Vida em Folhas Brasileira

Autor(a): Lucas Porto


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 1

 

Em meio a um vasto deserto banhado pela luz cintilante da lua, uma mão se ergueu. Definhando pelo tempo, a mão procurava enlouquecidamente algum lugar para se apoiar, mas o deserto se divertindo com seu desespero, impedia que aquele ser se levantasse. 

A mão não desistiu, continuou lutando contra seu fatídico destino de ser soterrado, com suas poucas forças, puxou o restante do corpo para cima, sentindo-se orgulhosa por cumprir seu objetivo. 

O homem que controla aquela mão respirou aliviado quando sentiu o ar frio tocar seu rosto. Seus olhos pintam o horizonte em busca de algo, mas as areias se encontravam por toda a parte. A visão se encontrava embasada, cansada, assim como seu corpo que estava em um estado desnutrido ele se surpreendia por simplesmente estar vivo. 

Retirou o resto do corpo da areia e observou a grande pedra branca do céu. Com aquele olhar de superioridade, a Lua e as estrelas observam atentamente cada movimento do homem que acabará de acordar, o deixando desconfortável. 

Voltando a atenção para si mesmo, reparou no estado em que suas vestes se encontravam. Destruídas e rasgadas, o peito nu enfrentava sem temor o sutil vento do deserto. E entre seus dedos do pé, reparou no constante e irregular movimentos das areias que simulavam o oceano. Avançando e recuando.

Começou a andar. Arrastando o pé sobre a areia, sentia a irregularidade brincando com ele, seu corpo ameaçava tombar, mas ele não permitia. Seu andar era similar ao de um homem velho, desgastado pelo tempo. Com a coluna curvada e olhos que lutavam para permanecer sóbrios, suas pernas gritavam de dor para aguentarem seu próprio peso. 

Até que um leve tremor chamou sua atenção. 

Vindo do sul acompanhado pelos ventos fortes, um tsunami de areia caminhava sobre sua direção.Tentou desesperadamente fugir, mas suas pernas o desobedeceram. Ele foi pego pela maré de areia e teve seu corpo arrastado com força, sem delicadeza alguma, como uma leve pena. 

Quando finalmente assumiu o controle sobre o corpo, o tsunami se dissipou voltando a sua forma anterior; pequenos e inofensivos grãos de areia. Nadou bravamente até chegar em uma areia mais sólida, parecida com a que estava antes. E subiu na mesma. Os pulmões e o coração tocavam no mesmo ritmo, acelerados. Olhos esbugalhados e assustados viam aquilo que sem dúvida, não era um deserto simples. 

 

A travessia do deserto não foi fácil. Os ventos fortes juntos com os tsunamis constantemente o carregavam de um lado ao outro. A pouca luminosidade do ambiente também o desorientou, seus olhos tinham uma  minúscula visão. Mesmo assim, sentiu que a cada passo que dava, suas pernas iam recobrando a força de algum modo. 

A luz da Lua o acompanhou em todo o trajeto, é desconfortante ser observado daquela forma, mas optou por se esquecer desse mísero detalhe. 

Finalmente avistou algo que fosse diferente de areia. Construções. Todas se assemelhavam a uma casa humilde, sem muitos detalhes, mas com seu próprio toque de personalidade. Ele acelerou os passos. 
Como era de se esperar, não havia pessoas nas ruas. Em um deserto perigoso como aquele, pessoas sensatas sempre escolheriam o conforto de suas casas ao invés do perigo da noite. Ele se aproximou de uma casa e deu três batidas fortes. 

Nenhum sinal de vida. 

Continuou repetindo a ação em outras casas e o resultado permanecia o mesmo. Cansado, preferiu continuar seu trajeto esperando que, se tivesse sorte, acharia alguém. 

Uma luz fraca chamou sua atenção. Ele se aproximou com cuidado e encontrou dois homens a beber e jogar conversa fora. O aroma que vinha deles ofendeu seu nariz, a conversa deles estava sem glamour algum, apenas suas vozes espessas e altas. Com camiseta suja de areia e cabelos desgrenhados, sua aparência não era muito diferente da deles, então preferiu não julgar. Um dos homens tentou encher o copo do outro com o Shochu, mas acabou derrubando a maior parte do líquido no chão. 

Ele se aproximou, inicialmente os homens não o notaram, era difícil distinguir algo quando se estava tão bêbado quanto eles, mas quando sua voz os tocou, eles saíram de suas vidas ilusórias e retornaram cansados para a realidade. 

— Com licença, onde nós estamos agora? — A voz dele falhou um pouco, estremecida e tímida. Mesmo assim os homens o notaram. 

A voz do homem bêbado, que se preparava para responder o caminhante com uma série de insultos, foi cortada por si mesmo. As pupilas dilataram e seu rosto ficou pasmo. Os dentes começaram a colidir um com os outros, gaguejando, tinha que se esforçar para que a língua soltasse a voz e disse-se algo. O outro homem que segurava a garrafa de Shochu teve a mesma reação, ele se segurou na parede que estava atrás de si para não cair enquanto olhava assustado. 

— Co... Co... Não pode ser, aquilo é… 

— Sim! É um Noredan! — afirmou em desespero, o que os olhos dos homens viam naquele momento era surreal. Para aqueles que estavam acostumados com as criaturas que saem do interior do deserto, se deparar com uma que possui a forma humana e ao mesmo tempo é tão diferente de um, só poderia ser um Noredan das histórias que eles mesmo riam quando viam as crianças assustadas. 

Mas repleto de ignorância, o homem se sentiu perdido com aquelas palavras dirigidas a ele.

— Esperem, do que vocês estão falando? Eu só estou perdido. 

Quando a criatura monstruosa deu alguns passos à frente, os homens berraram. O primeiro saiu correndo, tinha dificuldade em seguir em linha reta por conta da bebida, mas não hesitou nem um pouco em se afastar dali. O segundo homem arremessou a garrafa na criatura e também correu para longe. 

Sem tempo de reação, a garrafa voou e atingiu a testa do homem que ainda tentava entender o porquê do pavor daqueles bêbados. O impacto da garrafa com sua pele abriu uma pequena ferida. Assustado ele passou a mão no local para ver a gravidade daquele ataque, mesmo tendo apenas pegado de raspão seu corpo estava fraco, aquilo poderia se tornar um problema no futuro. 

Entretanto, para sua surpresa, o ferimento desapareceu. Além disso, sua mão que antes estava completamente ressecada agora se encontrava em seu estado normal. O espanto daquilo fez seu coração saltar, deixando-o abalado, se ajoelhou no chão e pegou um dos cacos de vidro para olhar seu próprio reflexo. 

De fato, a ferida proporcionada pela garrafa não se encontrava lá. Em compensação, o restante de seu rosto estava de uma forma diferente.

Os olhos completamente negros sem qualquer sinal da pupila ou retina. Outras partes do rosto estavam com sangue, mas sem sinal de alguma ferida, partes de sua pele estavam trincada por enormes arranhões negros que se misturavam ao sangue sobre a pele. Era óbvio que todo aquele sangue pertencia a outro ser, humano ou não. Foi difícil para digerir e sequer explicar, mas se pudesse definir com apenas uma palavra, sua aparência se assemelha com um demônio. 

Se jogou para trás e colocou ambas as mãos no rosto, o pânico invadiu seu ser e ele tentava lembrar como ficou naquele estado. Nada. Nada era o que vinha, um completo vazio, a memória mais recente que possuía era de acordar no deserto. 

— O que… Por que meu rosto está assim? O que é tudo isso? — questionou a si mesmo, conseguindo ouvir os batimentos do seu coração se ampliarem cada vez mais. 

Passos pesados foram ouvidos e roubaram sua atenção. 

Ele se virou na direção do som, se levantou abruptamente quando viu do que se tratava. Com um metal vermelho e reluzente, a armadura chamava a atenção mesmo naquela escuridão que cobria todo o céu. Um símbolo estranho no ombro direito e portando uma lança na mão esquerda, aquele é sem dúvida um guarda local da Lótus Vermelha. 

— O que é isso… — disse o guarda, sua voz grave se dirigiu até aquele homem, por mais que tivesse uma aparência similar a um morador de rua, o sangue espalhado pelo rosto e suas feições demoníacas fizeram até mesmo o grande guarda ficar em estado de alerta, segurando sua lança com força. 

— Eu sou apenas um camponês, não quero causar confusão, por favor, onde estou? 

— Calado! — contestou com a voz alta, que fez o homem recuar. — Nunca durante minha vida pensei em ver um… Pobre homem, saia já desse corpo Noredan! — Ficou em guarda, com a perna direita para trás e segurando firmemente a lança com as duas mãos. 

O homem não teve tempo de se defender, já era tarde quando percebeu que o guarda correu em sua direção com a lança preparada para atingir sua barriga. 

Foi um instinto automático, seu corpo se recusou a ser atingido e se moveu quase que por vontade própria. Se esquivou para a esquerda e mesmo assim a lança rasgou uma pequena parte de sua barriga, um dano superficial. Sua mão esquerda agarrou o pescoço do guarda e o ergueu a alguns centímetros do chão. Mesmo que ambos os homens tivessem o mesmo tamanho, e um deles estava usando uma pesada armadura, o braço que o erguia em nenhum momento fraquejou, deixando claro a diferença de força. 

Uma lembrança veio à tona.

Esse mesmo homem estava em um campo de batalha, com destreza manipulava duas espadas curvas realizando cortes tão minuciosos que eram quase cirúrgicos. Diversos inimigos morriam enquanto sentiam o doce aroma da morte que vinha daquele homem. Aquele homem ficou desorientado, tentando entender aquela lembrança que surgiu do nada.

O guarda reparou que a criatura estava estática. Como se tivesse acabado de se lembrar de algo importante. Aproveitando a chance, ergueu a lança e tentou fincá-la no pescoço daquela criatura. 

Os pensamentos foram cortados assim que percebeu o ataque que aquele guarda tentou realizar. Seu corpo ficou leve, ele sentiu quase como se outra pessoa o controlasse. Lançou o guarda para trás que voou a poucos metros de distância batendo com as costas no chão.

O suor escorria no rosto do guarda, ele respirava de forma pesada e sem saber ao certo o que fazer enquanto via a criatura se abaixando e pegando a lança que havia caído de suas mãos. Foi um mero instante, mas ele viu uma segunda criatura, que parecia sair de dentro do homem possuído rindo de toda a situação. 

Não conseguiu permanecer ali, se virou e tentou fugir, mas antes que pudesse começar a correr. Sua própria lança perfurou seu pescoço arrancando a vida de seu corpo. 

O homem ainda permanecia chocado com toda a cena, como pode agir de maneira tão brutal sem sequer hesitar? Sua cabeça doía sem parar. Se aproximou do corpo do guarda e o arrastou para um canto escuro tomando o cuidado para que ninguém o visse. 

Retirou cada peça de roupa do guarda e as vestiu. Sem sentir empatia nenhuma por aquele guarda, mesmo sabendo que o que tinha acabado de fazer estava completamente errado. Era como se seus sentimentos sumissem naquele instante.

Usou o pano da calça que vestia antes para limpar a si e a arma, não queria levantar suspeitas. Olhou um pouco para o símbolo no ombro esquerdo da armadura, era estranho. 

Uma mancha negra, sem uma forma pré-definida, mesmo sendo um símbolo quase indescritível, ainda era familiar… Outra memória retornou a seu ser. 

Um velho estava a falar com uma versão mais jovem de si mesmo, em torno de 7 a 8 anos. Lembrou de como admirava a barba do velho, disse a si mesmo em pensamento que queria ter uma barba como aquela. 

A versão jovem de si mesmo e o velho olhavam para os guardas que estavam caminhando pela rua, cobrando imposto e conversando com os demais moradores. A curiosidade da criança não conseguiu se conter, em uma fala acelerada quase atropelando as palavras, questionou. 

— Por que eles usam esse símbolo estranho? É tão feio… — analisou, apoiando a cabeça no próprio braço enquanto seguia os guardas com os olhos. 

Um sorriso discreto saiu dos lábios do velho. 

— Tsju o Louco — comentou o velho, a voz calma e reconfortante lhe trazia segurança, se virou para prestar a atenção na história. — Quando Tsju junto a seus homens chegaram e descobriram essas terras, eles massacraram o antigo povo que aqui vivia cortando a cabeça de cada um e as pendurando em grandes estacas. Ele reparou no sangue de um dos corpos que se espalhou pelo chão, disso, ele fez sua bandeira, o próprio sangue, assim como batizou essa terra de Artéria. 

— Eca! Que nojo — o jovem colocou a língua pra fora e fez uma careta. —, que péssimo gosto ele tinha. 

— Por isso o chamavam de O Louco. — Retrucou e logo em seguida colocou a mão gentil sobre a cabeça da criança, bagunçando o cabelo da mesma. — Mas concordo com você, ele tinha um péssimo gosto. Venha Kishi, vamos almoçar agora. 

Voltando para o presente, ele deu um sorriso discreto. "Kishi, então esse é o meu nome”, questionou, e encarando o símbolo na armadura, fez uma careta, igual quando criança. Terminou de se vestir. 

 

Floresta da Morte.
Um rapaz organizará alfabeticamente os livros da vasta biblioteca. O local escuro e quieto trazia um ar de sabedoria e melancolia, tantos livros abandonados e mesmo assim, seu lorde fazia questão de preservá-lo. Estava entediado, sabia que aqueles livros eram importantes para alguma coisa, mas durante todos esses anos trabalhando para a Lótus Negra nunca se interessou em abrir um deles. 

"Porque não tentar", ele pensou, sabia que alguns daqueles livros eram proibidos e apenas as altas patentes tinham o acesso. Mas ali, no meio da escuridão iluminado apenas por um lampião que trouxe consigo, não viu problema em tentar ler um.

Seus olhos caçaram pelas estantes uma presa fácil, algum livro que fosse pouco espesso, afinal, ainda tinha trabalho a ser concluído. Foi então que um dos livros, cercado pela curiosidade, foi agarrado pela mão do homem que começou a revirar suas páginas. 

Seu título era Karan

Um nome curioso que o instigou ainda mais. Infelizmente, antes que seus olhos conseguissem fisgar aquelas minuciosas letrinhas, a porta da biblioteca se abriu e em um susto o rapaz derrubou o livro no chão. 

Se abaixou para pegar o livro antes que alguém o visse, mas quando percebeu já havia alguém em sua frente, segurando o livro. 

— Kalani — anunciou o homem, sua voz foi facilmente reconhecida por Kalani que estremeceu todo o corpo. 

— Sim… Meu lorde… 

— Se deseja ler algum desses livros, peça a permissão para seu general responsável. Esses livros são mais preciosos que sua vida e se eu o ver tentando os surripiar novamente… — O silêncio que se instaurou foi assustador. — Vamos torcer para que isso não ocorra. Dispensado. 

Kalani nem sequer ousou contestar seu lorde, e a passos acelerados se retirou rapidamente do local passando por um segundo homem que seguia seu lorde, prestou pouca atenção em quem era pois estava envergonhado de ter tomado uma bronca.

— Podia ter sido mais gentil lorde Hakuro. 

— Ele precisa de disciplina. Gazel me disse que ele está tendo dificuldade nos treinos e na utilização do Ry, com esse sermão ele irá se focar mais no treino para novamente não ter que cuidar da biblioteca a noite. 

— Perspicaz como sempre, meu lorde. — Observou que Lorde Hakuro encarava a capa do livro de Karan, umas das técnicas secretas de Ryoto. — O senhor conseguiu decifrar os livros, senhor? 

— Não. — Guardou o livro. — Eu continuo estudando o Osoi. Sinto que há algo que ainda não descobri sobre essa técnica. Talvez o segundo estágio se refira a...

Um ninja da Lótus Negra chegou correndo em alta velocidade, suando frio e com o desespero tomando conta do seu corpo, trazia consigo notícias urgentes. 

— Meu Lorde… — Ele elucidava, estava ofegante e puxava o ar para tentar se recompor. — Na cidade de Dalloi, perto do Deserto que Caminha apareceu… 

— Acalme-se. Desespero apenas irá piorar sua falta de ar. Se for alguma das criaturas não se preocupe, a família Iona e a família Nyune se encarregam daquela área. 

O ninja continuava lutando para que o ar entrasse em seus pulmões, provavelmente o desespero fez com que ele perdesse o controle da respiração enquanto usava a técnica Ry. Era isso que Hakuro pensava no momento. 

Já estava acostumado. Mesmo a técnica Ry sendo a mais básica dentre todas as técnicas e o essencial para que se entrasse na Lótus Negra, muitos perdiam o controle quando se deparavam com uma situação de dificuldade o que evidenciava sua falta de experiência. O Deserto que Caminha é um local estranho, as areias se movimentam como o oceano e as poucas criaturas que conseguem sobreviver lá são espantosas. O Réquiem – um tubarão de areia como é popularmente conhecido – já comeu um antigo companheiro de Hakuro na época em que ele era um simples ninja em treinamento. 

— Não senhor, você não compreendeu… — Uma das sobrancelhas de Hakuro se levantou agora com a atenção voltada ao ninja. — A informação acabou de chegar, alguns moradores viram… Um Noredan. 

Quando as palavras saíram da boca daquele Ninja, Hakuro esbugalhou os olhos, não conseguia acreditar naquilo que ouvira e por um momento perdeu a razão. Virou para o outro homem que estava ao lado do ninja. 

— Kana, o general Olú e seu grupo estão se preparando para partir até a cidade de Revin que fica perto da cidade de Dalloi neste momento, não é? — indagou Hakuro e Kana confirmou com a cabeça.

— Envie uma mensagem agora mesmo para que eles fiquem na espreita. Eu quero que capture aquele Noredan. 

— Como quiser meu Lorde. — A passos rápidos Kana e o ninja se retiraram da presença de seu Lorde o deixando sozinho à mercê de seus pensamentos. 

Hakuro cerrou os dentes lembrando de tudo que os Noredan já fizeram com o mesmo. Então, fechou a mão. 



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