Volume 1
Capítulo 40: No Outro Mundo
O sol nascia tingindo todo o céu sobre a planície do Reino do Leste em azul e laranja, a vastidão de campos produtivos e as vilas de agricultores marcavam o cenário abaixo, e no centro de tudo isso a Montanha Solitária, escura, íngreme e misteriosa. A maior e mais segura fortaleza do Outro Mundo. No seu topo estava a pessoa conhecida por herdar os poderes do deus da sabedoria.
Era primeira vez que o estrategista da antiga União Maior do Oeste pisava dentro da Montanha Solitária, um sentimento indescritível para alguém que passou tão perto de adentrar o local como conquistador daquelas terras. E mesmo após semanas como hóspede dos filhos de Miraa, assistindo ao nascer do sol todos os dias, Felipe ainda ficava admirado com a beleza daquele momento.
O sonho de conquistar o Leste nunca havia se concretizado, entretanto era suficiente apenas estar ali e aproveitar o momento. Era inspirador e revigorante, mesmo assim Felipe estava preso a pensamentos conflitantes, desde que chegara foi como se os seus poderes estivessem aos poucos deixando de existir, e cada vez mais dúvidas surgissem em sua mente.
Em compensação Shiduu havia lhe permitido verificar o conteúdo do diário que André deixou para trás, e mesmo após ler tudo vinte vezes Felipe ainda não estava confiante que André revelasse todos os seus segredos ali. O filho mais novo de Miraa não era de revelar tudo, como sempre, deveria haver uma carta na sua manga.
O diário de André continha informações que não existiam no livro que ele havia levado para o Mundo Original, além disso estava escrito em língua comum sendo mais fácil de ler. A parte difícil era que André omitiu muitos detalhes e narrou tudo sob o seu ponto de vista. Mas para alguém que leu os dois, seria possível entender o que André estava tentando esconder.
O que deixava Felipe mais confortável era o fato de que os filhos do Leste foram gentis com ele mesmo sabendo que o herói herdeiro do deus da sabedoria era o responsável pelas estratégias militares que trouxera destruição sobre o Leste pouco tempo atrás.
Enquanto isso, os heróis que vieram com Felipe estavam espalhados resolvendo cada um uma coisa diferente, afinal o objetivo de virem para esse mundo não foi o mesmo para todos. Inclusive alguns haviam vindo por não haver outra saída, como era o caso do chefe da segurança da divisão chefiada por Felipe.
Atualmente, Leonardo havia saído em busca de sua família, Josiley estava percorrendo vários lugares em busca do máximo de informações, Kawã estava com Jonas para garantir que o herói defensivo não piorasse as coisas, Lucas estava em um retiro espiritual. Anne era a única que permanecia com Felipe na Montanha Solitária, mesmo que a sua presença parecesse incomodar mais do que a do ex-estrategista do Oeste.
Valmir por sua vez, por não ser um dos antigos inimigos do Leste, era o que estava se sentindo mais à vontade e havia feito amizade com muitos dos guardas do reino, e todos os dias treinava com Shiduu para aprender novas técnicas de combate. Felipe sorriu ao pensar que dali poderia sair mais um caso de amor entre pessoas de dois mundos diferentes, literalmente.
Enquanto Felipe permanecia se banhando nos primeiros raios solares do dia, folheava o diário de André sem sequer olhar, apenas pela sensação de passar as páginas. Anne se aproximou com cara de sono e bocejando.
— Bom dia Felipe…
— A saudação aqui no Leste é “noba”! — Felipe respondeu sem olhar para Anne.
Anne bufou e fez de conta que não se importava com o jeito de Felipe, mesmo após quase 13 anos de convivência, ela ainda achava aquele cara irritante.
— Descobriu algo? — Perguntou a garota com certo interesse — Nesse diário que você está lendo e relendo há dias… Não sabia que o André era capaz de escrever!
— Descobri como ele ganhou os poderes ao menos… — Felipe fechou o livro e ficou encarando a capa escura do objeto.
— E isso pode ajudar em alguma coisa? — Revirou os olhos em deboche.
— Sim!
— Você voltou a ser um homem de poucas palavras…
— Talvez descobrir que estivemos errados por mais de 12 anos tenha me afetado um pouco!
— Quem exatamente esteve errado? Você? Isso não é possível…
— Você não faz ideia do que é ou não possível…
— O que mais descobriu? — Anne sentou-se na mureta de proteção onde Felipe estava encostado, porém de costas para o sol nascente.
— Não foram bem descobertas, são mais suposições do André, mas se ele estiver certo, esse mundo está fadado à destruição, não adianta que nós intervenhamos.
— E se ele estiver errado? Não me diga que vai deixar tudo de lado para ir atrás de um monte de coisas que saíram da mente estranha e doentia do André, você sabe que ele não é de todo certo, psicologicamente falando.
— Eu conheço bem os problemas do André, e sei que a forma dele pensar é muito diferente da maioria das pessoas, mas não julgo, eu também não penso com os outros. — Felipe Respirou fundo e continuou — E talvez seja a minha vez de sair em uma jornada em busca de conhecimento interno!
— Mas e a guerra? Não temos o dever sagrado de impedi-la? — Anne se virou para Felipe com uma expressão exasperada.
— Não me importo com o resultado dessa guerra, não importa quem saia vencedor, sempre haverá perdas de ambos os lados. Há algo bem maior do que a guerra chegando, e foi por isso que o André foi nos buscar, infelizmente não seremos capazes de fazer nada que não seja assistir esse mundo em chamas. Além do mais não sou um combatente, então escolho me focar em algo mais importante.
Felipe voltou o seu olhar para o Oeste, vendo a sombra da grande montanha cobrindo a planície, se debruçou sobre o parapeito de pedra e sorriu. Ele já não se importava com reis, guerreiros ou heróis, havia algo maior que apenas André sabia o segredo, e Felipe não se sentiria confortável enquanto não descobrisse.
O vai e vem das pessoas lá em baixo, desde antes os primeiros rios solares, os campos a perder de vista cultivados com dezenas de espécies de plantas comestíveis, os animais que pastavam tranquilamente sobre a grama molhada do orvalho da manhã, os rios ao longe movimentando gigantes moinhos de água. Tudo aquilo era belo aos olhos de Felipe, que jamais tivera tempo para apreciar tais detalhes nos seus primeiros anos nesse mundo.
Não que nos reinos do Oeste não houvesse tal beleza, apenas que os heróis não tinham direito de aproveitar momentos de apreciação da beleza natural. Tudo girara em torno de treino, estudo e guerra.
— E o que é tão importante assim? — As palavras de Anne atrapalharam os pensamentos de Felipe.
— Os deuses… Preciso descobrir o segredo deles…