sou membro da Guilda Rowen.”

“Ah, certamente Deus ordenou isso... Ah, suponho que falar assim seja um tabu por aqui.”

“Ha-ha, não se preocupe. Eu também sou um seguidor da Igreja do sul.”

O jovem mercador sorriu, e então pigarreou leve e educadamente. “Permita me apresentar. Sou Fermi Amati, um negociante de peixe de Kumersun. Sou chamado de Amati quando faço negócios.”

“Eu sou Kraft Lawrence, um mercador viajante — da mesma forma, vou por Lawrence.”

Ambos se sentaram em suas respectivas carroças, mas ainda perto o suficiente para apertar as mãos.

Lawrence agora teria que apresentar Holo.

“Esta é Holo, minha companheira de viagem. Circunstâncias a levaram a me acompanhar, embora ela não seja minha esposa,” Lawrence falou com um sorriso. Holo inclinou sua cabeça na direção de Amati, olhando para ele com um pequeno sorriso.

Holo era impressionante quando se dignava a ser educada.

Um Amati envergonhado se apresentou novamente, suas bochechas coradas. “A senhorita Holo... é uma freira?”

“Ela é uma freira em peregrinação, ou algo parecido.”

Não eram apenas homens cujos corações eram tomados pela piedade; as mulheres também saiam em peregrinação regularmente.

Tais mulheres geralmente se apresentavam como freiras em vez de entregarem sua verdadeira identidade como mulheres da cidade em peregrinação, já que isto evitava vários problemas.

No entanto, entrar em Kumersun vestida com roupas que fossem imediatamente reconhecíveis como trajes da Igreja traria problemas, o costume era prender três penas em algum lugar na roupa. O capuz de Holo realmente tinha três magníficas penas marrons de galinha presas a ele.

Apesar de sua juventude, Amati compreendeu tudo isso instantaneamente, já que ele vinha do sul.

Ele não continuou o questionamento, compreendendo que a jovem provavelmente tinha uma boa razão para estar viajando com um mercador de tal forma.

“Em todo caso, os problemas que encontramos em nossas viagens não são nada além de testes divinos. Digo isso porque, embora eu seja capaz de arranjar um quarto de solteiro, infelizmente dois quartos podem ser difíceis,” disse Amati.

Lawrence parecia surpreso com a declaração de Amati. Este sorriu e continuou “Certamente é pela graça de Deus que somos da mesma guilda comercial. Se eu falar com uma estalagem para a qual vendi peixe anteriormente, tenho certeza de que posso conseguir um quarto individual. Tentar conseguir um quarto através da guilda certamente levará a todos os tipos de perguntas incômodas sobre o passado da sua companheira.”

“Você está completamente certo, mas não acho que podemos pedir tanto de você.”

“Sou um homem de negócios, então naturalmente esta é uma proposta de negócio. Espero que você aprecie muitos peixes deliciosos durante sua estadia.”

Apesar de sua juventude, este Amati com suas três carroças de peixe fresco era claramente um homem a ser reconhecido.

Esta era a própria imagem de alguém perspicaz.

“Você é um mercador um tanto eficiente. Ficaremos felizes em aceitar a sua oferta,” disse Lawrence, meio invejoso e meio grato.

“Entendido. Por favor deixem os preparativos comigo.”

Amati sorriu, e por apenas um momento, seu olhar desviou de Lawrence.

Lawrence fingiu não notar, mas Amati claramente olhou para Holo.

Era possível que ele não foi generoso só por causa de seu afiado senso para negócios, mas também por desejar mostrar o seu melhor para Holo.

Por um momento, Lawrence se satisfez com um senso de superioridade, pois era ele que viajava com Holo, mas tal pensamento tolo certamente faria com que ela o ridicularizasse depois.

Ele expulsou a ideia de sua mente e dedicou sua atenção para a tarefa de melhorar a sua relação com o bem-sucedido jovem mercador de peixes diante dele.

Só quando o sol começou a se pôr que eles finalmente chegaram em Kumersun.

 

A mesa do jantar foi organizada em torno de uma tigela de sopa feito com filés de carpa e vegetal básicos, em torno da qual foi distribuído uma variedade de pratos de marisco.

A presença do mercador de peixe Amati certamente influenciava a culinária, que era bem diferente das refeições à base de carne do sul. Eram os caracóis cozidos que mais se destacavam.

Dizia-se que os caracóis marítimos ampliavam a longevidade, enquanto que caramujos de água doce traziam apenas dores de estômago, por isso eles eram evitados no sul, onde apenas mariscos bivalves eram comidos. A Igreja até mesmo proibia comer caracóis, alegando que maus espíritos os habitavam.

Isso era um conselho mais prático do que os ensinamentos de Deus como previstos na escritura. Há muito tempo atrás Lawrence se perdeu e, tendo chegado a um rio, ele recorreu aos caracóis como alimentação. A lembrança da insuportável dor de estômago fez com que ele evitasse comê-los desde então.

Felizmente as refeições não eram servidas em porções individuais, e Holo parecia apreciar os caracóis.

Lawrence deixou toda a comida que seu estômago não suportava para Holo.

“Hmm. Então é esse o gosto dos mariscos, eh?” Holo falou impressionada, enquanto comia caracol atrás de caracol, os arrancando de suas conchas com uma faca que Lawrence a emprestou. Lawrence por sua vez estava comendo uma barracuda grelhada com sal.

“Não coma demais ou vai ter dor de estômago.”

“Mm?”

“Espíritos malignos vivem nos caracóis do rio. Coma-os despreocupadamente e vai se arrepender.”

Holo deu uma rápida olhada para os caracóis que tinha acabado de extrair de sua concha, então levantou a cabeça e os colocou na boca. “Quem você pensa que eu sou? Não é só a qualidade do trigo que posso julgar.”

“Você não disse algo sobre comer pimentas e se arrependido?”

Holo pareceu se ofender com a lembrança.

“Mesmo eu não posso determinar o gosto puramente pela aparência. Fique sabendo que elas eram de um vermelho brilhante — como uma fruta perfeitamente madura,” Holo disse enquanto extraia mais um caracol. Ocasionalmente, ela fazia uma pausa para levar o copo aos lábios e tomar um gole, fechando os olhos enquanto isso.

Uma vez que a região estava fora do alcance maligno da Igreja, licor destilado — que a Igreja dizia ser perigoso — era vendido e consumido livremente aqui.

O copo de Holo era preenchido com um licor quase transparente conhecido como vinho quente.

“Devo pedir algo mais doce para você?”

“.....”

Holo sacudiu a cabeça em silêncio, mas com os olhos tão firmemente fechados, Lawrence tinha certeza de que, se ele espiasse sob seu manto, encontraria sua cauda eriçada como uma escova de garrafa.

Por fim, ela esvaziou o copo e, expirando profundamente, limpou os cantos dos olhos com sua manga.

Levando em conta o que ela bebia (que também era conhecido como “licor agitador de almas”), era bom que Holo não estivesse mais vestida como uma freira. Com a cabeça coberta por um lenço triangular, ela parecia inteiramente com uma moça normal da cidade.

Holo trocou de roupa antes do jantar e foi agradecer a Amati mais uma vez. O rosto de Amati estava tão patético com os encantos de Holo que não só Lawrence, mas também o estalajadeiro, foi incapaz de evitar o riso.

Como que para aumentar a sua carga de pecados ainda mais, Holo cumprimentou Amati com ainda mais graça e charme do que normalmente faria.

No entanto, se Amati a visse comendo e bebendo de forma voraz, sem dúvida ele seria rapidamente despertado de seus sonhos.

Holo fungou. “É um sabor nostálgico,” ela falou com os olhos borrados, tanto do licor quanto das lembranças de sua terra natal.

Era verdade que quanto mais ao norte você fosse, mais comum era o licor agitador de almas.

“Eu mal posso distinguir qualquer sabor quando o licor é tão destilado,” disse Lawrence.

Talvez cansada dos caracóis, Holo pegou o peixe assado e cozido, respondendo feliz enquanto isso.

“Pessoas esquecem a aparência de algo depois de apenas dez anos, mas o sabor e os aromas permanecem depois de dezenas de anos ou mais. Este licor traz de volta muitas memórias. Ele não é muito diferente do licor de Yoitsu, sabe.”

“Bebidas fortes são comuns no norte. Você sempre bebia isso?” Lawrence olhava do conteúdo do copo para o rosto de Holo.

“Licores mais doces dificilmente combinam com uma loba sábia e de tão nobre estatura,” ela respondeu com orgulho, um pedaço de peixe no canto de sua boca.

Claro que, com base em sua aparência, era leite doce e mel que melhor combinaria com Holo, mas Lawrence riu e concordou com ela.

Certamente o sabor do licor a trouxe lembranças de sua terra natal.

O sorriso feliz de Holo não poderia ser simplesmente explicado pelo fato de ser a primeira refeição deliciosa que eles tinham em um bom tempo.

Seu sorriso era como o deleite de uma garota que tinha recebeu um presente inesperado — a primeira evidência concreta de que eles estavam se aproximando de Yoitsu e sua casa.

No entanto, Lawrence se viu desviando o olhar.

Não era como se estivesse com medo do seu olhar fosse notado e da provocação que certamente viria em seguida.

O fato era que ele ouviu que Yoitsu foi posta abaixo muito tempo atrás; Lawrence tinha escondido isso de Holo desde o início de sua parceria. Manter isso em segredo transformava o sorriso feliz de Holo em um sol ofuscante doloroso demais para olhar.

Ele não conseguia se obrigar a destruir a agradável refeição da noite.

Para evitar que Holo percebesse sua agitação, Lawrence se forçou a pensar em outras coisas. Ele sorriu para Holo, que estendeu a mão para o cozido de carpa.

“Vejo que você gostou do cozido.”

“Mm. Quem iria imaginar que a carpas quando cozidas seriam tão saborosas? Outra tigela, por favor.”

A grande tigela com o ensopado de carpa estava fora do alcance do Holo, então Lawrence servia para ela, mas cada vez que o fazia, mais cebolas apareciam em seu prato de madeira. Parecia que, mesmo cozidas, Holo não suportava cebolas.

“Onde você conseguiu comer carpas? Não tem muitos lugares que servem isso.”

“Hm? Eu as peguei do rio. Elas são criaturas fracas, fáceis de enganar.”

Lawrence entendeu — ela foi pescar em sua forma de lobo.

“Nunca comi carpa crua. É boa?” ele perguntou.

“As escamas ficavam presas nos meus dentes e tem muitos ossos. Eu vi peixes maiores engolindo os menores por inteiro, então imaginei que era delicioso, mas no fim não era.”

Lawrence imaginou a forma enorme de Holo enquanto ela devorava uma grande carpa de cabeça erguida.

Carpas eram famosas por sua longa vida e eram reverenciadas como sagradas e insultadas como instrumentos do diabo pela Igreja. Por essa razão, o consumo de carpa estava confinado ao norte.

Para ser justo, parecia levemente ridículo considerar a carpa sagrada por sua longevidade moderada quando havia lobos como Holo vagando por aí.

“O hábito de cozinhar dos humanos é realmente bom, mas não é só isso — o peixe foi muito bem escolhido. Esse rapaz, Amati, tem um bom olho.”

“Para a idade dele, sim. A carga que ele estava movendo era impressionante.”

“E, por outro lado, temos você. O que é mesmo que você está transportando?” os olhos de Holo subitamente ficaram frios.

“Hm? Pregos. Assim como essa mesa... Oh, acho que você não sabe o que é isso.”

“Eu sei o que são pregos. Estou dizendo que você deveria ter investido em algo um pouco mais impressionante. Ou ainda afetado pela sua falha em Ruvinheigen?”

Lawrence se sentiu um pouco ofendido com isso, mas era a verdade, e então ele não podia dizer nada.

Ele se entusiasmou demais e comprou armaduras pela margem que totalizavam cerca de duas vezes seu patrimônio pessoal e, como resultado, ele se viu diante da falência e de uma longa vida de escravidão. Além disso, ele fez Holo passar por problemas significativos e humilhação.

Depois de ter sido humilhado, Lawrence escolheu comprar simples pregos na saída de Ruvinheigen, por cerca de quatrocentas moedas trenni de prata. Era uma compra conservadora que o deixava com bastante dinheiro na mão.

“Pode não ser a mais grandiosa das cargas, mas deve gerar um lucro justo. E não é como se não tivesse nada de atraente na minha carroça.”

Holo inclinou sua cabeça para Lawrence, segurando uma barracuda de rio na boca como se fosse um gato de rua.

Lawrence conseguiu chegar a uma boa réplica.

Lawrence tossiu levemente. “Quero dizer, você também está na carroça.”

Era um pouco estranha, mas Lawrence se vangloriou por pensar que mesmo assim era uma frase encantadora.

Quando ele sorria, tomou um gole de seu vinho quente e olhou para Holo, viu que ela havia parado de se mover e parecia bastante surpresa.

“...Bem, acho que isso é tudo que você é capaz de falar,” finalmente ela disse com um suspiro.

“Você sabe, não vai te matar ser um pouco mais agradável comigo,” disse Lawrence.

“Ah, mas se você tratar um macho muito bem, ele logo vai esperar por isso o tempo todo. Então você não vai ouvir nada a não ser as mesmas palavras tolas o tempo todo.”

“Ugh...” Lawrence não podia deixar que essa desfeita saísse sem resposta. “Tudo bem, então. De agora em diante eu vou...”

“Seu tolo,” disse Holo, o interrompendo. “Quão preciosa você acha que é a bondade de um homem?”

“.....” Lawrence franziu a testa e escapou para sua bebida, mas Holo estava caçando agora.

“E tudo que preciso fazer para conseguir a sua bondade é parecer triste, não é?”

O rosto inocente dela o acusou, e Lawrence não tinha resposta.

Holo era injusta.

Ele olhou para ela, ressentido, mas ela apenas sorria agradavelmente.

 

Tendo terminado sua primeira refeição adequada em muitos dias, Holo e Lawrence voltaram para sua pousada, onde as ruas eram tranquilas.

Eles chegaram em Kumersun no pôr do sol, mas as ruas estavam muito mais congestionadas do que Lawrence previu.

Se não tivessem encontrado Amati, certamente teriam que ir para a guilda mercantil para conseguir um quarto e poderiam até acabar se hospedando em um quarto na própria sede da guilda.

Em toda parte da cidade, esculturas de madeira e bonecos de trigo, cuja inspiração era incerta, se alinhavam nas ruas, com bandas e bobos inundando até a mais estreita das vielas.

A grande feira que tinha lugar na grande praça no extremo sul da cidade teve sua duração estendida, e se agitava com uma energia que se adequava com a palavra festival. Mesmo os artesãos que normalmente não eram autorizados a vender seus produtos aqui tinham barracas levantadas ao longo da rua larga.

De volta à estalagem, Lawrence abriu a janela para esfriar o seu corpo, ainda quente por causa do licor forte. Ele ainda podia ver alguns lojistas arrumando suas barracas, iluminados pelo luar.

O quarto que Amati arranjou para eles estava em uma das melhores estalagens da cidade, uma que Lawrence nunca teria considerado se hospedar. O quarto era no segundo andar, com vista para a rua larga que corria de norte a sul através do centro da cidade, não muito longe do cruzamento com a contraparte de leste-oeste da rua. Assim como Holo esperava, havia duas camas. Claro, Lawrence não poderia deixar de suspeitar de que as duas camas do quarto também foram devido à insistência de Amati.

Pensar assim acalmava Lawrence, mas ele ainda estava grato pela assistência de Amati, então abandonou essa linha de pensamento e olhou para a rua.

Todo mundo na ampla avenida parecia estar cambaleando para casa.

Lawrence riu e olhou para trás para ver Holo sentada de pernas cruzadas sobre a cama, se servindo de mais um copo de vinho como se ela já não tivesse bebido o suficiente.

“Não venha lamentar para mim se estiver de ressaca amanhã. Você já esqueceu o que aconteceu em Pazzio?”

“Mm. Oh, só isso não tem problema. Bom licor nunca perdura depois beber. E quem sou eu para recusar tal companhia?”

Agora que terminou de servir, ela alegremente levou o copo aos lábios, então comeu um pouco de truta seca que sobrou do jantar.

Se for deixada sozinha, Holo provavelmente comeria e beberia até entorpecer, mas Lawrence ainda estava grato pelo seu humor agradável.

Ele tinha que abordar um assunto que estava longe de ser o seu favorito.

A razão pela qual alterou a sua rota anual usual, que incluía Kumersun apenas nos meses de verão, era porque estava indo para a terra natal de Holo.

Lawrence não sabia exatamente onde a casa de Holo, Yoitsu, ficava. Embora tivesse ouvido seu nome, que estava em uma história dos tempos antigos, o que não proporcionava nenhum senso concreto de sua localização.

Ele evitou a pressionar por mais informações até o momento, porque toda vez que o assunto vinha à tona, ela sorria com nostalgia, mas logo afundava em depressão ao lembrar da distância, tanto temporal quanto espacial, que a separava de casa.

Como era bastante triste, isso era motivo o suficiente para que ele hesitasse falar sobre Yoitsu.

Mas se Lawrence mencionasse isso agora que estavam chegando mais perto, não haveria nada para ficar triste, pensou. Ele se sentou na mesa que colocada contra a parede e falou.

“Então, antes da bebida te derrubar, há algo que quero te perguntar.”

As orelhas expostas de Holo se mexeram imediatamente.

Seu olhar veio logo em seguida. “E o que isso seria?”

Evidentemente, seus sentidos aguçados de loba já notaram que Lawrence não pretendia jogar conversa fora. Um leve sorriso curvou os lábios dela, um sinal claro de seu bom humor.

Lawrence forçou as palavras a saírem de sua boca. “É sobre a sua aldeia natal.”

Holo imediatamente sorriu e tomou outro gole.

Isso era estranho; Lawrence esperava que ela ficasse séria com a menção de Yoitsu.

Assim que concluiu que ela já devia estar bêbada, Holo tragou seu vinho e falou.

“Então você não sabe onde é, não é? Eu estava começando a me perguntar quando você iria perguntar.” Então, olhando para baixo como se estivesse olhando para o reflexo do seu sorriso no vinho, Holo falou, “Realmente acha que eu me partiria em pedaços cada vez que mencionasse Yoitsu? Pareço tão fraca?”

Lawrence considerou mencionar a vez em que ela havia chorado por sonhar com sua terra natal, mas Holo certamente estava ciente disso. Sua cauda abanava alegremente.

“Claro que não,” disse Lawrence.

“Tolo. Era sua chance de dizer ‘Sim, você parece!’”

Sua cauda balançou uma vez, como se tivesse recebido a resposta que ela realmente queria.

“Ainda assim, você se preocupa com as coisas mais estranhas. Então finalmente decidiu falar sobre isso agora, depois de ver meu bom humor? Tão delicado.” Ela riu enquanto bebia seu vinho e então continuou, “Não posso dizer que isso não me deixa feliz, embora seja a sua tolice que é tão divertida. Por acaso planejou se perder nas terras do norte antes de finalmente me perguntar?”

Lawrence deu de ombros. “Vai me dizer onde fica Yoitsu para que eu não pareça mais tolo do que o necessário?”

Holo fez uma pausa, tomando um gole do seu copo.

Ela deu um longo suspiro.

“Não me lembro exatamente.”

Ela continuou, como que antecipando protesto iminente de Lawrence por pensar que ela estava brincando.

“Eu sei a direção, com certeza. É por esse caminho.”

Lawrence olhou na direção que ela apontou, que era obviamente ao norte.

“Mas não me lembro de quantas montanhas devemos atravessar, nem quantos rios, nem por quanto se deve caminhar pelas planícies. Pensei que iria lembrar quando fossemos nos aproximando — isso não é o bastante?”

“Você não consegue nem mesmo me dar uma dica de onde isso pode ser? O caminho não é uma reta, e uma vez que chegarmos país do norte, mapas serão difíceis de encontrar. Dependendo da localização, o caminho poderia ser cheio de desvios. Você se lembra do nome de algum dos lugares próximos, por exemplo?”

Holo ponderou por um momento, um dedo pressionado em sua têmpora. “Me lembro de Yoitsu e Nyohhira. E... hmm... como era... Pi —”

“Pi?”

“Pire... não, Piro... É isso! Pirohmoten.”

Holo parecia bastante feliz por ter se lembrado do nome, mas Lawrence apenas inclinou a cabeça. “Nunca ouvi falar desse lugar. Tem mais alguma coisa?”

“Er... haviam muitas cidades, mas elas não tinham nomes como as cidades têm agora. Era possível apenas apontar e dizer a cidade era além daquela montanha, e isso era o suficiente. Não precisávamos de nomes.”

Era verdade; Lawrence foi surpreendido por isto na primeira vez que visitou o norte. Ele chegou em uma cidade e descobriu que seu nome era usado apenas por viajantes. Nem seus residentes, nem os povos que viviam nas proximidades sabiam ou se importavam com o nome da cidade.

Havia pessoas idosas que afirmavam que nomear uma cidade traria a atenção dos maus espíritos.

Sem dúvida o que eles realmente queriam dizer com “maus espíritos” era a Igreja.

“Bem, então vamos começar em Nyohhira. Eu sei onde é.”

“Esse nome traz de volta boas memórias. As fontes termais ainda estão lá?”

“Ouvi dizer que os nobres e bispos visitam secretamente a cidade por causa de suas fontes termais, apesar do fato de serem terras pagãs. Segundo o rumor, ela é deixada de lado pelos ataques da Igreja por causa dessas fontes termais.”

“Essas fontes não pertencem a nenhum grupo, afinal de contas,” disse Holo antes de tossir levemente. “Se Nyohhira é o nosso objetivo, então de Nyohhira a direção é essa.”

Holo apontou sudoeste — não para o norte para o alívio de Lawrence.

Qualquer lugar além de Nyohhira significava terras onde a neve nunca derretia, mesmo no verão.

No entanto, mesmo sabendo que Yoitsu ficava a sudoeste de Nyohhira, ainda sobrava uma região muito ampla.

“Quanto tempo levava para ir de Yoitsu para Nyohhira?”

“Para mim, dois dias. Para um humano... não sei.”

Lawrence lembrou da vez que tinha montado nas costas de Holo quando ela estava na forma de loba, perto de Ruvinheigen. Ela não teria dificuldade em atravessar estradas precárias.

Isso ainda deixaria muita área para procurar, mesmo partindo de Nyohhira. Procurar por uma cidade que poderia ser apenas uma pequena aldeia seria como procurar uma agulha em um deserto. Era precisamente porque o próprio Lawrence era um mercador viajante, que estava acostumado a andar de cidade em cidade, que ele entendia a dificuldade envolvida.

Ainda havia o fato de que Lawrence tinha ouvido que Yoitsu foi destruída por um grande espírito de urso.

Se isso fosse verdade, encontrar os restos de uma cidade que foi destruída séculos atrás seria verdadeiramente impossível.

Lawrence não era um nobre com o luxo de passar seus dias ocioso. Ele só podia desviar da sua rota original de comércio por seis meses. Seu erro em Ruvinheigen o havia deixado ainda mais distante do seu objetivo de abrir uma loja, e ele não algo como tempo de sobra.

Ele estava pensando em tudo isso quando algo finalmente lhe ocorreu.

“Você não pode encontrar o caminho sozinha de Nyohhira? Você sabe a direção por alto, certo?”

Se fosse apenas dois dias de Nyohhira, então, assim como Holo disse, ela provavelmente seria capaz de se lembrar dos detalhes assim que chegasse mais perto.

As palavras simplesmente saíram de sua boca sem qualquer intenção maldosa em particular, mas assim que Lawrence terminou de falar, ele percebeu seu erro.

Holo olhou para ele, atordoada.

A surpresa também dominou o rosto de Lawrence quando Holo desviou o olhar.

“S-sim...se eu chegar até Nyohhira, eu certamente poderia encontrar meu caminho para Yoitsu.”

Holo forçou um sorriso. Lawrence se perguntava o que havia de errado, então expressou um súbito “Ah —” ao perceber.

Na cidade portuária de Pazzio, Holo havia dito que a solidão era uma doença mortal.

Holo temia a solidão acima de tudo. Mesmo que não quisesse dizer nada com isso, ela entenderia sua sugestão errado, e ela tinha bebido demais.

Ela provavelmente entendeu sua sugestão no sentido de que ele havia se cansado de procurar por sua terra natal.

“Hey, espere um minuto. Não me entenda errado. Não há nenhum motivo para eu não esperar em Nyohhira enquanto você procura Yoitsu por alguns dias.”

“Sim. Isso seria o suficiente. Você vai me levar até Nyohhira, não vai? Eu tinha esperança de ver mais algumas cidades.”

A conversa mudou tão suavemente que era quase como uma decepção, e Lawrence teve que atribuir isso à mente ágil do Holo.

Apesar de seu agrado aparente, havia algo errado por trás disso.

Holo esteve longe de sua terra natal por séculos. Assim como na lenda que Lawrence ouviu, ela deve ter considerado a possibilidade de que Yoitsu já não existia, e mesmo que existisse, os incontáveis meses e anos teriam provocado grandes mudanças. Ela deve estar cheia de incertezas.

Sem dúvida ela estava com medo de ir para a sua terra natal sozinha.

Essa incerteza estava disfarçada com um inocente sorriso feliz de Holo, quando ela afirmou que o licor a fazia se lembrar de Yoitsu.

 Pensar por algum tempo deixou isso claro, e Lawrence se arrependeu de sua sugestão.

“Escute, eu tenho toda a intenção de ajudá-la o máximo que eu puder. O que eu disse antes —”

“Não te disse o quão precioso é a gentileza de um macho? Não posso aceitar você sendo gentil demais.”

 Holo forçou um sorriso misturado com sua expressão de preocupada enquanto colocava o copo em cima da cama e continuava, “Porém, sou eu que estou errada. Não posso evitar pensar nas coisas apenas da minha perspectiva. Mas vocês humanos, vocês ficam velhos no que parece ser apenas um piscar de olhos para mim. Sempre me esqueço o quão precioso é um único ano para alguém com um tempo de vida tão curto.”

O luar entrava pelas grandes janelas do quarto, iluminando Holo. Ela parecia quase irreal para Lawrence naquele momento; ele hesitou em se aproximar dela por temer que ela desaparecesse.

Holo levantou o olhar depois de observar o conteúdo do seu copo, ainda com o mesmo sorriso perturbado.

“Você realmente é muito bondoso. O que devo fazer com quando me olha assim?”

Qual era a coisa certa a dizer? Lawrence não conseguia encontrar as palavras que queria.

Uma fenda inegavelmente se formou entre os dois.

No entanto, as palavras para fechá-la não chegavam. Uma mentira conveniente seria inútil já que Holo veria através dela instantaneamente.

As palavras de Holo tornou as coisas complicadas para Lawrence dizer o quer que fosse. Ele não poderia simplesmente dizer que iria com ela para Yoitsu não importa quantos anos levasse. Mercadores eram práticos demais para tal grandiosidade. Os muitos séculos de vida de Holo eram demais para ele.

“Fui eu que perdi a noção do óbvio. Fiquei muito confortável ao seu lado. Presumo que... até demais,” disse Holo com um sorriso parcialmente consciente, suas orelhas se mexendo com seu embaraço. Ela falava como uma donzela de algum lugar do fundo do seu coração.

Mas tal honestidade não trouxe a Lawrence nenhum prazer.

Era como se Holo estivesse dizendo adeus.

“Heh, parece que estou bastante bêbada. Melhor eu ir dormir, ou quem sabe o que vou acabar dizendo.”

Holo nunca foi discreta nos momentos mais importantes, mas a forma como ela falou fez parecer como se estivesse simplesmente se fingindo de valente.

No final, Lawrence foi incapaz de dizer qualquer coisa para ela.

Tudo o que podia fazer era aceitar que ela ainda não tinha simplesmente se arrumado e ido embora. Parecia simultaneamente impensável e totalmente provável que ela faria uma coisa dessas.

Lawrence queria gritar consigo mesmo por ser tão impotente em ajudá-la.

A noite caiu em silêncio.

Os gritos dos foliões bêbados podiam ser ouvidos através da janela.



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