Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 20: Coração

A oferta de Esmael foi sensacional. Salvaremos o Croc, eu, Bila e Sisa sairemos de Linfrutes, Esmael receberá um dinheiro fácil de Botis e esqueceremos de tudo que rolou. Um final perfeito.

Eu não queria conhecer Box, nem Nevi e muito menos deixar Bila sozinha em Linfrutes.

Quanto antes eu voltar para a minha casa, melhor. 

— Quando começamos? — questionei recostado em um banco quebrado.

— Agora. — Esmael apontou para uma janela com um galho entrando. 

— Sei que estou vivendo em uma Velaxis, mas não estou afim de cair desse galho. 

— Vai por mim, você não vai morrer nem se tiver pulado do consultório de Fepis.

— Não quero testar isso, então vamos com segurança.

Esmael afastou outras vegetações do galho e subiu nele. Segui ele.

Andei um pouco pelo galho, mas ele era curto. Restava descer ao solo.

O xenoprago já estava acostumado em descer e subir em árvores dos mais diversos tipos, então desceu pelos galhos neurais sem problemas. No meu caso, era diferente.

Cheguei na ponta do neuropum a fim de encarar o chão e a experiência foi desagradável. Espinhos me esperavam lá embaixo.

— Vamos logo — apressou Esmael.

— Esses galhos são tortos que nem a sua coluna. Não será fácil — zombei. 

— A areia da minha ampulheta chamada paciência está acabando. Não faz eu virá-la de uma vez. — Ele chutou o tronco e senti a vibração.

Esmael estava com pressa e eu também. 

O cheiro desagradável dos neuropuns estava me deixando zonzo. Eu queria sair do Jardim Enervado logo.

Olhei para baixo e comecei a descer. Fiz manobras de diversos tipos, mas, no meio do caminho, descobri que era péssimo em descer de qualquer coisa.

Minha mão escapou de uma parte do tronco e cai de cara no chão. 

A dor do impacto doeu bastante, porém era nada se comparada às perfurações do solo espinho. Meu rosto ficou estragado.

— Tá doendo? — Esmael me levantou de mal jeito.

— É lógico! — Tirei minha jaqueta para colocar seu tecido regenerativo no rosto. O xenoprago parou a minha mão.

— Uma criança infernal precisaria de curativos emergenciais, mas acho que você não. Antes de chegar no Croc, seu rosto estará novo em folha. Não desperdice a capacidade da sua jaqueta — avisou sério.

— Está doendo!

— Vou precisar do seu rosto estragado para sair do Jardim Enervado, então aguenta esses arranhadinhos.

Quando chegamos a saída do local, ou a entrada dependendo de onde se entra em uma abertura cercada de pessoas armadas, entendi a despreocupação de Esmael com meu rosto.

De madrugada, os guardas estavam dormindo e o xenoprago conseguiu entrar no Jardim Enervado, como ele me explicou. De tarde, era um pouco diferente.

Apesar de eu não ver o Sol, sabia que estava de dia pelo meliodes de Esmael.

Os guardas estavam acordados e teríamos que arranjar uma forma de passar por eles.

Seria mais fácil voltar e usar os segredos faunísticos, mas era melhor deixar Bila conversando com Sisa. Teríamos que procurar outra solução e o xenoprago parecia saber como.

— Consegue fingir ser uma criança com o rosto fudido? — perguntou ele.

— Já estou sendo uma!

— Exagere. 

Ele me pegou no colo e partiu em disparada para a entrada. 

Os guardas estavam usando uniformes da polícia de Linfrutes, então não havia gangue alguma, mas talvez não fosse um bom sinal. 

Logo miraram as armas para mim e Esmael. 

Paramos na hora.

Eu coloquei a mão no rosto e comecei a chorar, clamando por um médico, mas os polícias não pareciam ser habilidosos em ver a dor das outras pessoas.

Eram biodemônios baixos, parecidos com troupeiras, e mal estavam localizando eu e Esmael. 

— Preciso de um médico urgentemente! Meu parasita está com o rosto estragado. 

— Deixaremos você passar se informar como entrou aqui. — Um guarda mirou a arma em Esmael. — Posso muito bem localizar você pelo seu coração, então se apresse.

— Entramos aqui de madrugada para pegarmos algumas mudas de neuropuns. Queríamos apenas… apenas descobri a cura para o mal cheiro do meu parasita, mas ele acabou caindo de cara no chão. 

— Você não é o primeiro a dizer isso. Podem passar. Só não volte de novo sem nossa permissão. 

— Tudo bem.

Atravessamos a abertura, porém fomos parados por um aceno.

— Veio com defeito de fábrica? — perguntou a troupeira que nos abordou.

— Sim — confirmou Esmael.

— Outros hospedeiros também estão tendo problemas com seus parasitas. O mal cheiro, a insanidade, estamos recebendo diversos relatos de produtos defeituosos. Caso queira trocar o seu por um mais novo, a Kikie está oferecendo alguns devido aos transtornos.

— Vou pensar nisso.

— Pense nisso direito e nisso também… Esmael. 

A troupeira arrancou um botão do bolso e tacou ao alto. Era o mesmo que Bila recebeu de Botis. 

Seja lá quem for Botis, ele estava nos observando por todos os locais que íamos, mas não parecia ser nenhum anjo da guarda.

A troupeira avisou que da próxima vez ela não fingiria que dormiu no plantão noturno e que Esmael deveria fazer o serviço proposto sem qualquer fingimento.

Receoso, olhei para o guarda. Ele apenas soltou um sorriso duvidoso.

Me virei de costas e continuei o caminho, porém Esmael me grudou nele com o braço direito. Nem os guardas daquela maldita camâra me agarraram com tanta convicção.

Pensei que ele me soltaria quando a troupeira saísse do nosso campo de visão, mas não. O xenoprago me colocou ao seu lado e me soltou apenas quando nos deparamos com uma criatura enorme protegendo uma entrada espinhosa escrita: Belomur.

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Se eu achava aquela coisa que nos deu boas-vindas a Linfrutes assustadora, a criatura em minha frente era três vezes pior.

Talvez tivesse o quíntuplo do tamanho de Esmael, mas o pior era sua pele e face. 

Até me deparar com ele, eu tinha visto apenas seres com a carne cheia de vida. 

O ser piscando os olhos negros para mim era diferente, pois sua carne era aprodecida e sua cabeça parecia que poderia explodir a qualquer momento.

Não sabia como ele conseguia se manter em duas pernas.

— Tudo bem, cabeçudo? — falou Esmael se aproximando do monstro.

As palavras do xenoprago fizeram o ser pegá-lo pela mão. 

Corri para ajudar, mas fui parado por uma multidão atrás de mim.

— Eu estava brincando, cabeça de prego… — Sua barriga foi apertada. — Grendel, o guardião de Belomur.

— Sem brincadeiras. Grendel esbagaçar você —  falou o ser.

Ele suspirou na cara de Esmael e o soltou gentilmente no solo. 

Eu senti uma dor nas costas na hora, mas o xenoprago estaria melhor no chão do que fincado nas paredes que Grendel apontou. 

— Meliodes ou sangue. Grendel quer. — Ele abaixou as suas duas mãos. 

— Meliodes! — apressou Esmael.

Como eu era um parasita, precisei apenas do Meliodes do cabelo de coqueiro, então Grendel e Esmael deram as mãos para seus dispositivos se reconhecerem.

Depois de um barulho gosmento saído do braço dos dois, Grendel apenas chamou o próximo da fileira e nos deixou entrar.

Ainda bem que ele não pediu o meu, pois eu não tinha um meliodes e tirar sangue nunca foi legal em Inferno, ardia um pouco. 

— Cagou nas calças ao ver o Grendel? — questionou Esmael.

— Não, mas pensei que você fosse morrer por um momento — falei rapidamente e apertei o xenoprago do meu lado. — Vê se não morre, beleza?

— … 

Ele virou o rosto de lado e apressou o passo, pois a região central de Linfrutes nos esperava. 

Apesar de passarmos pela entrada de Belomur, um túnel extenso, preenchido por pessoas, animais e carroças gigantes, ainda nos esperava.

Quanto mais rápido chegássemos, melhor para nós e o Croc, então andei no ritmo de Esmael. 

Diminui os passos com o tempo, mas por algum motivo o xenoprago começou a se adequar a mim. Soltei um sorriso ao perceber. 

Com Esmael ao meu lado, não tive problemas em ver a luz de Belomur, porém parei bem na hora que tive uma visão mais ampla do coração de Linfrutes.

Se eu pensava que se tratava de mais um buraco, me enganei feio. 

Acima da minha cabeça, não havia espinhos, havia o céu de whisky. Talvez fosse a única região de Linfrutes com o teto aberto, mas dava para entender muito bem o motivo.

Quando Esmael me disse que se tratava do coração de Linfrutes, acreditei fortemente, pois nenhum lugar de Inferno ou de Paraíso vivia sem aquilo que fez meus olhos brilharem apenas de olhar: Extratis.

Velaxis significava a morte para muitos, inclusive para mim, mas Extratis era o contrário. Significava a mais pura vida. 

Era uma Velaxis mais nova e cheia de vida e servia como o coração de muitas partes do solo onde eu vivia. Sem ela, eu não teria nascido.

Sua origem, eu não sabia.

Só sabia que Belomur era um lugar em formato circular com fendas parecidas com ninhos das histórias de dragões, prédios dos mais diversos formatos espinhosos, explosões sonoras arrebentando meus ouvidos e um cheiro de algodão doce de baunilha caramelizado sendo carregado pelas folhas azuis dos galhos pretos e retorcidos da Extratis.

Eram muitos detalhes para observar. Muitas construções vermelhas com cobertura de milkshake de blue-ice, muitas pessoas trabalhando, brigando entre si e muitas pessoas fardadas de policiais escoltando animais para dentro da Extratis. 

Várias coisas importantes deveriam estar dentro da Extratis e Croc talvez fosse uma delas.

— Vamos para perto da Extratis! — avisou Esmael, me jogando dentro de uma carroça de ossos espinhosos puxada por uma tarasca.

— Ei!

— Apenas uma carona para chegar rápido.



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