Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 16: Jardim Enervado

O porco-espinho deixou o recado e rolou debaixo das minhas pernas para uma barraca de jaulas. Sabe-se lá para onde foi. 

Há! — Bila riu ao se sentar em um banco cheio de fungos.

Ela olhava para mim até momentos atrás, mas fixou os olhos no chão após ouvir a mensagem. Talvez estivesse procurando insetos ou descansando no banco; duvidei disso.

— Partiu Jardim Enervado — exaltei para animá-la.

— Você pode ir sozinho — avisou ela. 

— Quê?

— Não estou a fim de visitar aquele lugar. — Coçou os chifres e virou o rosto de lado.

— Sei que eu sou incrível, mas não sei me guiar em Linfruntes e você é a única que consegue entrar nesses buracos esquisitos. Preciso de você. — Sentei ao lado dela.

— Não dá para eu ir… Foi naquele lugar que perdi meus pais. 

A voz dela diminuiu em uma intensidade que nunca presenciei. Ao descarregar as palavras, até seus pelos que acostumavam serem arrepiados, abaixaram. 

— Sinto muito — falei.

— Eu só queria que eles estivessem comigo como você está ao meu lado, com os olhos fixos em mim, com o coração batendo, respirando. — O rosto em lágrimas.

— Também perdi pessoas importantes e todos os dias lembro delas, mas temos outra opção a não seguir em frente? Olhe para o teto, para o chão, para todos os lados há alguém espetado. Tem como ignorar tudo isso?— perguntei e olhei para diversos esqueletos da feira. Bila me acompanhou. 

— Não.

— Então, por favor, levanta a cabeça e venha comigo. Tenho certeza que você quer fazer algo por essas pessoas. Não deixe as histórias delas desaparecerem. 

— Tem razão. Ficar parado é pior e, além do mais, a Nevi não pode ficar viva depois de tudo que ela fez. — Levantou do banco onde estávamos. 

Os olhos da fauna começaram a ficar vermelhos. Era como se ela captasse a dor de todas as pessoas que algum dia já passaram onde eu estava. 

Bila e as almas clamavam por algo. Do fundo do meu coração, me perguntei se era vingança, justiça ou outra coisa talvez pior. 

Ao vê-la naquele estado de indignação e todos os corpos em minha volta, senti um gosto de ferro pairando na boca, porém durou pouco. 

O sentimento que eu estava tendo surgia com frequência, principalmente, nas vezes que uma vontade imensa de acabar com a primeira coisa roxa na minha frente tomava conta de mim.

Apesar da querer explodir o mundo nesses momentos, sempre achei melhor ignorar e não tentar quebrar tudo.

— Além do mais, temos um acordo, certo? O Croc pela vida dessa idiota desvairada e fedida, que diga-se de passagem não me importo muito. — Estendi a mão. 

— Sim, temos um acordo. Vamos para o Jardim Enervado para cumpri-lo. 

Fomos para a barraca de cartomancia e descemos pelos túneis para irmos ao Jardim Enervado.

Por mais que Bila me ajudasse a me locomover entre os espinhos das fendas e me salvasse de não virar espetinho, eu ainda consegui rasgar a minha túnica de ushi-oni por inteira durante o percurso. 

Ainda bem que a minha roupa usual estava por baixo. Senti a falta que ela faria logo ao chegar no Jardim Enervado.

Onde eu estava, até meu cérebro saia fumaça de tão quente. O calor era causado por diversas raízes vermelhas estendidas ao longo da caverna. 

Foi difícil de se acostumar com as diversas formas de conter a temperatura infernal de Inferno no começo, mas passei a gostar delas.

Em Paraíso era mais simples: eu sempre entrava debaixo da sombra de uma árvore para conter o calor do sol. Obviamente, raios solares não entravam no Jardim Enervado e entrar debaixo de plantas que tinham formato de neurônios parecia perigoso.

Elas soltavam esporos azuis brilhantes, fedorentos feito peixe morto e letais como um bafo de bêbado. 

Apertei meu nariz com uma mão e soquei minha jaqueta para ela esfriar com a outra.

— Não recomendo ficar debaixo delas. Vai deixar um cheiro bem desagradável por semanas.

— Dá para perceber bem. – Um gosto de fósforo queimado pairou nas minhas narinas. 

— Infelizmente temos que passar pelos Neuropuns para achar seus amigos, então vai se acostumando – avisou Bila.

O cheiro estava insuportável, mas esse nem era o maior dos nossos problemas. 

Eu e Bila fomos informados de que Esmael e Sisa estavam no Jardim Enervado; e apenas isso. A localização exata deles ainda era uma incógnita. 

Para piorar, o lugar era imenso. Quem deu o apelido do lugar estava meio bêbado na hora, pois para mim Floresta Enervada se encaixaria melhor. 

Apesar da vastidão em minha frente, ainda consegui ficar apertado depois de alguns passos. Por todos os lados, haviam raízes, árvores cortadas e estalagmites bloqueando meu caminho.

Cheguei a bater a cabeça e rasgar algumas partes da minha jaqueta em alguns desvios. 

–- Tsc! – chutei um minicogumelo e levei uma fumaça na cara. 

Bila riu na hora e deu um passo em falso distraída ao atravessar um tronco. Pisou em uma planta semelhante à que chutei.

Por um momento, jurei que ela também seria intoxicada como fui, mas a fauna apenas desviou a cabeça. Foi uma atitude quase instintiva.

As esquivas dela não acabaram ali. 

Um pássaro sem pelos e com orelhas grandes aterrissou no meio de nós para pegar uma lagarta que passava. 

Apenas afastei meu cabelo dali; Bila fez questão de pegar a lagarta e ainda conseguiu pegar o pássaro pela asa. Foram movimentos lentos, porém precisos. 

–- Temos o jantar de hoje. – Ela pegou o bicho pelo pescoço. Eu fechei os olhos.

Cleck!

Meu estômago embrulhou. 

Acostumar com ossos quebrando ainda era uma tarefa árdua para mim. Vi aquele tipo de tortura quando Esmael preparava algumas comidas e desde lá tenho aceitado a nova realidade, mas mesmo assim era difícil ouvir Bila quebrando o pescoço do bicho.

Uma pupila de cada vez, fui superando o meu entrave. Acabei descobrindo que a cena provocada por Bila nem era tão feia, pois me enganei.

Nos pés da fauna, um dos neurpuns estava partido em dois. Nas mãos dela, a ave apenas se debatia.

Ufa! – suspirei e passei a mão na testa.

– Ufa mesmo. Essa é a melhor maneira de preparar a comida. – Ela deu a lagarta ao pássaro. – Dar um inseto venenoso previne a sujeira nas mãos e dá um gosto sensacional depois de cozido. 

— Santo amado – falei incrédulo e fingi que nem vi a ave ficando roxa. 

Continuamos o caminho por um tempo, mas perceber uma informação crucial: se tínhamos um plano para achar Sisa e Esmael, eu não estava sabendo dele. 

Cutuquei as costas de Bila para tirar minhas dúvidas. Não estávamos atirando no escuro, pois ela me explicou que os dois poderiam estar apenas em três locais. 

Apesar da imensidão do Jardim Enervado, somente alguns pontos específicos dele eram agradáveis de se ficar. Ninguém queria permanecer debaixo dos esporos dos neuropuns por muito tempo, sou uma testemunha viva.

O meu nariz até entupiu depois de alguns minutos dentro do local e eu não sentia gosto de mais nada na minha boca a não ser de fósforo queimado. Foi uma surpresa para mim, porque faz uma tempo que não fico com as narinas entupidas.

A minha única vontade no momento além de achar Esmael e Sisa era sair debaixo das plantas. 

Segundo Bila, estávamos perto de chegarmos ao primeiro ponto agradável.

— Não faço a miníma ideia do porquê seus amigos estarem aqui, mas o lugar mais provável de estarem é esse — falou afastando um cogumelo. 

— Tem razão. 

Sai dos esporos fedidos e fui parar logo em um ambiente aberto, com apenas uma coisa no centro: um velho templo abandonado. 

Logo balancei a cabeça para Bila, pois era impossível de Esmael ter escolhido aquele local como esconderijo. Ele era de longe a pessoa menos religiosa que conheci.

— Calma lá. Eles escolheriam esse lugar por bons motivos. — Bila parou de andar.

O primeiro motivo que ela me deu parecia bem plausível para o xenoprago. 

O templo era de uma religião morta como a ave pendurada na mochila de Bila. Ninguém rezava para os deuses dela há alguns anos.

Ele era o único ponto turístico do Jardim Enervado. Sem os fieis para celebrar festas e divulgar os ensinamentos dentro dele, o templo foi abandonado.

Se Esmael e Sisa quisessem se esconder sem riscos de serem achados, um local onde a maioria das pessoas nem faz ideia da existência seria perfeito.

Entretanto o segundo motivo me pareceu mais interessante. Arregalei os olhos na hora que a fauna me contou. 

— Esse templo é do povo da sua amiga de madeira. — Apontou para diversos espinhos em uma porta.

— Como pode ter certeza disso? — perguntei descrente.

— Entrando lá dentro é mais fácil de explicar. Se sua amiga estiver lá, melhor ainda. — Pegou minha mão. — Vamos. 

Subimos uma escada e empurramos a porta do santuário. O problema era que ela estava sem dobradiças e era pesada demais para empurramos. 

Teríamos que entrar por outro canto. Por sorte, haviam diversas aberturas para mim e Bila. 

O que não faltava no templo eram janelas quebradas, perfeitas para serem puladas.

— Foi aqui que meus pais foram capturados e tudo por causa do povo da sua amiga. — A fauna indicou um altar com um grande telão. 



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