Volume 3

Capítulo 104: Vigésima Primeira Página do Diário

Eu estava perdido.

A angústia e o medo me corroeram o quanto foi possível. Minha mente se quebrou e eu entrei no mais puro desespero. Sem saber o que fazer eu fugi, corri tanto que já não sabia mais onde estava e nem em que direção seguia.

Os rostos distorcidos daqueles que matei estavam em minha mente e eu ouvia seus apelos para que os deixassem viver. Eu vi diante dos meus olhos as cenas se repetirem, cada um que eu matei, cada vida que eu tirei.

Como se minha mente estivesse separada de meu corpo, eu assistia minha própria fuga em primeira pessoa. Árvores, pedras, pessoas… tudo passava por mim tão rápido que pareciam nem estar ali, ou na verdade eu que passava por eles. Eu não sentia minhas pernas se moverem mas sabia que elas estavam me levando a algum lugar.

Já não sentia o calor do sol ou o frescor do vento em minha pele. Não senti fome ou sede, nem qualquer outra coisa que pudesse ser captada pelos meus sentidos. Entrei em um estado de isolamento dentro de mim mesmo. Mas continuei correndo.

Perdi o equilíbrio, talvez as minhas pernas tenham entrado em colapso depois de correr por tanto tempo em um único dia. Vi o chão se aproximar do meu rosto, mas não consegui evitar o impacto. Finalmente minha mente se esvaiu e eu desmaiei.

Foi como mergulhar na escuridão, flutuando no nada, sem a gravidade me segurando e puxando para baixo.

Então eu tive um sonho bom. Sonhei que eu era um garoto normal, vivendo em uma família normal, com uma mãe, um pai e uma irmã mais velha. Um sonho maravilhoso, em que não vivíamos em um mundo de guerras.

Minha irmã me ensinava a jogar videogame, mas algumas vezes me dava o controle desligado. Nós sempre estávamos brigando, mas ela cuidava de mim. Meu pai era o cozinheiro, cada sobremesa que ele fazia era uma obra de arte. E minha mãe era a pessoa mais inteligente do mundo, não havia pergunta para a qual ela não soubesse de uma resposta.

Como se tudo aquilo fosse real, minha mente se acalmou, a calidez de um abraço, ou o sabor de uma refeição em família, parecendo ser tão verdadeiro

Então o sonho mudou. Minha mãe estava sentada no chão, abraçando os joelhos e se debulhando em lágrimas. Tentei fazer alguma coisa, mas então me vi preso a uma cama de hospital, ouvi um som agudo e ritmado. O som foi se tornado cada vez mais espaçado, até que se tornou um único som contínuo.

Eu estava ali, diante de mim mesmo, como se assitisse a minha própria morte. Meu corpo estava preso a uma cama, mas minha mente estava flutuando acima, mesmo morto eu continuei vendo a reação da minha mãe abraçando o que deveria ser meu corpo e pedindo para não deixá-la sozinha.

Queria dizer a ela que eu estava ali, mas não consegui emitir nenhum som que fosse.

Então tudo mudou mais uma vez.

Me senti flutuando mais uma vez no espaço vazio, escuro e frio. Não havia noção de cima e baixo, ou de profundidade. Não haviam sons, cheiros ou luzes. Apenas frio e escuridão.

Pareceram se passar uns cem anos. Ao mesmo tempo foi tudo tão rápido.

Então alguém estava lá além de mim.

Era como se estivesse me observando desde o começo e eu não fosse capaz de senti-lo, mas eu não sabia como sabia disto, apenas sabia que sabia.

— Sua mente está uma confusão, criança.

Aquele “alguém” parecia falar comigo.

— Uma pena que tudo tenha que ser assim.

Ele continuava falando, mas era como se eu ouvisse e não compreendesse suas palavras.

— Fico feliz que tenha chegado até aqui, mas ainda não está na hora.

Tentei dizer algo, qualquer coisa, perguntar quem era ele, ou quem era eu. Mas nada aconteceu.

— Mesmo que tenha meu corpo, ainda não está pronto para o meu espírito.

Senti meu corpo pesar, como se estivesse caindo eternamente.

— Então, nos veremos em breveEspero que tenha gostado do meu presente.

Então lembrei, eu conhecia aquela voz.

Era ele.

O esqueleto ancestral falante que conheci na Grande Falha, a alucianção causada pela inalação de névoa tóxica estava mais uma vez batendo um papo mental comigo. Só que dessa vez eu não conseguia responder.

Então parei pra pensar, será que o tal presente era o meu poder? O Rancor era um presente de uma alucinação causada pela névoa? Ou será que era a própria névoa que adentrou o meu corpo? E se eu usasse muito poderia esgotar o que eu absorvi? Será que se eu voltasse à Grande falha poderia absorver mais poder e ficar mais forte?

Meus pensamentos de autoreflexão filosófica em piedade e arrependimento por coisas que nunca poderia desfazer foram interrompidos por uma dor que parecia me rasgar por dentro.

Acordei caído de bruços em uma poça de sangue, suor e vômito. Com muita dificuldade me arrastei para o lado, buscando uma posição confortável para meu corpo, mas foi em vão, a dor continuou me torturando.

Minha mente estava mais organizada, mas ainda não estava calma. Senti fome, senti a minha pele arder e vi uma certa quantidade de ferimentos. Puxei pela memória, e lembrei de ser atingido algumas vezes enquanto matava pessoas. Tavez ter usado o rancor dentro do meu corpo tenha evitado ferimentos mais profundos.

Então entendi a causa daquela dor excruciante. Aquilo era obra do meu próprio poder, e ao forçar ele dentro de mim mesmo, levei meu corpo além das capacidades físicas de um ser humano. e principalmente devido a minha idade e pouca resistência física, agora eu estava destruído por dentro.

Literalmente.

Virei para o lado buscando algo comestível e vi não estava sozinho, ao meu lado haviam uma figura pequena que parecia descansar. Olhei mais de perto, reconheci a criança que salvei no porão do traficante de escravos.

— Brogo…

Estava diferente. Tinha as pálpebras, as pontas dos dedos, e até um pouco de cabelo. Além de dessa vez estar vestida com uma túnica, shorts, botas curtas e uma capa longa e grossa. Talvez fosse mais uma alucinação da minha cabeça, então tentei não pensar muito nisso.

Levantei para procurar alguma coisa comestível, e finalmente entendi o motivo de ser obrigatório estudar botânica na Montanha Solitária. Achei algumas plantas comestíveis que saciaram minha fome, e usando meus conhecimentos de relevo foi fácil encontrar um córrego para conseguir água.

Aproveitei para me lavar e tirar o excesso de sujeira e mau cheiro do meu corpo.

O mais difícil foi me mover com tanta dor destruindo meu corpo de dentro pra fora, e de fora pra dentro. Aos poucos eu me acostumei, não que a dor tenha passado, mas me convenci que ia morrer de qualquer jeito e comeceia tentar ignorar a dor.

Não funcionou bem, mas graças a isso consegui engolir a água e a comida improvisada. Queria continuar fugindo, e para isso teria que deixar Brogo ali, sozinha. Não era o certo a se fazer, mas ela estaria mais segura longe de mim.

Quando senti que estava mais recuperado e com um pouco de energia, comecei a correr sem rumo novamente, mas antes que desse cem passos, minhas pernas falharam, minha mente apagou e eu desmaiei mais uma vez.

Mais uma vez eu fui de cara no chão, mas pelo menos eu estava de barriga cheia.



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