Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 8: Linfrutes

Eu não me acostumei a dormir na rede logo de cara, mas, depois de algumas noites de sono, fiz uma amizade com ela.

Nos primeiros dias, foi difícil acordar com energia e tomar o café infernal de Elideus por causa do desconforto.

Quando consegui me adaptar ao espaço dela, tudo mudou.

A minha cisma de que seu prego cairia parou, as minhas idas ao banheiro… não acostumei ainda com ele… diminuíram e não voltei a chamar o biodemônio quando uma dor de cabeça tomava conta de mim.

Até mesmo arrumar a casa ficou mais fácil.

— Finalmente você limpou aquele prato direito — advertiu Esmael, apontando com um garfo de osso.

— É meio estranho usar isso daqui. — Peguei uma bucha encharcada de uma seiva cinza. — Estou acostumado em apenas guardar a louça, não lavar ela.

— Estranho é o preço dos talheres autolimpantes do seu povo. — Guardou um copo. — Faltou mais alguma coisa ou podemos ir?

— Tá tudo no esquema. — Desci do banco onde eu estava.

— Se não tiver, foda-se também. Esse encontro foi ideia do Elideus, não minha. Se dar merda, ele que se vire depois — resmungou.

— Qualquer coisa, espera ele voltar do trabalho... — falei, mas o xenoprago apenas saiu da cozinha.

— Vamos logo. Temos que chegar 10 minutos antes do horário marcado. — Abriu a porta da casa. — Conforme o planejado, beleza?

Fiz um joinha e coloquei o pé para fora.

A Velaxis penetrou nos meus olhos como um colírio de pimenta. Não ardeu tanto quanto a primeira vez, mas ardeu.

Crianças pulavam entre os galhos retorcidos das árvores, biodemônios e xenopragos conversavam enquanto apontavam para as folhas azuis-escuras e o sentimento de tontura ainda tomava conta de mim.

E, bem lá na água infernal, tarascas chegavam com diversos passageiros.

Cheguei a perguntar Esmael se ele tinha um bicho daquele. Como eu estava mastigando uma mentoal na hora, o xenoprago apenas me mandou engolir a comida.

Talvez algum dia eu possa montar em uma tarasca. Por enquanto, nosso meio de locomoção ainda se chamava Sisa.

A moça nos esperava com seu barco-vivo.

— Vamos pra Linfruntes — falou Esmael, lentamente.

Sisa apenas inclinou sua cabeça.

— Não me olha assim. O Prefe tá registrado lá. — Apontou para mim. — Tenho que resolver uma coisa importante por ele naquele lugar.

Houve uma concordância entre os dois enquanto eu acariciava a cabeça do barco.

Subimos na embarcação e, se eu chegaria vivo ao nosso destino, dependeria da boa vontade dos peixes-arqueiros não me afogarem durante o percurso.

⊛ ⊛ ⊛

Percorremos diversos córregos, passamos perto de outras Velaxis e fomos parar em um local onde até o barco-vivo estava com dúvida para onde ir.

Em minha volta, estruturas espinhosas e branca saiam da água e obstruíam o nosso caminho. Tive que abaixar diversas vezes para não bater a cabeça nelas.

As esquivas duraram até o caminho ser 100% fechado pelos espinhos.

De cima da barreira, descobri que chegamos a Linfrutes, pois uma placa feita por componentes orgânicos me disse — literalmente.

— Bem vindos a Linfrutes — uma voz rouca saiu da placa, das estruturas espinhosas e de todos os lugares que a fumaça alaranjada cobria. — Sabem o preço do pedágio, né?

— Talvez — falou Esmael.

— Um pouco de sangue e nada mais — falou calmamente.

O xenoprago me avisou dessa parte, então aproximei meu dedo na estrutura espinhosa e ela me espetou.

Sisa e Esmael fizeram a mesma coisa.

— Recolhi o pagamento. Podem entrar com medo — relatou a voz.

Os espinhos se mexeram e desobstruíram o caminho.

Ficar parado ali dava um frio na espinha, então seguimos para frente.

Barreiras gigantes, pontiagudas, pulsantes e vermelhas logo apareceram. Não dava para ver o seu fim, apenas seus buracos.

Quando entrei de vez no local, o céu de whisky sumiu e o que me restava era um teto de material orgânico acompanhando um labirinto de construções apertadas como tripas de um ouriço-caqueiro.

Fiquei de olho arregalado e nem percebi que o barco parou.

— Vai ficar boiando aí ou vai descer do barco, garoto? — questionou Esmael.

— Calma aí! — Pulei para fora do barco.

Sisa tinha aportado seu barco-vivo ao lado de outras embarcações. Ela ficou perto dele.

Próximo à moça, barracas de recepção esperavam novos visitantes. Eu queria ir até elas e explorar o comércio duvidoso que rolava em minha volta, mas eu estava em uma viagem de bate e volta rápida.

— A partir de agora é como o combinado. — Esmael virou meu rosto para ele. — Não mexe em nada, olhe por pouco tempo pra onde caralhos quiser, anda grudado comigo e não fode com tudo.

— Eu já sei! — confirmei, mas logo olhei para uma barraquinha.

Um diabrete vendia uma criaturinha de três olhos.

Quando um biodêmonio apareceu, comprou o animal e o engoliu, peguei a mão de Esmael e seguimos pelas ruas espinhosas, cheias.

Após passarmos por prédios e seus outdoors de lustradores de chifres, órgãos extras e outras modificações corporais, o cabelo de coqueiro parou de balançar.

Chegamos ao local do encontro.

Depois daquela cúpula maldita, nunca pensei que teria contato com outras construções parecidas. Me enganei feio.

— Chegamos na Igreja que te falei. — Esmael subiu um degrau dela.

— Não estou muito a fim de entrar nela. A cúpula do Palatino era feia, mas essa daí é pior ainda.

— É só um pouco de carne. Anda logo.

Com uma vontade imensa de ir embora, forcei meu pé para frente e entrei na Igreja.

Luzes entraram nos meus olhos e começaram a piscar.

Não paravam... elas não paravam... as pessoas não paravam de tirar foto do meu arredor.

De alguma forma, a igreja abrigava admiradores de sua beleza. Biodêmonios e xenopragos utilizavam seus Meliodes para guardarem imagens de lustres pontiagudos, bancos de madeira e da atmosfera quente do local.

— Segundo andar. — Esmael apontou para uma escada.

Subimos e fomos parar em um amontado de cabines. Entramos em uma com a sigla F e E.

Uma diabrete vestida de freia nos esperava.

— Como posso ajudar? — perguntou.

— Esse dali perdeu os pais dele no evento da bomba de pragas e estou querendo cuidar dele. — Fingiu um choro.

— Qual vai ser a relação? Escravo? Doador ambulante? Produto?… — apontou centenas de coisas terríveis que me fizeram suar frio.

— Esmael! Esmael! — Cutuquei o xenoprago. — O combinado vai seguir conforme o combinado, né? Sabe, aquele combinado?

Ele me olhou, olhou para a moça, fez a unha de palito de dente, deu uma respirada e abriu a boca.

— Vai ser parasita — respondeu e suspirei aliviado.

— Entendido. Suas responsabilidades serão alimentar, dar um teto e mandar ele ao mundo quando a maior idade chegar — indicou a freira. — Daqui dois meses vocês podem voltar pra assinarem o contrato.

— Dois meses não. Pedi a alguém especial pra ajeitar a documentação. Só preciso dar o nome. — Esmael deu uma piscadela. — Deve estar no seu sistema. O pedido se chama Daemon e a senha é Cérbero.

— Deixa eu ver. — A moça abriu o Meliodes. Conforme ela mexia os olhos, a tela a acompanhava. — Olha! É verdade.

Todos os dados de Frepe foram desbloqueados, parecia uma certidão de nascimento.

Duas informações estavam piscando: as dos responsáveis. Foram preenchidas pelos nomes de Esmael e Elideus.

— Parabéns! Tudo pronto — agraciou a freira.

Levantei junto do xenoprago, porém a diabrete informou que não acabou ainda.

— É mesmo. Tem essa porra ainda. — Esmael colocou a mão na cabeça.

— Estamos no ano da promoção Leve um ser vivo, seja obrigado a ter outro. — Ela sorriu. — Qual sua religião? Se eu trazer uma coisa contra seus ideais pode dar um problema.

— Coloca qualquer uma ou nenhuma — respondeu.

Esperamos sentados enquanto ela ia a algum lugar.

A cada segundo que a freira demorava, meu pé aumentava o ritmo do piso, pois eu não fazia ideia da promoção.

“Vou ganhar um irmão ou irmã?”, pensei no óbvio.

Quando ela voltou, travei feito um freio de osso.

A freira carregava uma bandeja com tampa. Algo dentro do recipiente batia nas laterais.

Levantei de imediato e fui para trás. A moça me acalmou dizendo que estava tudo bem.

— Você terá que cuidar do seu parasita e disso. — Abriu a tampa.

— Um ovo com cobertura de carne? — Fiz um sorriso fingido. — Que legal. Tá mexendo, moça. TÁ MEXENDO, MOÇA.

Leve um, seja obrigado a ter dois. — Ela vez um sorriso verdadeiro.

— Quê? Freira, sei que sou o parasita da jogada, mas não quero participar dessa oferta pior que a Black Fraude — retirei algumas risadas dela.

— Esse ovo vai ser o seu companheiro. — Entregou o ser nas minhas mãos.

— Mais uma boca pra alimentar, puta que pariu — reclamou Esmael.

Acabamos o processo de parasitagem.

A moça deu uma incubadora para mim.

Eu gostaria de tê-la perguntado mais sobre o ovo, que não sei se vai ser uma boa companhia ou uma má, mas desci com Esmael para o andar de baixo antes de ter a oportunidade.

Chegamos à rua e, no meio da fumaça alaranjada, a multidão andava normalmente, mas um ponto verde chamou a minha atenção: Sisa estava correndo desesperada em nossa direção.

Ela subiu as escadas e os gestos dela fizeram Esmael ficar com uma veia pulsando na testa.



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