Volume 3

Capítulo 129: Vigésima Sexta Página do Diário

Eu tinha um mal pressentimento.

Conforme Nilo saiu para avisar Brogo, Jairo e o mudo, eu tentei reorganizar meus planos. Em tudo que imaginei, todos os planos e possibilidades que avaliei, jamais considerei a possibilidade de um dos heróis estar em Utab.

Achava que eles estavam, sei lá, fazendo coisas de heróis. Seja lá o que os heróis façam…

Se me lembrava bem, Anne tinha o poder de mover as coisas com a mente. Não parecia muito perigoso, mas pensando no que eu conseguiria fazer se tivesse esse poder, achei melhor não baixar a guarda. 

O que ela faria? Avisaria o Barão? Não, ela foi em uma direção diferente. Acionaria os guardas? Ela poderia simplesmente ter gritado dali mesmo. Mas isso teria alertado os que estavam comigo também. Muito inteligente da parte dela, melhor não subestimar.

Fiquei sozinho por poucos minutos, mas pareceram horas.

Ouvi passos no corredor, eram os nobres que voltavam de sua reunião particular. Foi muito rápido, e isso me preocupou muito. Antes que eles chegassem à sala, Brogo apareceu na janela, fiz um sinal para que ela ficasse escondida, não era o melhor momento para dar u passo em falso.

Eu já tinha sido descoberto, e por mais que Anne não soubesse de minhas intenções, quanto mais tempo eu passasse ali, mais perigoso seria. E também não poderia por meus parceiros em risco maior do que já corríamos.

— Espero não termos demorado. — O Barão disse, enquanto entrava.

— Não, nem vi o tempo passar. — Eu queria até dizer que foi muito rápido, mas eles poderiam ficar ofendidos, nobres são estranhos.

— Achei que a minha filha estaria aqui fazendo a recepção aos meus convidados… — O Barão disse, meio desconfiado.

— Aparentemente a amiga dela não gostou de mim, senhor.

— Aquela garota é estranha mesmo, mas é uma entre os heróis escolhidos. — Ele forçou um sorriso — E o seu contador?

— Foi ao banheiro! — Melhor desculpa que consegui.

— Então, vamos ao negócios? — Um dos nobres perguntou.

O Barão acenou em direção aos assentos, e sentando-se na poltrona principal, iniciou a negociação.

— De quantos escravos você vai precisar?

— Depende do preço e da qualidade. — Respondi.

Aulas de economia do Leste valeram a pena, eu tinha aprendido que cada produto tem um valor definido pela qualidade em função da relação oferta/demanda. E pensar que eu odiei esse assunto quando fui obrigado a estudar.

— Temos alguns à venda, recém-chegados do Leste e do Sul. Ótimos trabalhadores, bem resistentes, jovens na sua maioria… Algumas mulheres até. — Ele deu um sorriso pervertido.

— Se possível, gostaria de levar alguns para mostrar aos nossos futuros clientes. Mas não posso demorar muito nessa viagem, ou a guarda vai suspeitar da minha viagem, portanto, gostaria de vê-los o mais breve possível. — A ansiedade me matava, mas eu me mantive forte na atuação.

— Se quiser, podemos ir vê-los agora mesmo. — O mais gordo entre os nobres falou, animado — Estão no meu depósito, é aqui próximo.

— Adoraria. — Quanto mais rápido eu saísse dali, melhor.

— Você não vai acreditar no que passei para conseguir aqueles escravos. — Eu continuou — Alguns lunáticos perseguiram a nossa caravana até a fronteira, e depois mataram um dos meus sócios mais importantes…

Acho que eu era o lunático.

— … Todo o mercado de escravos está uma bagunça depois disso. — Ele disse — Até os heróis estão envolvidos na investigação. Imagina só esse mundo sem escravos, a economia do continente inteiro vai colapsar e as pessoas vão passar fome.

Heróis! Depois disso deixei de prestar atenção ao que ele dizia. Não podia ser coincidência que Anne estava ali. Mas como poderiam adivinhar que eu ia escolher justamente Utab? Em todo caso, eu não tinha tempo para pensar nisso.

E então as coisas finalmente deram errado de vez.

Anne entrou de novo na sala, a passos largos, acompanhada por meia dúzia de guardas. Mas não eram guardas da mansão, esses usavam um conjunto de roupa diferentes.

Assassinos!

— Acabou, André! — Ela anunciou — Sabemos que é você que está liderando a libertação de escravos. Não adianta tentar fugir, mandei um mensageiro para avisar os outros, em breve eles terão capturado seus cúmplices.

As peças começaram a se encaixar dentro da minha cabeça.

— Não há para onde correr. — Ela continuou — Renda-se pacificamente, e eu, pessoalmente, garantirei a sua segurança até que tenha um julgamento adequado.

Não liguei para o que ela dizia. Estava concentrado em juntar os fatos. Ela tinha saído mais cedo para enviar o mensageiro e pedir reforços, e quando me reconheceu, não foi devido ao que fiz na festa dos heróis e o roubo do ovo, ou semente, nunca lembro.

Mas como descobriram que fui eu? Essa era a pergunta mais pertinente.

— Senhores… — Eu falei calmamente — Infelizmente isso tudo foi apenas parte de um teatrinho.

— Seu maldito… — O Barão estava enfurecido.

— Estou aqui para salvar aquelas pessoas, e não para comprá-las.

— Miserável! — Bradou o mais gordo dos nobres.

— Você não tem como avisar os seus comparsas antes que os guardas capturem eles. — Anne disse.

— Eu não, mas Brogo pode fazer isso por mim. — Respondi apontando para a janela.

Brogo apareceu das sombras, mostrou o dedo do meio de ambas as mãos, e pulou. Ela pulou do terceiro andar como se fosse nada, mas também, depois de tudo que ela havia passado, poucas coisas deveriam assustá-la.

Olhei para Anne e sorri. Os nobres haviam dito onde estavam os escravos, e isso era tudo que eu precisava saber, enquanto meus amigos salvavam aquelas pobres almas, eu ia tentar segurar essas pessoas aqui.

Mais fácil falar do que fazer.

Levando em conta que nenhum dos nobres ali pudesse participar da inevitável luta que estava por vir, ainda sobravam seis de assassinos e uma heroína com um poder complicado de enfrentar. Mas eu não precisava vencer, apenas ganhar tempo.

Aos poucos fui liberando o Rancor, e fazendo a névoa escura se espalhar lentamente por entre as poltronas, passando por debaixo das pernas das pessoas que estavam ali. Mas Anne foi rápida em perceber o que eu estava fazendo, ela recuou e deu uma ordem de ataque.

Os guardas que ela trouxe avançaram em minha direção, mantendo uma formação organizada, com certeza buscando me deixar cercado. Como se eu fosse deixar isso acontecer.

Em vez de fugir, avancei no que estava à minha frente.

O guarda tinha duas adagas curvadas, a postura estava boa, e eu não tinha para onde fugir. Da névoa de Rancor que cobria o chão, fiz surgir uma espada, mas não a empunhei. Em vez de atacar com a arma que criei, pisei na empunhadura e me lancei por cima do guarda.

Me alvo era a heroína.

Fiz duas espadas curtas surgirem do chão e se lançarem até as minhas mãos enquanto ainda estava no ar, foi muito legal, exatamente como havia treinado. Eu havia escapado do cerco de assassinos e estava com a minha possível vítima na mira.

Mas algo deu errado.

Senti meu corpo acertar a parede à esquerda. Foi rápido demais, nem tive tempo para reagir. Ah é, ela pode mover as coisas com a mente, então simplesmente me moveu para não acertá-la.

— Peguem ele! — Anne gritou.

Pude ver os nobres correndo para fora da sala, enquanto dois guardas da mansão davam cobertura. Mais guardas vinham chegando, e dois assassinos estavam bem do meu lado.

Não havia tempo nem meios de escapar, tudo que eu podia fazer era me proteger. Uma adaga veio em direção ao meu braço direito, mas eu fui rápido em criar uma manopla de braço inteiro, bloqueando o ataque. Isso fez o homem recuar e me comprou alguns segundos.

O principal motivo para eu ter desistido de usar uma armadura de Rancor era devido ela atrapalhar nos meus movimentos e me deixar mais lento. Mas não havia forma alguma de eu ganhar de todos aqueles caras perigosos e intimidantes apenas com a minha agilidade básica.

Talvez usar uma armadura completa para bloquear os ataques deles fosse o melhor. Afinal, eu só estava ganhando tempo para os outros.

Então eu fiz. Uma armadura incrível, completa, sem pedaços. Apenas uma casca grossa e impenetrável ao meu redor. E como ainda havia um pouco de poder restando, fiz quatro escudos flutuantes, dois de cada lado.

Anne se aproximou, ao mesmo tempo os guardas se reorganizaram, prevendo uma possível fuga.

— Uma guerra chegando e você aqui tentando me prender… — Tentei provocar — A heroína não tem responsabilidades mais importantes do que garantir que humanos sejam escravizados?

— Guerra? — Anne disse em meio a uma risada de escárnio — Acho que você está desinformado, cara. O Leste entregou a Semente da Mãe Terra para o templo da Floresta Sagrada, assim o poder está novamente balanceado. Por isso não existe motivos para uma guerra…

Ah bom… Que merda…

— Agora um idiota ameaçando a economia de um reino inteiro é um problema grave. Ainda bem que o Felipe conseguiu analisar o seu padrão de ação e prever todas as possíveis rotas que você tomaria. Muito inteligente ele, não acha?

Essa me deixou sem palavras.

Mas ela ainda tinha mais coisas a dizer, e eu não estava pronto para ouvir.

— A Zita ficou decepcionada com você, ela foi para a fronteira… Para garantir que seu bando de fugitivos não passe pro Leste, nem que seja preciso eliminar cada um deles. Ou até mesmo você.

Ela conseguiu tocar na ferida. Podia me ameaçar, ou falar o que quisesse dos meus parceiros, só não precisava pôr a Zita na história. Isso me fez lembrar que eu odeio a maioria dos heróis… Isso fez a centelha de ódio em mim se tornar uma labareda intensa.



Comentários