Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 15: Idiota, desvairada e fedida

Ao ver os seguranças, minha alma foi para outro lugar e comecei a torcer para não ser jogado pelas paredes.

Ao contrário daquele quarteto, a dupla de biodemônios não parecia tão lerda e muito menos leve para ser jogada ao teto.

Hora de pensar em outra oportunidade de fuga. 

Infelizmente, antes de eu tentar pegar mais uma garrafa de ope, um segurança bateu o pé no chão e me distraiu.

— Não estamos aqui para machucar vocês — avisou, mas duvidei.

— Os penetras amassados nas paredes falariam o contrário — indiquei.

— Vocês não são penetras. Muito pelo contrário, são convidados Vips do Coro de Víboras. — Mostrou o olho brilhante. — Pelo menos no antigo Coro de Víboras seriam.

Ignorando a confusão causada no bar, levantaram uma mesa caída e pediram para mim e Bila nos acomodar.

— Podem tirar as máscaras. Sabemos que você é a Encapetuzada e você…

— Chefe dela. — Coloquei os pés na mesa.

— Assistente da Encapetuzada vai servir. — Suspirou. — Esse olho não é apenas uma chave de acesso ao bar. Ele também é uma moeda para utilizar os serviços de Botis de graça.

Bila, até então recostada em seu assento, endireitou a coluna ao tirar meus pés da mesa.

— Algo de graça daquele mercenário? — A fauna riu. 

— Parece mentira, mas é de graça — avisou o segurança.

— Já que posso utilizar os serviços dele de graça, vou pedir a localização de duas pessoas: Esmael e Sisa. O nome completo deles e aparência esse cabeçudo informa.

Minha cabeça nunca foi grande, então relevei e comecei a dar informações para os seguranças. 

O nome de Esmael eu lembrei depois de muito esforço; o de Sisa eu não fazia nem ideia. Fiz questão de caprichar nos detalhes floridos da biodemônia. 

Com a saliva gasta, consegui ter concordância dos seguranças. 

Para passar as informações ao Botis, eles não usaram o Meliodes. Talvez nem os próprios funcionários do Coro de Víboras tenham o número do antigo dono.

Os dois foram ao fundo do bar e voltaram com uma gaiola.

Uma espécie de porco-espinho vermelho olhava atento para mim dentro da prisão.

— Agora repete o pedido de vocês e as informações para esse carinha aqui — avisou o biodemônio.

— De novo? — questionei bebendo água.

— Pedi para você falar com nós por questão de segurança. Se não tivesse sido convincente, você seria rebaixado a tapete da Encapetuzada.

Foquei na criatura enjaulada e todos no bar fecharam a boca. 

No começo, ela estava apenas me observando, mas, quando quebrei o silêncio com um Olá, Botis, os seus espinhos se mexeram conforme o ritmo da minha voz. 

Me senti como um maestro até concluir as informações.

— Pronto — avisou um dos seguranças. 

Com uma chave, ele abriu a jaula da criatura e ela saiu rolando como os policiais do porto. Mal consegui acompanhá-la entrando em um buraco na parede.

Uma hora o porco-espinho entregaria a mensagem ao Botis. Até lá era sentar e esperar a criatura voltar em outro lugar que não fosse o Coro de Víboras.

No momento, o quarteto estava desacordado, mas teríamos problemas se eles acordassem do nada.

Eu e Bila pulamos da cadeira e nos despedimos dos seguranças.

Antes de sairmos pela porta, ouvi um assobio pelas costas. Ao me virar, duas garrafas de água voaram na minha direção. Tive que agarrá-las no reflexo.

Foram tacadas pelos barmans do bar.

— Eu falei que é fácil ficar hidratado aqui, né? — relembrou a fauna.

— Tem razão — respondi.

Apertamos nossas máscaras e rumamos para fora do bar.

Quando passei pela fila imensa, que ainda esperava o acesso se liberar, percebi uma coisa incomodando bastante minha testa.

Cocei acima da sobrancelha e senti uma pequena coisa se rasgando. Ao sacudir o capuz da túnica, uma pétala negra se fincou nos espinhos do chão.

Parei de andar e acabei tirando uma flor de dentro da roupa.

Em Paraíso, uma planta caída em sua pele seria normal, não significado nada. Em Inferno, comecei a suar frio com esse encontro florido.

— Por favor, Bila — balbuciei — não me diz que peguei uma doença.

— Calma. Essa flor é de alguém daquele quarteto. — Tirou a planta da minha mão. — Os membros da gangue daquela idiota, desvairada e fedida costumam usar flores para se hierarquizarem.

Ela começou a me explicar ordem de importância dessa gangue que vem me atazanando: pétalas negras para as sementes, verdes para as folhas, brancas para os galhos e vermelhas para as raízes.

No princípio da árvore hierárquica, estava ela:

— Idiota, desvairada e fedida — imitei a voz fina da fauna.

— Não estou mentindo. — Bila cruzou os braços. — Vou te mostrar uma coisa e você também vai começar a chamar ela assim.

E fomos para mais uma fenda.

⊛ ⊛ ⊛

Desta vez, consegui me locomover pelos túneis com mais facilidade. Tudo estava ficando mais familiar em Linfrutes.

Quando cheguei no destino, descobri o porquê do caminho parecer comum. Bila nos levou para a mesma feira em que passamos para fugir da confusão da fumaça.

Acabamos na mesma barraca de cartomancia.

— Vamos entrar em outras feiras e você me fala o que acha — disse meiga.

Saímos do estabelecimento depois de escondermos o buraco com um colchão e paramos no que algum dia foi uma banca de comida infernal.

Jaulas estavam à mostra. Algumas penduradas em correntes, outras arrombadas e muitas com ossos de formas que nunca vi.

— Faz um tempo que essa feira foi obliterada, não tanto, mas faz. — Bila pegou a flor negra e jogou atrás da bancada.

Ela pediu para me acompanhar a planta.

Estendi o pescoço para me esgueirar e fiquei paralisado por um momento tentando analisar o que de fato tinha rolado ali.

Haviam diversos esqueletos jogados ao chão. Reconheci os ossos de um biodemônio pelos chifres e os de diversas aves devido às comidas vendidas no porto.

— Às vezes passo por essa feira e vejo pessoas orando pelos seus entes. Um dia escutei o que rolou aqui pela esposa desse campeão aí — falou Bila. — Ele morreu devorado pelas aves que ele vendia.

— Calma aí. — Segurei a risada. — Ele morreu pra um frambo?

— No último dia de vida dessa feira, todas as criaturas e pessoas foram atingidas por uma ira sem fim. Com essas aves não foram diferentes. De uma hora para outra, elas se tornaram ushi-onis encarnados em frambos, bicando o feirante até a última unha.

Imaginar meu olho ser furado por bicos não foi engraçado, então dei meus ressentimentos à alma que se foi antes de irmos a outro estabelecimento.

Desta vez, paramos em uma barraca de bebida expressa. Se Bila não tivesse me contado a história do que aconteceu ali, eu diria apenas que a barraca era um amontoado de garrafas e ossos em cima de máquinas.

De imediato, vi punhos esmigalhados e crânios quebrados como os pedaços de vidros encrustados entre as costelas do que já foi um xenoprago.

Houve uma briga sem sentido ali. Pessoas bebiam normalmente suas bebidas de bêbados e do nada começaram a se matar de diversas formas, até mesmo de mãos vazias.

O estado de bêbado, que descobri recentemente a existência, parecia poder causa aquilo, mas julguei ser uma coisa além do álcool das bebidas.

As pessoas perderam o raciocino na bagunça e não pensavam nada além de assassinatos.

— Os sobreviventes dessa chacina não ficaram nesse estado depois de saíram daqui, né? — perguntei esperançoso.

— Apenas uma pessoa sobreviveu a essa confusão. Os últimos comerciantes e clientes daqui… bem… — A fauna me chamou com a mão.

Eu não tinha chegado ao fim da feira, então desconhecia o fim dela ou se ela era ligada a outro local. Ao andar mais um pouco com Bila entre ossos, descobri a resposta.

No fim de tudo, uma parede de espinhos nos esperava. Ela não estava imaculada — Diversos corpos estavam estocados nela.

Nunca senti um cheiro tão ruim. Não era de carne morta, mas da perca de esperança daqueles seres por causa da insanidade. Foi um baque tão forte quanto relembrar os meus pais sumirem nas malditas câmaras.

— Quando não se tem ninguém para descontar a ira, a última opção que sobra é a si mesmo. — Bila fechou os punhos.

— Sinto muito — falei.

Os corpos nem sequer tiveram um fim digno. Isso dói para aqueles que ficam nesse mundo, eu sabia muito bem disso.

Apenas diversas flores decoravam o local cercado por nomes, estatuas e mensagens de agradecimento por algum dia aquelas pessoas terem existido.

Bila me explicou que em Calis era bem caro e difícil de fazer um enterro e eles não tinham Velaxis como as da minha nova casa. Para piorar tudo, a burocracia poderia demorar e talvez os copos acabassem tendo um fim não tão feliz.

— A destruição desse comércio foi por causa da sua idiota, desvairada e fedida?

— Nada disso. Esse caos foi apenas a origem de Nevi, a idiota, desvairada e fedida que preciso matar.

— Matar é uma palavra muito forte, sabia?

— Eu preciso disso…

— Por quê?

Antes de Bila me dar uma resposta; uma mais recheada veio ao nosso encontro. Rolando, o porco-espinho voltou com as informações que precisávamos.

— Eles estão no Jardim Enervado — uma voz vibrou pelos espinhos.



Comentários