Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 13: Túnica

Voltamos para o beco de onde saímos, porém não entramos em uma fenda ainda.

Bila andava de um lado ao outro e eu apenas jogava algumas latinhas para as lixeiras-vivas comerem.

— Eu não queria falar com ele — resmungando, a fauna coçou os chifres.

— Ele? — Parei de alimentar o lixo.

— O nosso plano B. Talvez seja o único de Linfrutes capaz de achar seus amigos. — Suspirou desanimada.

— Mandar uma mensagem pro plano B não deve matar ninguém — solucionei tudo.

— O plano B conversa apenas cara a cara e o problema não é conversar com ele, mas sim ir no lar dele. Não podemos mostrar nossos rostos naquele lugar. — Estalou a língua.

— Deixa eu ir sozinho. Ninguém sabe de mim — falei convicto.

— Você também deve estar sendo procurado por um pessoal que vive com o plano B e você morreria ao pisar lá sem mim. — Desviou o olhar do meu.

Um diabrete entrou no beco sem nos perceber, mas desconfiado.

Olhando para todas as direções, ele abriu uma sacola e a tacou na lixeira-viva. O mais estranho foi a reação do lixo.

Quando eu tacava pedras, ela apenas engolia tudo. Quando o homem tacou a sacola, a lixeira-viva começou a mastigá-la como um chiclete.

Bila soltou um sorriso e chegou perto para investigar.

— Perfeito. — Ela chutou o ser. Doeu até minha barriga na hora.

A lixeira vomitou o conteúdo da sacola bem no meu pé. Era uma túnica de monge, porém com uma máscara de couro sem face alguma.

Vi diversos xenopragos e biodemônios usando a vestimenta bege. Ficava apertada neles, como se tivesse sido colada ao corpo deles.

— Vamos falar com o plano B disfarçados. Todo mundo vai pensar que somos diabretes por baixo disso. — Pegou a túnica, mas a tacou de volta na lixeira. — Teremos que arranjar duas novas. Essa já passou da data de validade.

— Arranjar com sentido de roubar agora? — perguntei, ficando animado.

— Arranjar com sentido de confeccionar. Você nunca tentou ter uma túnica de um ushi-oni antes? — perguntou chocada.

Balancei a cabeça e, quando ela explicou de onde vinha a roupa, meu pescoço virou um tornado em negação.

Nenhuma loja de Inferno ou Paraíso fabricava a túnica, nem mesmo os melhores artesões de tecidos sintéticos. Apenas uma criatura proporcionava a vestimenta, ushi-oni.

Infelizmente, ela não nos daria a roupa em troca de alguns falsos e nem droparia uma túnica após ser abatida.

O processo de confecção, que Bila terminou de me explicar, era muito mais complicado.

— Você bateu a cabeça quando caímos do buraco? — questionei.

— Tem ideia melhor do que essa? — A fauna andou para perto de uma fenda, escondida atrás de um colchão velho.

— Não, mas posso pensar em alguma. — Na verdade, não vinha nada na minha mente.

— Quanto mais tempo demorarmos, pior. Vamos logo arranjar a túnica. Vai dar certo se seguirmos meu plano. — Pulou no buraco com o colchão.

— Já me arrependi antes de começar — resmunguei e fui puxado pelo coque.

⊛ ⊛ ⊛

Depois de escorregar pelos túneis, que pulsavam ao nosso arredor e nos guiava, chegamos a um trecho apertado.

Espinhos se estendiam pela frente, formando uma barreira. Se Bila não tivesse freado o colchão, teríamos virado espetinhos.

— Não tenha medo dos espinhos.

— Conselho legal. — Meu olho estava sendo alvo por inúmeras lanças.

— Pra sua informação, a barreira não está nos impedindo de chegar ao ushi-oni. Ela está protegendo eu e você do bicho.

A informação me preocupou um pouco, pois o espaço entre os espinhos era apertado, mas suficiente para um adulto ou até dois passarem juntos.

Se ushi-oni não passava pelas brechas da barreira, teríamos um problema dos grandes.

Em outra situação, eu daria meia-volta, porém Esmael e Sisa precisavam de mim, não tanto quanto eu precisava deles, e Bila me chantageou quanto a isso.

Após colocar pilha na minha cabeça, ela passou pelos espinhos e fui atrás dela.

Logo na primeira parte da barreira, percebi uma diferença em relação aos outros túneis. O ambiente cheirava a repelente e a parede deixava um óleo verde quando eu me apoiava nela.

A fauna me recomendou a não passar a mão nos olhos, enquanto ela raspava a parede e colocava o óleo em um pote. Infelizmente, a vontade falou mais alta quando cheguei ao fim do túnel.

Quis limpar as lentes para ver se eu não estava vendo loucuras; nada mudou.

Corpos pendurados em cabos de teias, que se estendiam por todo o local, ficaram na mesma posição, uma pequena poça d’água ainda se movia lentamente e uma criatura ainda bebia a água vermelha dela.

Bila apontou para o bicho a fim de confirmar: era o ushi-oni, uma aranha gigante com rosto e chifres de arrozfálo. A fera dava o quíntuplo do tamanho de um diabrete; e eu dava dois dedos a mais que um diabrete.

— Vamos lá — falou a fauna baixinho.

Antes de eu conseguir parar a loucura da garota, ela pulou em cima de uma teia e desceu no chão. Me chamou lá de baixo.

Tomará que o plano dela funcione, pois respirei e coloquei os pés dentro da toca.

— Você já confeccionou essa túnica quantas vezes mesmo? — perguntei atrás de um casulo.

— Confeccionei? — Olhou para o teto, pensativa. — Acho que nunca, mas tudo tem sua primeira vez e o nosso plano é perfeito.

— Tomará. — Coloquei a mão no rosto e sai de trás do casulo.

Era hora da primeira parte do combinado.

Fiquei numa área aberta e comecei a bater palmas.

De imediato, ushi-oni parou de beber água e os seus oito olhos, que não conseguiam distinguir vermelho de verde, me encararam.

Engoli saliva, mas continuei parado, chamando atenção da criatura com palmas.

“Segue o plano, segue o plano…”, pensei.

A aranha subiu em um fio. Devido seu peso, veio na minha direção como se tivesse andando por uma corda bamba.

Parou apenas quando ficou rente ao meu rosto.

Ver meu reflexo nos seus globos oculares revirou meu estômago.

Ao menos haviam olhos mais nojentos do que os dela, então mantive a postura e parei de bater palmas.

Ushi-oni me cutucou com a pata. Na verdade, levei um chute na cabeça. Ela estava avaliando a refeição.

Eu não consegui manter o equilíbrio e cai em uma teia, grudenta, grossa e bege. O tecido da túnica era grudento e eu entendi o porquê.

Foi difícil me desvencilhar, mas consegui.

Quando me levantei, a criatura abriu sua boca e vi pelo menos uns três dedos de biodemônios agarrados em seus dentes.

Com a cena assustadora, começava a segunda parte do plano: enjoar o ushi-oni.

Comecei a correr pela toca, entrando pelas brechas menores entre os inúmeros casulos.

A criatura vinha logo atrás tentando me morder. Senti o bafo dela quando tropecei na perna de alguém e quase cai.

Por sorte, passei por uma brecha pequena na hora entre casulos e o ushi-oni teve que dar uma volta por uma estalagmite.

Não parei de correr; e a criatura não parava de tentar me devorar. Dava para ouvir seus dentes batendo.

Eu já estava cansando e ficando sem rotas de fuga. À minha frente, havia apenas a parede da caverna e, se eu desse meia-volta, ficaria preso em teias ou seria devorado.

“Esteja cansada por favor.” Parei de correr e olhei para o ushi-oni.

Sabendo que eu estava encurralado, a criatura diminuiu o ritmo e chegou perto de mim. Dessa vez, pelo menos, ela não abriu a boca.

Sorri um pouco, pois consegui enjoá-la.

Na visão do ushi-oni, eu era como um ovo cozido em um prato. No começo, eu parecia inofensivo e fácil de ser espetado por um garfo, porém quanto mais a criatura tentava me furar, mais eu escapava para as bordas do prato.

Quando finalmente conseguiu me pegar, desistiu da ideia de me comer de imediato.

Iria me deixar como uma sobremesa de outra refeição. Essa era o meu objetivo: não ser devorado, mas ser guardado para mais tarde.

A criatura me ergueu ao alto com as patas e começou a me enrolar em suas teias. Fiquei zonzo com os giros e, no final, eu estava coberto pelas teias — pela túnica de ushi-oni.

A fera gostava apenas de alimentos frescos, então deixava suas presas vivas por um tempo, para isso, fazia um casulo com uma máscara sem face para os coitados respirarem.

Estava abafado dentro da prisão. Pelo menos não fiquei desesperado, porque a terceira parte do plano começava agora.

— Aqui, aranhazinha — gritou Bila.

Eu estava de cabeça para baixo, mas dava para vê-la perto da poça d´água pelos buracos da minha máscara.

O ushi-oni correu para ela e a prendeu no seu casulo como fez comigo. O que ele não esperava era a nossa carta na manga.

Assim que a criatura se virou de costas, ele foi para a poça beber uma água. Ela estava cansada depois da corrida e usamos isso ao nosso favor.

Dando goles cada vez mais lento, ushi-oni começou a bambear as patas e caiu no chão. A coloração da poça não estava mais vermelha; estava verde.

Enquanto eu distraia a fera, Bila colocava um pouco do óleo da barreira da toca na água do bicho. Nosso objetivo era fazer a criatura tomar o líquido, pois a faria desmaiar.

Conseguimos concluir o nosso plano, já que o ushi-oni começou a roncar depois de um tempo.

— Foi um sucesso — berrou Bila.

Com uma faca, ela se livrou do casulo e guardou o tecido na mochila.

— Não esquece de mim — falei.

Ela me soltou e cai de cara no chão. Já me acostumei a quebrar um dente ou outro, então nem reclamei tanto.

— Temos a máscara e o tecido da túnica. Vou pedir pra minha casa costurar a roupa e estaremos prontos pra falar com o plano B — relatou Bila.

— Teria sido mais fácil ter comprado uma fantasia, mas tudo bem. — Coloquei a mochila nas costas e fui rumo à saída da toca.



Comentários