Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 12: Aparelho

Levantei do chão e olhei para Bila.

— Matar alguém? — me espantei.

— Exato. — Sorriu. — É uma tarefa exaustiva, mas sua amiga deve dar conta.

— Não sei se ela saiu da fumaça viva, nem se ela mataria alguém. — Bati o pé no chão.

— Eu conheço bem os espinhos dela. Ela deve ter matado pelos menos umas dez pessoas antes de sair da confusão — falou com convicção.

Eu queria quebrar o acordo ali mesmo.

Sisa faria de tudo para salvar o Croc, mas matar uma pessoa para pagar uma multa iria longe demais.

Abri a boca para desfazer o acordo, mas a casa começou a se remexer. Em um piscar, os laços se transformaram em agulhas de costuras apontadas aos meus olhos.

— Vou pagar sua multa em troca de um assassinato. O acordo ainda tá de pé, né? — questionou Bila, fazendo carinho nas extensões da casa.

— É claro — disse suando e encarando as agulhas.

O quarto de Bila era uma gaiola para mim. Qualquer deslize ali dentro poderia ser uma queda sem fim, então aceitar a proposta dela por hora era a melhor opção.

— Ótimo. — Ela bateu palmas. — Agora é só você fazer contato pelo seu Meliodes com seus amigos e irmos até eles.

— Não tenho um Meliodes. — Passei os dedos no pulso direito. — Cresci sem um e o Esmael falou que arranjaria um apenas quando o processo de parasitagem acabasse. — Funguei para fingir tristeza.

Hmmm! — Bila colocou o dedo na boca e começou a andar pelo quarto. — Já sei. Você tá com a papelada em dia?

— Resolvemos ela nessa tarde.

— Beleza então. Amanhã de manhã vou descolar um Meliodes pra você entrar em contato com seu hospedeiro. O hospedeiro e seu parasita têm um aplicativo próprio.

Levantei uma das sobrancelhas. Eu estava com pressa para achar Esmael e Sisa. Esperar o sol raiar seria perda de tempo.

Abri a boca para apressar a fauna, mas dei um bocejo longo e cansado. As palavras saíram tortas.

Dormir e esperar pela manhã virou uma ideia plausível, então concordei em descansar.

Bila de imediato deitou na sua cama e mandou sua casa me mostrar o meu lugar de dormir.

Pelo buraco onde caímos, os laços do quarto formaram uma escada. Eles até formaram setas para me guiar.

Me despedindo de Bila, subi ao túnel por onde deslizamos. Havia mais fendas do que eu lembrava; de uma delas; saiam extensões.

Segui até à movimentação de laços vivos.

Ao me esgueirar pelo buraco, me deparei com um colchão, casas de bonecas feitas de ossos, cacos de um espelho e alguns potes derrubados.

Uma zona de guerra completa.

A casa até estendeu seus laços para limpar um pouco da bagunça, mas neguei a limpeza ao ver a borda de um retrato debaixo do colchão.

 Seria melhor eu fingir que não percebi nada de errado ali. Se Bila for a culpada dos objetos quebrados, talvez fosse melhor ela mesma limpar o local.

Dei um pulo e me deitei na cama. As minhas costas doíam ao dormir na minha rede, mas, no primeiro contato com o colchão, elas fizeram um rangido que nunca ouvi na vida.

Seria uma luta tirar uma soneca; e foi. Após longas horas de combate, capotei.

Infelizmente, um despertador ecoou por todo o quarto e caiu de cascos na minha barriga.

— Frepe, hora de acordar — avisou Bila. Faltou apenas bater frigideiras para me acordar.

— Meu Deus, deve ser três da madruga. — Apertei o travesseiro nas orelhas. — Deixa eu dormir.

— Acorda logo. — Piscou os olhos azuis para mim.

— Se esperamos a manhã, podemos aguardar a tarde também.

Ela não desistiria de me fazer levantar na cama, então me empurrão do colchão e bati o cotovelo no chão.

A dor me fez ficar alertar rápido e me fez lembrar da situação urgente em que me encontro.

— Vamos tomar café pra irmos comprar seu Meliodes — falou enérgica.

— Comprar? Eu não tinha ouvido arranjar com sentido de roubar? — zombei.

— Sou uma fauna decente. Roubo apenas o necessário. — Fechou os olhos e levantou o queixo.

Sai do quarto em que passei a noite e fomos ao dela.

Antes mesmo de cair perto daquele colchão, que amorteceu o nosso impacto do deslize de tapete, o cheiro de café estava forte nos túneis.

Ao ficar de cara a cara com uma mesa onde saia uma fumaça de xícaras, o odor explodiu nas minhas narinas. Estava doce, mas não do jeito que o açúcar, que eu estava acostumado, conseguia proporcionar de uma maneira boa.

Algo estava diferente. Descobri do que se tratava apenas ao sentar no chão e provar o café junto de um pão cheirando a cinzas.

O gosto da bebida era o mesmo da pimenta com gengibre de alguns chás de Elideus. Os grãos de café apenas pioraram tudo. Estava doce, porém amargo e forte.

No pouco tempo que fiquei em Inferno, percebi uma coisa: as pessoas gostam de ficar quentes e com a barriga pedindo arrego.

Mesmo receoso, tomei o café da manhã. Foi desafiador. Pelo menos ter experimentado as torturas culinárias de Esmael me ajudaram a não colocar tudo para fora.

— Longe de mim querer achar defeito, mas o pão estava vencido não? — Fiz uma cara de desgosto.

— É o que tem por aqui. Apesar de eu ter uma grana boa, não posso comprar comida fresca todos os dias. — Bila apontou ao capuz.

— Eu acho que em outros distritos você não teria problemas pra comer em restaurantes ou andar em uma feirinha. Por que não gasta os seus falsos pra sair daqui? — relatei.

— Nasci e cresci nesse buraco de Linfrutes. Quem é daqui, fica aqui… — As orelhas abaixaram, mas logo se ergueram. — Bom, hora de irmos comprar seu Meliodes.

Levantei do chão para pegar minha mochila. Até toquei na incubadora para colocá-la dentro, porém as extensões da casa estavam fazendo um papel de babá melhor.

Deixei o ovo em um canto e parti com Bila pelos túneis. Estavam diferentes da noite anterior.

— Só eu consigo entrar e sair daqui. — Um laço se entrelaçou em seu braço. Estava a puxando de leve.

Com o auxílio do local, percorremos uma distância boa até chegarmos na fenda que a fauna queria estar.

Ao pularmos dentro do buraco, saímos em um ambiente escuro, iluminado apenas por um poste distante de cristal. Estávamos em uma espécie de beco.

Saímos dali, pois ficamos com medo das diversas lixeiras linguarudas, que estavam em nossa volta, cuspirem o nosso esconderijo para algumas portas fechadas.

Sai em uma rua, movimentada como aquela do consultório de Fépis, porém mais apertada devido estarmos em uma espécie de caverna viva.

Bila apontou para atravessarmos a calçada.

Tive bastante dificuldade de desviar dos biodemônios e xenopragos, que olhavam para diversas criaturas espinhosas esperando o sinal ficar verde para arrancarem.

Pelo menos cheguei a outra calçada antes de perder a fauna de vista.

Ela de imediato entrou em uma porta giratória de um prédio. Fiz o mesmo e bati de cara no capuz dela.

Uma fila gigantesca se alongava para serem atendidos por um diabrete.

Quando o tempo passou e chegou nossa vez, já estávamos bocejando.

— Como posso ajudar? — perguntou o recepcionista.

— Queremos compra um Meliodes novo — respondeu Bila.

— Dos andares debaixo ou de cima?

— Debaixo. Não queremos gastar muito.

O diabrete apontou com sua mão tremida a um elevador.

Entramos na caixa de alga e, ao invés de subir, descemos para um andar isolado e sem muito movimento.

A porta se abriu e tossi logo de cara. A poeira das vitrines com diversos aparelhos voou no meu rosto.

No meio delas, um cadáver… uma biodemônia magra o suficiente para ver seus ossos sem precisar de raio X nos esperava.

— Boa tarde, como posso ajudar? — questionou e sua voz saiu gelada como o vento do ventilador que abanava seus poucos fios de cabelo.

— Estou precisando de um Meliodes. O meu foi arrancado em uma briga sangrenta — falei.

— Ele quebrou o braço quando caiu da cama. — Bila entrou na minha frente.

— Não importa como perdeu o seu antigo. Posso arranjar um novo pra ele. — Se esforçou para pegar um Meliodes da vitrine.

Quando o aparelho estava dentro do meu corpo, nem reclamava da aparência dele, porém fora era outra coisa.

O dispositivo mais útil de Paraíso e Inferno era um chip cercado de pequenos tentáculos se mexendo.

— Que tal esse? Barato e funcional. — Tremeu o objeto em minha direção.

— Pode ser. — Estendi o braço.

Segundo meus pais, o meu antigo Meliodes foi posto assim que nasci, então seria a minha primeira vez que eu lembraria do processo de colocá-lo.

A velha estendeu sua mão perto do meu braço e os tentáculos se amarraram como uma pulseira no meu pulso. O chip abriu uma boca e deu uma mordida forte.

O objetivo dele era entrar dentro da minha pele e se instalar nela, mas não conseguiu.

Assim que um pouco do meu sangue entrou nos dentes do Meliodes, o aparelho pulou do meu braço e caiu duro no chão.

— Defeito de fábrica. Acontece às vezes — avisou a velha.

Tentamos com outro Meliodes, mas aconteceu a mesma coisa. Ele deu uma mordida e se quebrou no chão.

—É a primeira vez que vejo isso. — Ela recolheu os restos do chão. — Fez algumas alterações recentemente, mocinho?

— Apenas estéticas — respondi.

— Estranho, bem estranho. Era pra ter dado certo — falou tristonha. — Vou revisar os meus aparelhos e entro em contato com vocês, pode ser?

— Sim.

Bila pegou o número da senhora e voltamos ao elevador.

— Bom, se não podemos falar com seus amigos pelo Meliodes, vamos pro plano B pra achar eles — disse a fauna.



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