Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 2

Capítulo 173: Mar agitado

Na manhã seguinte, o grupo acordou bem cedo. Tão cedo que o sol não havia sequer aparecido. E como era de se esperar, todos levantaram na hora, exceto por Ning. O dorminhoco precisou da ajuda de Shui para se erguer. E ela, chateada por ser obrigada a fazer o papel de uma pessoa severa ― de novo ―, fez questão de arrancar suas cobertas e guardar os travesseiros para não correr o risco de ele voltar a dormir.

Sabendo que a essa hora da madrugada, Masao e seu bando já estavam esperando no porto pela chegada do médico e Alquimista que checaria o estado de seu senhor, Xiao Qiao achou que seria melhor dispensar o café da manhã e comer apenas quando estivessem no barco.

Quando deixaram a casa do líder da comunidade, o grupo, composto por uma Shui animada e uma Corina mais cansada do que o normal, se deparou com uma cena curiosa.

Sabendo que o grande Alquimista responsável por elevar o status dos Xiao dentro do império partiria antes do sol surgir, o povo local tomou a decisão de se levantar junto dos pássaros para que pudessem se despedir.

Por isso, nesse momento, em frente à casa de Oliver, um grande número de pessoas se reuniam, trazendo seus sentimentos de que o jovem de bom coração e modesto que conheceram no dia anterior pudesse fazer uma viagem segura e que conseguisse voltar em segurança.

Quando viu aquilo, Xiao Ning se divertiu ao ponto de atrasar a partida para que pudesse dizer aos seus admiradores que, na volta, contaria mais histórias e conversariam por mais tempo.

O pessoal também se despediu das garotas e do Ancião e graças a isso, a partida da comunidade, a menor e mais fraca das Famílias Secundárias, foi bastante barulhenta. E isso não diminuiu até que todos estivessem dentro da carruagem e essa deixasse as redondezas do local.

É claro que, como o líder daquelas pessoas, o Sr. Oliver fez questão de acompanhar seus convidados por um breve período até o porto. Apesar da idade avançada, o velho de bengala estava acostumado a acordar cedo e de todos, sem dúvida, era o mais desperto, seguido por Shui. E quanto a sua ida até a cidade, ninguém se opôs.

O veículo responsável por levar os cinco ao porto foi o mesmo que os trouxe desde a capital. Apesar da carruagem não ter ficado estacionada nos arredores da comunidade, o cocheiro tinha sido pontual e chegado na hora combinada no dia anterior.

Também não houve mudança no trajeto e por isso eles chegaram no Porto de Falésia, que ficava antes do mercado de frutos do mar ― para quem está chegando na cidade ―, em poucos minutos.

Apesar de não haver sequer um único resquício alaranjado no horizonte, indicando que o sol estava para surgir, o lugar, composto por uma doca comprida na qual havia poucos barcos ancorados, já estava animado. Os trabalhadores, nada mais do que uma dúzia de homens, abasteciam os três navios de pesca com blocos de gelo para preservar os peixes e alguns suprimentos essenciais.

Entretanto, a embarcação que mais se destacava e que possuía a maior agitação era um veleiro azul-claro de tamanhos consideráveis e que dispunha de três velas, dobradas no momento. Na lateral esquerda, ao lado de um arabesco de rosas, ele trazia o nome: “Rosa Azul”; com grande orgulho.

Homens simples, em sua maioria descalços ou usando chinelos desgastados, eram vistos subindo a rampa que dava acesso ao deque, carregando caixas e mais caixas. Eles entravam em uma sala lateral e depois voltavam de braços vazios para que pudessem levar a próxima remessa.

Ali perto, de pé no cais e ao lado de uma pilha de caixas, encontrava-se Masao que, como de costume, estava com a mão esquerda sobre sua peculiar espada enquanto assistia aos homens trabalharem.

Quando viu Ning e os demais se aproximarem, ele abandonou a vigilância constante dos trabalhadores e, numa demonstração de alívio, caminhou de encontro ao Grã-alquimista. A expressão em seu rosto que não era severa, mas exibia traços de autoridade, ficou mais branda e sua mão escorregou do punho da espada.

― Vocês chegaram mais rápido do que pensei ― comentou ele.

― Eu não queria deixar meu contratante esperando, por isso tirei esse povo da cama cedo ― respondeu Xiao Ning, apontando para os demais de uma maneira casual ao passo que mostrava um meio sorriso divertido.

Hunf! Se não fosse por mim, a gente só sairia depois do almoço ― retorquiu Shui, que olhou para o amigo com uma expressão feia.

A interação entre os dois quase arrancou um sorriso de Masao. Mas não por ter achado engraçado. Vê-los tão dispostos pela madrugada era um ponto positivo, levando em consideração que eles teriam de enfrentar o mar e suas ondas nauseantes.

― Se vocês quiserem, podem subir e ir se acomodando. Falta pouco para que tudo esteja preparado e quando os homens terminarem de guardar as caixas, nós vamos partir ― disse o comandante, apontando para o veleiro.

Ning agradeceu pela informação e se preparou para subir na embarcação. Mas antes de sair, acompanhado das garotas e do 5º Ancião, ele se virou para o Sr. Oliver e falou:

― Obrigado por nos receber ontem. Foi muito divertido conhecer todo mundo. ― Seu tom de voz era mais cordial do que de costume, demonstrando certo respeito pelo sujeito em sua frente. ― Quanto aos presentes que você disse ter recebido, guarde-os por enquanto. Na volta a gente decide o que fazer.

O velho de bengala havia passado a noite anterior comentando sobre as doações e oferendas que o ramo secundário recebeu por causa do surgimento de um Alquimista entre os Xiao. Mesmo assim, Ning e os demais não demonstraram nenhum interesse em recebê-los.

Xiao Shui e Corina também se despediram do gentil senhor que as tratou muito bem. E no final, o Sr. Oliver garantiu que não colocaria um único dedo nas doações e ainda afirmou que deixaria tudo preparado para recebê-los melhor na volta e completou dizendo: “Tenham uma boa jornada até o último pedaço de terra”. Após isso, ele voltou para a carruagem que o aguardava na entrada da doca e o grupo da Cidade da Fronteira do Caos subiu na embarcação.

Quando o bando subiu no deque, um dos homens de Masao que os acompanhou ao longo de toda a viagem veio logo perguntar se eles desejavam conhecer a cabine em que ficariam. E apesar do Ancião Qiao ter aceitado a oferta, as garotas recusaram. Elas nunca haviam estado em um barco e desejavam conhecer um pouco mais da parte externa do veleiro antes de explorar o interior.

Ao subirem no convés, a experiência estranha de sentir o gigante balançando de um lado para o outro conforme o ritmo das ondas, embora sutil, fez elas ficarem animadas por saberem que estavam conhecendo algo novo.

Corina manteve seu semblante típico de indiferença, com o nariz empinado e o olhar pouco expressivo. Mas quando ela avançou de maneira impaciente em direção a proa, ficou evidente seu fascínio pelo desconhecido. Por outro lado, Xiao Shui foi um pouco mais sincera. A filha do 9º Ancião saiu em disparada até o outro flanco do navio. Ao chegar lá, escorou-se no parapeito, apontou para longe e falou:

― Olha! Dá para ver a costa ― apontou para uma encosta íngreme que Ning não precisou se esforçar para reconhecer, já que eles haviam passado por ali no dia anterior, quando chegaram na cidade.

― Verdade ― concordou o Alquimista ao se aproximar. ― Será que as ondas estão batendo forte por lá?

― Aposto que sim ― disse Shui, que colocou a mão sobre o ouvido direito, formando uma concha, e virou a cabeça de lado. ― Eu posso escutar daqui.

Seu último comentário arrancou um sorriso discreto do preguiçoso que se divertiu com a inocência da garota, já que aquilo não era o barulho da água arrebentando de forma violento contra uma parede rochosa, e sim o som natural de um mar agitado. Mas apesar de saber disso, ele não a corrigiu.

Nos instantes seguintes, as garotas ficaram indo de um lado para o outro, andando com bastante liberdade sobre o convés do navio. E elas pareciam atraídas especialmente pelo oceano.

Sempre que tinha alguma dúvida, sobre o nome de algo ou o funcionamento de uma peça, Shui recorria a Ning, tendo em vista que ele se mostrou acostumado a esse tipo de embarcação. Em contrapartida, apesar de também compartilhar das dúvidas, Corina preferiu guardar tudo para si.

Foi então que, após alguns minutos, Masao subiu no navio ao passo que os homens trabalhando para guardar as caixas deixaram o porto, pois eles não participariam da viagem. Em seguida, um homem baixo, de cabelo grisalho e rosto liso, saiu de dentro de uma sala localizada na parte superior do convés e falou:

― Nós iremos navegar rumo ao Reino da Lua verde. Podemos encontrar monstros pelo caminho, então estejam preparados. ― Com essas palavras simples, o capitão deu a ordem para que a embarcação zarpasse. E assim, a jornada até uma região desconhecida começou.

O pronunciamento curto do capitão trouxe uma grande agitação sobre o convés e todo o veleiro. Os tripulantes, composto por seis homens e quatro mulheres do Reino Espirituoso, correram de um lado para o outro, içando as velas, puxando a âncora presa no fundo da praia e soltando a corda que prendia o barco ao cais.

O destino deles, a partir daquele ponto, era navegar até uma localidade situada entre o extremo leste e nordeste do continente. Porém, quando a embarcação se moveu, deslizando sobre a superfície da água e criando pequenas marolas que arrebentavam na praia e nas vigas de sustentação do cais, ela seguiu direto para o leste, sem se afastar muito da terra firme.

O vento soprava forte, do nordeste para o sudoeste, com rajadas constantes vindas do mar aberto para a cidade. No entanto, o que deveria jogar o navio contra a praia, apenas o impulsionou para frente. E tudo isso graças a duas mulheres que conduziam as correntes de ar usando a Energia Espiritual para encher as velas e fazer o barco se mover.

Nesse momento, Masao, que tinha tido uma breve conversa com o capitão, aproximou-se de Ning, demonstrando um equilíbrio perfeito ao não precisar trocar os pés ou parar para se segurar quando a proa subia e a ré descia, castigadas por uma onda mais intensa.

― Vocês estão bem? ― perguntou, olhando para os dois jovens à sua frente. ― A primeira vez em um barco pode ser estranha.

― É estranho mesmo ― concordou Shui que estava se apoiando no ombro de Ning para não ser jogada de um lado para o outro.

― Se vocês ficarem enjoados, falem com o capitão. Ele tem alguns remédios que podem ajudar. Mas por enquanto, eu recomendo que entrem na cabine para se protegerem. Nós vamos passar por uma área turbulenta antes de entrar em mar aberto.

Ning e Shui agradeceram pelo conselho, porém se recusaram a segui-lo. Apesar do perigo, a garota de cabelo longo e azul desejava ver o que iria acontecer e a fala do comandante apenas a deixou mais motivada a permanecer na parte externa. E para a sua sorte, ou azar, ela não precisou esperar muito para descobrir que tipo de agitação eles encontrariam.

O barco não estava andando em uma velocidade espetacular e logo os novos passageiros descobriram que isso poderia ser proposital. Já que a embarcação estava avançando por uma área mais rasa, evitando se atirar em regiões mais profundas. Com o comando do capitão, eles seguiram direto para as enormes falésias, ficando sempre a poucos metros de encalhar na areia.

Quando chegaram perto do penhasco, Xiao Shui foi obrigada a se agarrar na beira do navio para não ser arremessada. À medida que chegavam mais perto das pedras, a água se tornou mais violenta, com ondas maiores e ferozes que arrebentavam na encosta vertical que se estendia por mais de trezentos metros.

O que antes era um som natural e agradável de se ouvir, transformou-se em estrondos trovejantes e ensurdecedores, que obrigavam as pessoas a gritarem em voz alta para serem ouvidas. As ondas estouravam nos enormes paredões, salpicando água por todos os lados. Tanto que, em menos de dois minutos, o cabelo da filha do Ancião e de Ning já se encontravam quase encharcados. Ondas que passavam dos dois metros de altura eram levantadas e desapareciam em meio a uma espuma branca.

Xiao Shui precisou usar mais força para se segurar do que esperava, ao ponto de enrolar o braço ao redor da grade lateral que cercava toda a embarcação. Ela sentia seus tímpanos vibrarem conforme seus pés lutavam para não serem arrancados do chão. A violência com que era sacudida se tornou extraordinária quando escorregou no convés molhado e por pouco não deslizou para o outro lado do navio que inclinou devido a uma oscilação forte. Se não fosse por Ning segurá-la e ajudá-la a se erguer, teria ido parar dentro do mar.

Quanto mais para o centro da falésia eles avançavam, mais caótico o oceano se tornava. O barco era sacudido de um lado para o outro, dando a impressão de que poderia tombar a qualquer instante ou que se chocaria com as pedras no fundo, que formava um corredor sinuoso e estreito por onde a embarcação passava.

A viagem tinha começado a pouco mais de três minutos, mas parecia que eles enfrentavam o trecho mais difícil que poderiam encontrar em toda a jornada.

Xiao Shui, que começou a se arrepender de não ter seguido o conselho de Masao, achava-se agachada no chão, encharcada da cabeça aos pés enquanto se segurava para não ser arremessada ou arrastada. Ela olhou para as ondas violentas que empurravam o navio, tentando tirá-lo da rota. Em seguida, mirou o horizonte que recebia os primeiros raios solares.

― A gente vai para lá, não é?! ― perguntou ela aos berros, meneando a cabeça e apontando para a direção contrária seguida pelo veleiro. Lá, onde seus olhos miravam, era uma região calma, sem grandes perigos aparentes como acontecia no pé do penhasco.

― É! Me disseram que fica seguindo naquela direção ― confirmou Ning, que também precisou berrar para ser ouvido. ― Mas acho que sei por que estão passando por aqui. Olhe! Bem ali tem um conjunto de corais ― apontou para a água, para o caminho que parecia mais fácil. ― O problema está do outro lado.

Shui seguiu a linha traçada pelo dedo do amigo, porém não conseguiu ver nada à princípio, pois o ambiente ainda estava um tanto escuro apesar da imagem do sol brotando próximo da gigante parede preta que ocupava grande parte do horizonte. Então, ela apertou os olhos e tentou se concentrar. Foi quando viu, a pouco mais de cem metros de distância, uma enorme protuberância causando uma ligeira perturbação na superfície do mar.

― Daqui não dá para ver direito ― continuou Ning. ― Mas aposto que ali é uma piscina funda, cercada por um imenso coral e muitas pedras. Deve estar cheio de Bestas Demoníacas que fariam nós parecermos formiguinhas.

― Eu não consigo “sentir” nada ― disse Shui em um tom de profundo espanto.

― E é isso que torna esses monstros tão perigosos ― retrucou Ning. ― Muitas pessoas não sabem disso, já que viajam pouco de barco, porém é mais perigoso ficar uma hora no mar, do que passar uma semana acampada em um lugar como a Floresta das Mil Perdições. Esses monstros são mestres em se camuflar e você não percebe sua presença até que ele esteja debaixo do barco, te devorando.

Neste momento, a jovem de dezesseis anos sentiu um calafrio percorrer seu corpo, pois eles passariam muito mais do que uma hora naquele lugar.

― Não precisa se preocupar. ― O preguiçoso exibiu um sorriso divertido ao perceber o rosto pálido da garota. ― Pela maneira que estão navegando, eu diria que estão acostumados com essa região. E existem certas correntes marinhas que ajudam a manter essas criaturas afastadas. Nós devemos estar indo para uma delas.

Saber disso deixou Shui mais aliviada, porém ainda era problemático ter de passar por esse penhasco.

E quanto a essa parte, Ning concordava. Tanto que ele se viu preocupado com o bem-estar de suas funcionárias. A que havia escolhido permanecer perto dele, estava em segurança, dado que poderia agir caso algo acontecesse. Contudo, não podia afirmar o mesmo sobre a outra.

Ei! Xu... Corina! ― gritou alto, tentando se sobrepor aos estrondos das ondas. ― Você está bem?

A praticante Despertada de cabelo dourado que também estava encharcada, havia encontrado um bom lugar para se agarrar. Contudo, ela foi obrigada a deixar a proa do barco para ficar mais ao centro, próxima ao mastro.

― Estou! ― disse ela em resposta.

Ouvir isso deixou o Alquimista mais relaxado, pois não queria ter de se jogar no mar para salvar uma das duas ou ambas. Se bem que, considerando o nível de força, era mais fácil elas o salvarem. A não ser, é claro que...

Foi neste momento que Ning percebeu algo que poderia se tornar um verdadeiro problema. Ele não considerou isto antes, pois lhe parecia natural. Contudo, suas acompanhantes ao menos sabiam nadar?

Confrontado por essa realidade com grande potencial de terminar em desastre, o jovem de alma velha torceu para que eles deixassem logo essa região tão problemática e entrassem em águas mais calmas.

Para a sua sorte, o capitão e a tripulação do navio desejavam o mesmo.  E não foi muito tempo depois ― quando a embarcação entrou em uma área de águas mais profundas ― que eles conseguiram abandonar as caóticas ondas para trás, podendo enfim se afastar da perigosa falésia.

 


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