Volume 3
Capítulo 138: Vigésima Oitava Página do Diário
Doeu. Doeu muito. A armadura amorteceu parte do impacto contra a ribanceira, enquanto meu corpo rolava igual uma jaca para dentro da água. Eu poderia ter morrido, se não fosse pela armadura de última hora.
Senti meu corpo flutuando na água do riacho, era até relaxante. Mas esqueci de criar uma reserva de oxigênio, então comecei a ficar tonto. Desfiz a armadura e nadei à braçadas a favor da correnteza, sempre mantendo a bota de Rancor na perna esquerda, que estava fraturada.
Quando cheguei ao bosque, estava morto de cansado. Saí do riacho, deitei na margem, e dormi. Quando acordei estava sendo colocado em uma carroça. E talvez nem tivesse acordado se a bota de rancor não tivesse sumido enquanto dormia, a da da perna fraturada balançando me fez dar uma gritinho estranho.
Ainda bem que só Nilo e Brogo estavam ali, me colocando na carroça. Se fossem inimigos, teria sido uma desonra para todo o Leste.
Fui informado que o resgate dos escravos tinha sido um sucesso, e o grupo havia partido na frente, guiados por Jairo e o mudo. Nilo e Brogo ficaram para trás apenas me esperando. Na verdade os dois foram até a mansão do Barão, se disfarçaram de guardas, viram eu caindo no rio, e correram para me salvar.
— Quando a gente te encontrou, você não acordava por nada… — Brogo explicou.
Muito eficiente ser acordado pela dor insuportável de um osso fraturado. Enquanto eu criava uma nova bota ortopédica de Rancor, Nilo explicou que estávamos muito atrasados. Os outros haviam partido horas antes, e estavam viajando em carruagens boas, puxadas por cavalos de raça.
Eles haviam roubado os cavalos e carruagens no caminho para ajudar na fuga, isso me orgulhou. Mas a carroça que estavam me levando era uma coisa diferente, e os cavalos eram acostumados a puxar arado, e não a correr.
Pelo menos foi suficiente para me tirar do meio de mato.
Achei muito bonita a ação de Nilo quando ele devolveu a carroça à fazenda onde tinham pego, pela aparência, pertencia a uma família pobre. Eu não gostava de fazer mal às pessoas que não tinham quase nada e dependiam do próprio trabalho para sobreviver.
Ficamos escondidos no celeiro durante o restante da noite, junto com os animais. Até consegui dormir mais um pouco, e quando acordei, Brogo me avisou que Nilo tinha ido em busca de cavalos bons em uma fazenda ao lado. Parecia que era de um nobre que criava cavalos de guerra.
Antes que amanhecesse, Nilo chegou com três cavalos.
Eu nunca gostei de andar a cavalo, mas em uma questão de escolha, não tinham muitas opções. E dado ao fato de que as outras formas de transporte já tinham partido, junto ao meu tornozelo ferrado, ir no lombo de um animal galopante poderia não ser tão ruim.
Quando o sol surgiu no horizonte à nossa frente, já estávamos longe de Utab. Pegamos a estrada principal com destino ao centro do continente, de lá cruzaríamos a grande falha por uma das três pontes quilométricas que haviam sobre aquele lugar, com destino a Parva, a primeira cidade do Reino do Leste.
O problema era a curva que precisaríamos fazer. Se não fosse pela Grande Falha, era só seguir em frente e logo estaríamos em solo seguro, mas a ponte mais próxima ficava a meio dia de viagem.
A estrada seguia pala margem da Grande Falha, dando para ver o abismo e a névoa escura lá dentro. Aquilo me deu calafrios ao lembrar o que passei anos atrás. Não foi uma experiência boa, mas saí com vida. Apesar de tudo, o saldo foi positivo. Talvez, positivo fosse um pouco exagerado, mas não era negativo, então estava bom.
Eu estava vivo, e isso era um começo.
Dei mais uma olhada na névoa escura, percebi o quanto se parecia com a névoa do Rancor. Só então percebi que poderia ter alguma relação direta.
Haviam me dito que a névoa era mortal, venenosa e corrosiva. Mas, e se de alguma forma o meu corpo foi capaz de resistir, agra eu era capaz de controlar. Sem contar que o Rancor era um poder mortal.
Chupa essas seus heroizinhos de merda! Meu poder é o melhor.
— Aê Deco! — Nilo gritou — O que foi? Tá se sentindo mal.
Só então percebi que tinha parado o cavalo. Nilo e Brogo já iam longe quando perceberam que eu tinha parado, então os dois voltaram para ver como estava a minha situação.
— Ah, não foi nada. Estou bem! — Respondi — Só estava olhando para a névoa ali e pensando em uma parada…
— Ah… — Nilo me deu um olhar de pena — Foi muito mal o que fizeram com você, teve muita sorte de sair daí com vida…
Sorte?
E se não foi sorte? E se tudo foi um azar? E se foi tudo por acaso? E se não foi nem uma coisa nem outra?
Não importava a resposta, eu tinha que tentar aquilo. Tinha que entender o que exatamente era o meu poder, e por que aquele abismo parecia me atrair.
Desci do cavalo e fui até a beirada, ignorando totalmente os gritos de Nilo para que eu tivesse cuidado. Brogo não gritou, ela desceu de sua montaria, veio até o meu lado, e segurou a minha mão.
Como alguém que conhecia o desespero, ela parecia entender o que eu estava sentindo.
Então fizemos silêncio.
O silêncio tão profundo que nem mesmo os cavalos pareciam se mover. Era possível ouvir os meus batimentos cardíacos, e a respiração de Brogo. Eu ouvi o vento, e senti o abismo.
Como se eu fosse parte de tudo aquilo, eu senti. De uma ponta à outra, de uma margem à outra, da beirada até o fundo. O abismo estava vivo, e respirava.
Eu senti ele me chamar, mas resisti. Então senti como se a névoa dali me protegesse, ela mantinha o abismo inerte. Eu não entendi, mas senti que eu e a névoa tínhamos uma conexão.
Então tentei usá-la.
Ergui minha mão e, como se soubesse exatamente o que estava fazendo, ordenei que a névoa me obedecesse. Deixei um pouco da névoa do Rancor sair e tocar a névoa da Grande Falha.
Então houve uma reação.
A névoa do abismo começou a girar como um tornado, e depois se condensou em três pilares que subiram até ficar ao nível do solo na margem do abismo, bem à minha frente. Os pilares foram ligados por uma rampa perfeitamente plana, com proteções nas laterais. E lá estava, uma ponte feita inteiramente de Rancor e névoa.
Pisei na ponte, era bastante firme. Dei dois passos, e ela nem tremeu. Brogo veio junto, e deu um sorriso. Parecia que ela tinha aprovado a construção.
Nilo não parava de me encarar, assustado.
— Você fez mesmo uma ponte com a névoa da Grande Falha? — Ele perguntou.
—Acho que sim… — Respondi.
Então ele riu. Todos rimos.
Não sabíamos do que estávamos rindo, mas foi divertido. Mas não era o momento de perder tempo, Nilo lembrou, então montamos nos cavalos e atravessamos.
Chegando no outro lado, pegamos a direção em linha reta até Parva. Havíamos economizado umas três horas de viagem, e chegaríamos antes do fim do dia. E contando com os cavalos de qualidade, isso seria bem rápido.
E foi.
Não demorou muito, vimos os muros da cidade.
— Finalmente estamos em casa! — Eu disse.
Mas algo parecia difrente. A cidade estava quieta, não havia sinal da movimentação esperada de uma cidade construída para ser um mercado no centro do continente. E a fumaça… Não havia fumaça na última vez que cheguei a Parva.