Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 7: Casa na árvore

Morar em uma Velaxis nunca tinha passado pela minha mente, mas entre ela e não ter casa, prefiro a árvore.

— Lar doce lar! — falou Elideus.

Achei a recepção do biodemônio legal, porém a da casa nem tanto, pois tive uma surpresa ao ficar cara a cara com uma fechadura.

A tranca era uma nareba feia como a de Palatino.

Eca! — enojei.

— É pra afastar ladrões — avisou Esmael, passando os dedos na testa.

O xenoprago me afastou da porta e enfiou o mindinho dentro de uma das narinas. Quando ele retirou o dedo, um catarro fluorescente foi espirrado e a porta se abriu.

"Não tenha mais coisas estranhas, não tenha coisas estranhas…", rezei para mim mesmo.

Ninguém atendeu meu pedido, pois tive um embrulho de estômago ao entrar na casa.

Cogumelos de proximidade sentiram meu calor e deram vida a uma mesa com objetos estranhos… eu achei que fossem objetos.

Em cima da mobília, uma bola de carne pulsava e um boneco de cacto me olhava feito os palhaços dos meus pesadelos.

— São seus presentes da volta do hospital, Ui. — Esmael pegou a bola e começou a cutucar ela, depois chutou e ficou viciado em esmurrá-la. — Tudo é seu, menos a bola.

— Temos uma criança aqui já, duas vai virar várzea.  — Elideus pegou meu presente das mãos do irmão e me deu.

— Vocês não mataram bichos pra fazer ela, né? — perguntei

— Nós não. — Esmael passou na minha frente e encostou no pilar de uma escada. — Os quartos estão lá em cima. A cozinha e a sala ficam aqui embaixo.

— E aquele porão ali? — Apontei e até tremi o dedo.

— É O Lugar pra Guardar Tralha — informou o coqueiro.

A porta do cômodo estava empenada e rangendo, sim, saia um som dela. Ela parecia um botão de terno tentando segurar uma barriga após 12 bolos de chocolate degustados.

Não sou burro para esperar o botão estourar, então fui à cozinha.

Logo me deparei com um ambiente caindo aos meus pés, literalmente.

Assim que coloquei meus olhos nos armários de madeira e nos fogões com dentes nas bocas, uma mesa caiu. Ela estava cheia de cupins.

Voou serragem para todos os lados, inclusive, na minha orelha.

Sem um cotonete, apenas suspirei e me limpei.

Foi inesperado para mim, mas, pela encarada de Elideus a Esmael, talvez fosse algo esperado.

— Avisei quantas vezes pra comprar outra mesa? — questionou o biodemônio.

— Não fode. Ela estava boa ontem. — O xenoprago balançou o cabelo de coqueiro e jogou pedaços da mesa em uma pilha de cadeiras quebradas.

— Boa igual às mobílias de anteontem — resmungou para mim.

Ri um pouco e terminei de me limpar, de ouvir os xingamentos de Esmael e de ficar preparado para ir ao andar de cima.

Fui à escada do começo e subi o primeiro degrau dela. Tive sorte nessa hora.

Ficando atrás dos irmãos, fui alvo de uma poeira. Eles deram passos e levantaram uma nuvem de pó que no meu nariz.

Tive uma crise de espirros e fiquei tonto.

Se não fosse pelo corrimão, eu não teria chegado ao andar de cima.

“Amém!”, agradeci de joelhos no chão quando parei de espirrar.

Também disse obrigado a Elideus por me colocar de pé e me mostrar o local.

Estávamos em um corredor e ele fez questão de apontar para quatro portas. Elas eram feitas de madeira listrada e estavam lado a lado.

Não demorei para descobrir qual delas levava ao meu quarto.

Esmael puxou a última maçaneta da fila e jogou os meus presentes dentro do cômodo.

Fiquei feliz por não ouvir nenhum Creck!.

— Pode explorar o seu novo quarto. Enquanto isso, eu e Esmael fazemos o jantar — falou Elideus.

— Não botei meu nome nessa urna não! — Olhou para mim calado. — Podem comer sem mim. Tenho alguns compromissos.

O xenoprago entrou dentro do primeiro cômodo e se trancou.

— Acho que ele não volta hoje. Enfim… — Bateu palmas. — Vou fazer o jantar, mas posso deixar você explorando o seu quarto?

— Pode. — Dei um meio-sorriso.

Me despedi dele, mas não queria ter dado tchau!.

Eu precisava de alguém ao lado, porque, quando vi ele descendo a escada, meu peito começou a doer.

Sem ele, sem alguém por perto, tudo ficou escuro.

“Por quê?”, pensei me fechando no meu novo quarto.

Reparei em tudo, mas mal sorri.

Em outro momento, eu pularia na minha nova cama, uma rede, e tacaria as gavetas do guarda-roupa ao alto para ver as novidades.

Eu acabaria achando alguns livros de OLED, pequenas telas descartáveis e até mesmo comestíveis, na bagunça e os leria de noite. Também dormiria tranquilo após desligar o abajur de cacto.

No agora, apenas me concentrei na madeira zumbi da Velaxis e nos cogumelos luminescente piscando como um varga-lume cansado, velho e sem luz.

O abajur da minha antiga casa pelo menos funcionava e me animava quando meu pai lia O peixe-banana à deriva para mim.

“Quem sabe um soco conserta ele?”, levantei a dúvida.

Fechei o punho e dei um golpe, forte o bastante para explodir uma mosca de cabelo ruivo, no abajur.

Infelizmente ele continuou desligado, então fiquei apenas com a luz da fresta da porta e pulei na rede.

Testar a rede me trouxe outro estralo. A última vez que usei uma foi no festival Tal a isca do pai, tal a isca do filho.

Tentei esquecer do brinquedo que ganhei no final do evento, mas a tentativa foi por água abaixo quando peguei o meu presente, o boneco de cacto.

Pelo menos ele parecia feliz, pois recebeu bastante água quando o agarrei e comecei a soluçar.

Se um toc! toc! não tivesse surgido momentos depois, talvez eu tivesse ficado para sempre soluçando.

— O rango tá pronto — avisou Elideus. — Independente do seu estado, acho que a comida ajudará a melhorar ele.

Era uma proposta boa.

Sem recusá-la, passei as mãos nos olhos, tirei a jaqueta e me encontrei com o biodemônio.

— Consegue comer? — perguntou.

Eu queria responder que as chances de eu vomitar seriam grandes, mas algo me incomodava desde que acordei naquela câmara de mel.

Uma comida cairia bem.

— Esse gosto de própolis na língua tá horrível. Qualquer coisa que tiver outro sabor vou curtir — declarei.

— Ótimo! — Levantou as maçãs do rosto. — Chegou a hora de você experimentar chinelo com areia.

— É sério? — Dei passos para dentro do quarto e olhei a rede. — A fome passou e nem sei o motivo. Boa noite!

— Tá bom então. — Desceu as escadas.

— Estou brincando. Eu aceito até mastigar tijolo de osso eu aceito. — Fui atrás dele.

 Parei na cozinha e me deparei com uma mesa, intacta. Era aquela onde os meus presentes estavam. Dois bancos circulares a cercavam, porém não entendi muito bem de onde saíram.

Eles estavam fixos como um poste no chão. Descobri o que eram quando Elideus tirou uma panela do fogão e veio ajeitar meu assento.

O biodemônio pegou o tronco do banco e o puxou para cima. Foi como tirar um legume da terra.

— Perto da mesa está bom? — perguntou.

— Gosto de comer um pouco longe dela. — Apontei para uma mancha de no chão. — Pode colocar nessa gota verme… — Engoli saliva.

— Isso daí não é sangue e muito menos ketchup. É um dos temperos da comida.

Ele aproveitou para me mostrar o cardápio.

O chefe chifrudo colocou a panela que segurava e abriu a tampa na minha frente.

Havia muita água nela, mas apenas momentaneamente. O líquido estava ali e, em outra hora, não estava.

O culpado do sumiço era o que estava no meio da panela: uma espécie de cérebro verde.

Olhei para Elideus na hora e ele riu da minha cara.

— Chamamos isso de mentoal. É uma planta, não se preocupe. Te ajudará bastante — pegou uma faca e partiu a comida em diversos cubos.

A ideia de colocar a refeição na boca não era muito palpável, porém eu estava com fome e com um gosto terrível de própolis na boca.

Receoso, peguei um garfo de osso e finquei um cubo de mentoal. Antes de enfiá-lo goela abaixo, Elideus interviu com uma tosse.

— Tá faltando uma coisa. — Apontou para um pote em cima da mesa. — A mancha vermelha veio daí.

Girei a tampa do pote de madeira e o abri. Um cheiro de arroz estragado me deu uma voadora na cara.

Pelo menos a aparência era normal. Colocar um creme escarlate vindo diretamente de Inferno, parecia uma ideia formidável.

Passei o creme, com uma faca, nos cubos e dei uma mordida neles.

De imediato, cai no chão, pois… estava…muito… gostoso.

Uma mistura de ardência, lembranças de bolos de chocolate e um último abraço estava na minha boca.

Comecei a rir, chorar e a sorrir sem parar.

Aproveitei a felicidade e comi a mentoal inteira. Demorei alguns minutos para obliterar todos os cubos, mas consegui.

— Vejo que gostou. — Elideus recolheu meu prato.

— Se tivesse cortado em cubos desde o início, teria sido melhor ainda — falei.

— Até pensei nessa possibilidade, mas ver a realidade de Inferno será importante a partir de agora. O encontro que teremos semana que vem que o diga. — Fechou o pote vazio.



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