Indulgência Brasileira

Autor(a): Excamosh


Volume 1

Capítulo 6: Novidades

Descemos ao primeiro andar e, na recepção, tive uma surpresa.

Um xenoprago encapuzado bateu a cabeça no teto e começou a cambalear de dor. Tinha o triplo de músculos de Esmael e percorreu a sala como um arrozfálo desenfreado.

Agachei de imediato, pois um braço passou rente a minha cabeça. Perdi alguns fios de cabelo.

— Cuidado aí! — avisou Esmael.

— Desculpa — falou o desgovernado.

O senhor entrou no elevador e meteu o pé.

Eu também devia sair dali.

Após dar um tchau para uma pequena biodemônia da recepção, que mais parecia uma diabrete, passei pela porta do prédio de cor flamejante.

Teria sido melhor ficar lá dentro, porque uma água quente voou na minha cara. Gritei por um momento e percebi o que tinha acontecido apenas quando Elideus me deu um lenço gelado.

No meio da neblina alaranjada da cidade, uma criatura, que nunca vi antes, bateu a cabeça de leão em um cano do prédio de Fépis, mas isso depois de quebrar a faixada de diversos arranha-céus com sua carapaça de abacaxi.

Reparei em suas seis patas mexendo e em um pessoal tentando reanimar o bicho. Uma charrete estava capotada perto deles.

— Acho que teremos uma caminhada pela frente. Essa tarasca travou o trânsito — disse Elideus, apontando para inúmeras criaturas paradas em uma pista escura como a noite de um deserto vermelho.

— Nem a pé vai dar pra usar o caminho padrão. Vamos por outro lugar. — Esmael cutucou meu ombro. — Tá vivo?

— Dá pra continuar. — Caminhei passando por um pneu de osso. — Ahg!

O osso estava quebrado. Meu cotovelo pinicou ao vê-lo estirado no meio do passeio. Esse tipo de coisa não acontecia em Paraíso, nem poderia acontecer.

Na verdade, os tipos de coisas que me cercavam aconteciam, porém apenas nas histórias contadas pela minha babá do Meliodes, o aparelho de pulso.

Biodemônios, trabalhando em arranha-céus flamejantes, diabretes, andando por passeios espinhosos, e xenopragos, respirando a fumaça do céu de whisky, realmente existiam.

Tudo que a falha biológica proporcionava estava ali, em Inferno.

Mas, ao contrário das canções de ninar, os seres não me olhavam com olhos que matavam ao piscar ou quebravam o meu pescoço ao mexerem as pupilas. Embora fosse de um jeito que me fazia apertar as mãos, simplesmente passavam por mim.

— Fique perto de nós e não terá problemas por enquanto, xenoprago iniciante — avisou Elideus, encarando um homem que passava.

— O que um xenoprago faz? — perguntei, mas tropecei em um moço caído.

Esmael me pegou pela gola de trás e me ajeitou no passeio.

— Fazemos espetinhos de crianças que parecem bêbados andando.

— Bêbados? — questionei descrente.

— Elideus… — Esmael saiu para frente com a mão na testa.

— É uma pessoa que ingere o céu de whisky e fica daquela forma — Elideus apontou ao homem deitado e entendi mais ou menos.

Após passar por outros bêbados, sai do passeio e entrei em uma passarela. Não foi legal.

O local estava apertado e com cheiro de cebola estragada, mas essa era a parte boa.

Por mim, uma biodemônia passou. Ela era igual àquela desmembrada da floresta.

Virei o rosto ao lado e concentrei, pela grade de espinhos vermelhos e carnudos, nas tarascas correndo pela pista.

“Sinto muito”, pensei distraído.

— Vai ficar pra trás? — Esmael me cutucou no ombro. — Por mim, pode ficar se quiser.

— Não quero virar espetinho. — Apressei o passo mesmo entristecido.

Conforme eu andava, meu estômago só piorava ao ver os prédios mudando de tamanho e forma. O ruído de explosões e gritos também não ajudava muito.

A situação da minha barriga estava feia. Pedi ao Elideus para darmos uma pausa. Infelizmente, ele estava apressado.

Continuei e tive algum progresso no caminho.

Cheguei em um trecho com um córrego passando no meio da rua. Ao vê-lo, Esmael riu e me perguntou se sei nadar.

Quando desci em uma escada e fiquei perto da água, falei que não, pois a ideia de entrar em um líquido sangrento e borbulhante como catapora era horrível.

Após minhas breves reclamações sobre estar muito quente, Esmael deu um tapa no meu ombro. Doeu por um momento, mas senti um frio em seguida.

— Ao contrário daquele terno de babaca, sua nova roupa vai ajudar no dia a dia. Só precisa de alguns estímulos certos. — O homem esticou seu braço e abriu o seu Meliodes, todo quebrado.

— Onde tá meu terno falando nisso?

Kkkkkk! Acha que pagamos seu casulo? — respondeu com uma pergunta que me fez abrir boca. 

Aquele terno foi um presente do meu pai para o evento. Não vai fazer falta. Cansei de ver qualquer terno que seja.

— Tudo bem. — Taquei um pedaço de pedra na água. — Tá derretendo ou é impressão minha?

— Não é tão quente quanto parece — advertiu Elideus.

— Já andou de barco, moleque? — perguntou Esmael, fechando o dispositivo de pulso.

— Só uma vez.

— Hora da segunda vez. — Virou o rosto de lado.

Uma legião de canoas chegou depois de um tempo. Algumas ocupadas por cargas, outras por pessoas e uma vazia.

Pelo trocar de gestos entre a condutora da vazia e os irmãos, o nosso transporte tinha chegado.

Soltei um sorriso torto, pois seria uma experiência e tanto. Andar em uma canoa achatada, que me encarava com seus dentes e mexia o assento escamoso da tripulação ao respirar, não acontecia todos os dias.

Ver uma sincronia entre barco e tripulante tão semelhantes também era raridade.

A condutora balançava sua cabeça, constituída por um emaranhado de galhos e girassóis em forma de V, e a criatura fazia a mesma coisa. Ela limpava a sua vegetação ensolarada, que cobria parte de sua pele cinzenta, e o barco se debatia na água.

Conforme meu pai me ensinou, dei um boa tarde sorridente e estendi minha mão para ela. Consegui um aperto de mão.

Após o primeiro contato, a biodemônia entortou o pescoço para Elideus.

— Esse daí é um novo carinha que vai morar conosco — falou lentamente.

A moça fazia sins com a cabeça.

Foi uma breve explicação. Serviu para nos apressar à canoa.

Subi bem nas costelas achatadas do animal. Juro que estava dando para ouvir seu coração batendo.

Pelo menos ele era escamoso, a ideia de sentar em barco carnudo, como um que acabou de passar, era constrangedora.

— Todos prontos? — questionou Elideus. Sabendo da resposta, deu um joinha à moça.

A biodemônia colocou o braço na cabeça do bicho. Seus dedos começaram a se desgrudar a um ponto que sobraram apenas fios de carne, que entraram nos ouvidos do animal.

— Ele tem orelha? — perguntei

— É coisa da Sisa. Você se acostuma. — Elideus apontou para frente. — Vamos chegar na nossa casa seguindo essa parte do córrego.

Os três pareciam ter feito aquele trajeto antes, então se acomodaram no barco e confiaram na biodemônia.

Arrancamos sem problemas e, depois de um tempo, os outros barcos sumiram. Ficamos sozinhos.

Por cima d’água, tudo parecia menos barulhento. Era como se o vapor entrasse nas minhas narinas e me acalmasse.

Com toda certeza, foi um alívio ter pego esse transporte. Até encostei a cabeça nas bordas do barco para tentar dormir, mas não deu tempo.

Assim que o córrego desaguou em um rio, levei uma pancada aguada na cara. Era um rio, então não havia ondas para ter feito aquilo.

Debaixo dos meus pés, estavam os responsáveis pelo golpe.

Peixes arqueiros pularam na canoa.

— É por causa desse tipo de coisa que não passo por aqui — disse Esmael, tirando um lambari do bolso. — Vai caçar sua mãe!

— Pelo menos eles tem autodefesa. — Elideus riu.

Ajudei a tirar os intrusos do barco.

Ouvi um Nhac! no processo e fiz questão de tacar os peixes longe da canoa. Eram mais pesados do que os peixes-bananas pescados por mim certa vez, mas dei conta do serviço.

Tirei o último peixe do barco quando as construções deram espaço para um pântano.

Árvores apareceram de todos os lados e o vermelho da água se misturou ao verde.

Por um momento, pensei: “Vou morar no mato agora, hehe!”. Me enganei feio.

Um semáforo apareceu. Estava pendurado em cipós e piscava para mim.

Ao ficar vermelho, tarascas surgiram. Nadavam rápido o suficiente para molhar banhistas desavisados.

— Aquelas outras criaturas que vi na rua também nadam? — perguntei, enquanto diversos seres seguiam com as tarascas.

— Pode ter certeza disso — respondeu Elideus.

Antes de eu consegui conversar mais, o sinal abriu.

Sifa olhou para a frente e a canoa arrancou. A combinação da dupla funcionava muito bem.

A moça olhava para uma direção e o barco ia direto nela. É claro, nessa troca de informações ocorria obstáculos, então de vez em quando desviamos de troncos ou até mesmo de ossos flutuando, detalhes que não curti tanto.

Pelo menos encontrei outra coisa que gostei depois de um tempo: uma notícia.

Cheguei à casa de Esmael e Elideus.

Infelizmente, gostei apenas do título do jornal, pois o conteúdo em si fez eu ficar parado ao vê-lo.

— Men… ti… ra!!! — balbuciei o tanto que minha mão tremia.

— Está zombando da nossa casa, garoto? — Esmael fechou o punho.

— Não é isso. Vocês moram em uma Velaxis?

— Nós e muitas pessoas de Inferno moramos nas árvores dos mortos — Elideus entrou na conversa e apontou para diversos lados.

Primeiro ele indicou o tronco de uma Velaxis saindo da água vermelha e verde. Sua madeira negra e apodrecida estava acompanhada por escadas, tábuas, placas e tudo que os moradores poderiam utilizar para entrar nos buracos de suas casas. 

Depois ele mostrou pessoas balançando em cadeiras de balanço, fazendo suas tarefas domésticas e pulando entre galhos retorcidos de diversas Velaxis.

Brincadeiras ocorriam no meio das árvores, mas uma delas não foi legal. Alguém empurrou uma garota na água e logo me agarrei ao barco, não por ter medo da queda, mas sim por ter olhado de onde ela havia caído.

A garota estava perto daquilo que me assustou de imediato: as folhas azuis-escuras da árvore. Focar meus olhos vermelhos nelas foi como olhar ao céu de whisky, porém bem pior. Fiquei tonto e descobri o significado de bêbado.

Eram muitas folhas, muitas folhas, muitas folhas…

— Não é possível! — Soltei lágrimas. — São muitas folhas.

— Não olhe pra elas, dói no começo. — Elideus me tirou do barco e me colocou em uma escada.

— Por que vocês moram em uma Velaxis, por quê?

— No dia que você descobrir uma resposta decente, me fala — Esmael falou e indicou uma porta no início de um galho. — Vamos pra nossa casa.



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