Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.

Revisão: Dante


Volume 1

Capítulo 62: To e Tu

― Vão ficar escondidos até quando? Andem logo e apareçam! Estão atrapalhando minha soneca!

A voz de Xiao Ning reverberou no vazio, desalentada pela falta de resposta. Naquele momento de quietude, perpetuado por ambas as partes, o rangido dos bambus soaram como tambores rufando, preparando a entrada de algo memorável e trazendo em sua sinfonia um prelúdio sinistro. Foi então que duas figuras encapuzadas saltaram de dentro da floresta, ficando lado a lado na estradinha que cortava a selva maleável.

Eram dois homens e ambos trajavam vestimentas pretas e capuzes finos, ocultando em parte seus rostos. O da direita era alto e possuía um corpo robusto, a despeito de suas costas, que desenhava um ligeiro arco logo abaixo do pescoço, como se a idade avançada já estivesse começando a cobrar seu preço fazendo seus ombros pesarem e a cabeça pender para frente. No rosto, através do pouco visível, era notável uma barba grisalha, muito bem aparada, denunciando um toque de vaidade.

Seu cultivo, como Xiao Ning foi incapaz de determinar com precisão, parecia estar entre a 3° e 6° Camada do Reino Virtuoso.

O outro, em contrapartida ao parceiro, era baixo e magricelo, tão magro que seus braços e até mesmo as pernas pareciam ser mais finas que o topo das hastes dos bambus. Diferente do ancião, ele não aparentava estar tão preocupado em esconder a aparência, de modo que as feições de seu rosto podiam ser traçadas até pelo par de olhos mais desatentos, embora a real aparência ainda permanecesse oculta.

Xiao Ning correu os olhos de um para o outro, esperando que abrissem a boca, uma vez que foi ele a tomar a iniciativa de dizer a primeira frase. E os perseguidores perceberam sua intenção, pois o ancião abaixou o capuz e começou as apresentações:

― Eu sou To e este é Tu. ― apresentou-se, exprimindo uma voz cordial, enquanto fazia menção de dar início a uma reverência profunda, mas que não foi concluída. ― Gostaríamos de ter um momento com o estimado jovem Alquimista Ning.

Oh, um “Alquimista”, ahn... ― murmurou Xiao Ning, estreitando os olhos. ― Então vocês não estão me perseguindo apenas por acaso, não é?

― Perseguir é uma palavra forte. ― retrucou To, mantendo seu tom cordial. ― Apenas queríamos ter certeza que havíamos encontrado a pessoa certa.

― E o que querem comigo? ― Xiao Ning manteve sua atenção focada ao máximo. Seus olhos se atentavam a cada movimento brusco feito pela dupla, enquanto o Sentido Espiritual sondava a área adjacente à procura de mais alguém. Porém, eram apenas os dois.

E essa era uma boa e péssima notícia ao mesmo tempo. Ele estava feliz por não haver mais nenhum inimigo espreitando de longe, pois estes dois em sua frente já representavam um grande problema. Contudo, se houvesse algum membro da Família Xiao por perto, talvez eles fossem obrigados a recuar por agora.

― Fomos enviados aqui para fazer uma proposta. ― To não perdeu tempo em explicar a circunstância. ― Nosso líder ficou sabendo de suas habilidades e gostaria que você se juntasse a ele e sua Seita.

― Esse líder de vocês deve ser bem especial para conseguir enviar dois cultivadores talentosos apenas para fazer uma proposta. ― disse Xiao Ning, com uma nota de elogio, procurando estender a conversa na esperança de que mais alguém aparecesse para colher bambus. ― Quem é seu líder e a qual Seita ele pertence?

― Infelizmente, eu não posso revelar sua identidade ou o nome da Seita representada por ele. ― argumentou To, balançando a cabeça, demonstrando sua impotência para com o pedido feito. ― Mas se o estimado Alquimista desejar, eu poderia levá-lo para conhecê-lo. ― propôs, recobrando a confiança.

Xiao Ning franziu o cenho e ficou em silêncio por um instante, assumindo um semblante ponderativo, como se estivesse seriamente considerando aceitar a oferta. Mas quando a quietude se estendeu por um período excessivo de tempo, fazendo o ambiente ganhar uma atmosfera incômoda e suspeita, ele tornou a levantar a voz:

― Bem, eu ainda não ouvi o que vocês tem a oferecer. ― disse, nem recusando, muito menos aceitando a sugestão.

― O que você desejar. ― afirmou To, firme e resoluto em sua resposta. ― Contando que o estimado Alquimista esteja disposta a se juntar a nós, o nosso líder disse que terá o que desejar. Seja montanhas de ouro ou técnicas poderosas, tudo será seu. Lhe daremos homens, cultivadores poderosos, para que lhe sirva da maneira que desejar. Se houver algo do qual anseia, apenas diga e será seu.

To fez uma pausa dramática, deixando suas palavras corroerem o coração do jovem à sua frente, afinal, como sabia muito bem, jovens são ambiciosos, gananciosos por natureza, criaturinhas incapazes de recusar a tentação da riqueza e ostentação. Xiao Ning, por sua vez, permitiu ao silêncio se prolongar.

― Eu soube ― To voltou a falar, exprimindo uma voz sorrateira e melindrosa ―, que o estimado Alquimista Ning teve uma proposta de casamento desfeita recentemente. ― sibilou cada palavra como se fosse um veneno mortal, uma humilhação irremediável. ― Se aceitar seguir nosso líder, você terá a esposa que desejar e quantas amantes couber em sua cama. Mesmo aquela garota Xia, se assim quiser, poderá ser sua esposa ou concubina, apenas escolha.

― Para vocês poderem me ofertar tudo isso, esta Seita deve ser bastante poderosa. ― comentou Xiao Ning, parecendo curioso, como se quisesse saber mais.

― Não estou autorizado a revelar o nome, mas saiba que a Seita a qual nosso líder pertence é uma das organizações mais poderosas do Império Dourado. Não seria exagero dizer que eles controlam parte do Império. ― declarou To, vangloriando-se da entidade que insistia em permanecer oculta.

― “Eles”, hm... ― murmurou Xiao Ning, cerrando os olhos. Logo após, olhou ao redor e resmungou deixando seus pensamentos transparecerem. ― Francamente, ninguém vai aparecer não?

Entreouvindo o comentário, To indagou de maneira mais direta, exigindo uma afirmativa imediata:

― Qual sua resposta?

Ning coçou a cabeça, bagunçando ainda mais o ninho de ratos que coroava seus pensamentos e respondeu em um tom preguiçoso:

― Eu não tenho o menor interesse em técnicas ou possuir uma legião de cultivadores. ― declarou, recusando a proposta de To sem o menor sinal de hesitação. ― E quando falou em casamento, aí me perdeu de vez. Não quero e nem vou me casar. Assim como antes, morrerei livre. ― afirmou. ― Além do mais, o único motivo de não ter ido para outro lugar ainda é porque eu pretendo ajudar minha Família. Não faria sentido traí-los agora.

To lançou um olhar de lado, para seu parceiro, em seguida, virou-se para Xiao Ning e lamentou:

― É uma pena, preferimos resolver isso sem precisar recorrer a métodos mais bruscos.

E como se tivesse recebido a permissão para entrar em ação, Tu ameaçou dar um passo em frente, quando seu corpo se mexeu em um gesto de animação, dando início a um movimento. No entanto, ele foi parado, quando Xiao Ning estendeu a mão parecendo vulnerável, pedindo para esperar.

― Espere, espere um pouco. ― pediu, recuando um passo, dando a entender estar intimidado. ― Sabe, a verdade é que eu fiquei muito feliz quando você fez essa proposta.

― O que está insinuando? ― questionou To, que já não via motivos para agir de modo cordial.

― Vamos acabar logo com isto, antes que alguém apareça. ― sugeriu Tu, dando um passo em frente. Já havia percebido que a outra parte estava apenas tentando ganhar tempo.

― Não, não, é verdade. Fiquei muito feliz em ouvir a proposta de vocês. ― Xiao Ning tornou a falar, recuando mais um passo, enquanto balançava as mãos em frente ao corpo de um modo dramático. ― Pensei que estavam aqui para me matar a pedido daquele velho do 1° Ancião.

E neste momento, Tu, mais inexperiente, lançou um olhar condenatório na direção de To, que por sua vez continuou focado em Ning.

― Mas já que vocês não estão aqui para me matar e sim me sequestrar, ― sibilou o preguiçoso, que compreendia bem as intenções daqueles dois homens, deixando escapar um sorriso ardiloso. ― Então será muito mais fácil para mim escap...

Antes de terminar a frase, uma bola de fogo vermelha subitamente surgiu na mão de Xiao Ning, que balançou o braço jogando à Esfera Escaldando contra os dois perseguidores.

Tu, o qual se encontrava um passo adiante, foi pego de surpresa com a ação repentina quando se viu atacado por uma bola de fogo. Em um movimento ligeiro, ergueu os braços, cobrindo o rosto, mas a investida aconteceu de maneira tão súbita que ele foi incapaz de usar alguma técnica para se proteger. Mesmo To, o mais experiente, foi pego despreparado.

A bola de fogo se chocou contra os antebraços de Tu ― cruzados em frente ao rosto ― e explodiu, lançando uma onda incandescente para os lados, ofuscando por um instante a visão de ambos os homens que se viram obrigados a fecharem os olhos diante o lampejo vermelho que se propagou pelas áreas circundantes, manchando os bambus com um tom carmim.

― Merda! ― amaldiçoou Tu, balançando os braços com vigor, fazendo as chamas se dispersarem. ― Qual é o problema desse fogo vermelho? ― praguejou.

No geral, para alguém igual a ele, que já estava a um passo de avançar para o Reino Virtuoso, o ataque de um Mundano não deveria surtir qualquer efeito. Contudo, mesmo que não tenha deixado marcas de queimadura ou algum ferimento mais profundo, Tu sentiu um ardor forte envolver sua pele, quase igual à quando se esbarra sem querer no metal quente de uma panela que acabou de ser retirada do fogo.

Ele agitou as mãos, balançando os braços. Não estava sentindo dor profunda ou algo do tipo, era mais um modo de se recuperar do susto do que qualquer outra coisa.

― Para onde ele foi? ― quando o fulgor diminuiu, To voltou a abrir os olhos, mas quando fez isso notou que Xiao Ning havia desaparecido. O garoto pelo qual tinham vindo atrás sumira sem deixar qualquer vestígio.

― Merda, se a gente deixar ele fugir, o Coo vai acabar com a nossa raça. ― grunhiu Tu, olhando em seu entorno, buscando por algum indício de Xiao Ning.

Impaciente, To deu uma volta ao redor, procurando por uma marca que tivesse sido deixada para trás no momento da fuga; uma marca de pé no corrimão; uma folha amassada; um bambu que estivesse balançando mais do que os outros. Mas não encontrou nada. Começando a imaginar as consequências por ter deixado uma raridade escapar, insistiu mais um pouco, retrocedendo alguns passos na trilha, foi quando ouviu, um barulho de galho seco sendo quebrado.

― Ele foi para aquele lado. ― bradou, chamando Tu para segui-lo. E logo os dois saltaram o corrimão e adentraram a floresta de bambu pelo lado esquerdo de quem estivesse vindo do interior do território da Família Xiao.

Ao mesmo tempo, Xiao Ning atravessava a floresta, tentando evitar o melhor que podia esbarrar em algum ramo e denunciar sua posição, mas essa era uma tarefa difícil pois o chão estava coberto por folhas secas e os bambus se amontoavam uns nos outros, fechando a passagem.

Percebendo que não conseguiria escapar sendo apenas sorrateiro, ele abandonou a cautela e disparou em uma corrida acelerada, movendo as pernas o mais rápido que seu corpo conseguia aguentar. Contornou uma moita e saltou sobre a haste quebrada de um bambu madura que se encontrava caído, bloqueando a passagem.

Enquanto se afastava, mantinha o Sentido Espiritual focado, examinando tão longe quanto podia. Aos poucos começou a se distanciar da trilha que cortava a floresta, avançando para uma região ainda mais densa. Sua prioridade era deixar as bordas do território o quanto antes e alcançar uma área mais movimentada, portanto não se importou em seguir por uma estrada estabelecida e cortou caminho, disparando por um atalho selvagem.

No entanto, antes que conseguisse abrir certa distância considerável, sentiu duas energias se aproximando a uma velocidade impressionante. Logo seria alcançado. Percebendo isso, tentou correr mais rápido e uma sensação de queimação se espalhou por suas panturrilhas e coxas. Por outro lado, os dois homens estavam se aproximando cada vez mais e no instante em que chegaram perto o suficiente para seus passos serem ouvidos, eles se separaram, indo cada um para um lado, encurralando a vítima.

Notando que estava sendo aos poucos flanqueado de ambos os lados, Xiao Ning invocou o Bafo do Dragão e começou a jogar labaredas vermelhas contra os bambus, uma após a outra. Atingidas pelo fogo, as folhas secas forrando o chão foram instantaneamente incendiadas, mesmo o tronco verde dos bambus não foi poupado, quando começaram a estourar, deixando o ar preso dentro dos gomos escapar e liberando uma fumaça densa que subiu ao céu em grandes lufadas.

Em apenas um instante o lado esquerdo da floresta de bambu ardeu em chamas, com o fogo alaranjado, diferente daquele atirado por Xiao Ning, espalhando-se por todos os lados.

To e Tu, que seguiam logo atrás, pegos de surpresa, pararam momentaneamente a perseguição. A visão dos dois foi obscurecida pelo manto acinzentado que se ergueu em breves segundos, ofuscando a luz do dia e transformando a região abaixo em uma zona escura de desorientação, ao mesmo tempo em que uma parede ardente se atirava em suas direções.

Embora a parede de fogo que se erguia e avançava em frente devorando tudo no caminho parecesse intimidadora, eles apenas a atravessaram, abrindo caminho com o próprio corpo, deixando nada mais do que um traço de fuligem em suas roupas. Uma vez que as chamas se alastraram, já não fazia mais parte da Técnica de Combate e uma breve exposição não causaria danos a cultivadores feito eles.

Mas quando atravessaram o principal foco de incêndio, não conseguiram ver nada. A fumaça se tornava cada vez mais densa, ficando difícil até mesmo enxergar um palmo à frente e como se não bastasse, respirar virou uma tarefa dolorosa ― ainda eram humanos. To e Tu cobriram o nariz usando o manto, porém, o tecido fino se provou ineficiente, quando os dois começaram a tossir conforme seus olhos lacrimejaram. E o pior, não viam nem sinal de Xiao Ning.

Irritado por ter sido jogado em uma situação complicada por um reles Mundano, Tu tirou o capuz da cabeça, expondo um rosto jovial de alguém que havia deixado a adolescência há pouco tempo, e fechou o rosto, assumindo um semblante colérico. Era uma situação complicada não apenas por estar no meio de um incêndio que fazia seus pulmões arderem devido à grande quantidade de fumaça inalada, mas também, porque se retornassem alegando terem sido enganados por um fracote, sofreriam consequências severas.

― Seu pivete! ― rufou, amaldiçoando Xiao Ning com um ódio profundo e pungente. ― Espiral Ascendente! ― bradou com ressentimento, deixando sua voz ecoar poderosa, abafando o crepitar e os estouros vindos dos bambus queimados.

De repente, a bruma intoxicante que se espalhava para todos os lados, lenta e perigosamente enganosa, começou a ganhar velocidade, convergindo para um ponto em comum. Não apenas a fumaça, mas o ar ao redor foi tragado, dando origem a um ciclone tempestuoso, que igual a um rio, onde a nascente é calma e pacífica, à medida que vai descendo e crescendo, abrindo espaço na terra e leitos rochosos, vai ganhando força, tornando-se uma existência poderosa e imparável.

Um silvo perigoso se espalhou pela região circundante, feito uma fera selvagem despertando de um sono profundo. A fumaça foi devorada pelo ciclone que ganhou velocidade e aumentou de tamanho. Cinzas e fuligem não escaparam do poder impetuoso que se ergueu, pedaços de bambus queimados voaram vindo de todos os cantos, mesmo os focos de incêndio mais próximos não resistiram e foram apagados, mas o fogo continuou se espalhando, pois já havia alcançado áreas das quais a técnica de Tu não conseguia alcançar. De fato, as lufadas desgarradas instigaram as chamas, fazendo a destruição se alastrar ainda mais.

Conforme o vendaval crescia, Tu fez um gesto com a mão, apontando o dedo indicador para o alto e seguindo seu comando, o ciclone balançou e começou a afunilar, jogando a fumaça concentrada para cima toda de uma vez, deixando a área abaixo, antes caótica, calma e cristalina, tingida apenas pelo preto do solo queimado.

Uhuu! Uhuu! ― Tu tossiu algumas vezes, expelindo a toxina que havia inalado. ― Eu vou quebrar as pernas dele.

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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