Volume 3

Capítulo 144: Vigésima Nona Página do Diário

Finalmente, depois de uma longa viagem, e um atalho inusitado, chegamos a Parva. A cidade era um ponto de encontro de mercadores de todo o continente, e foi onde eu e minhas irmãs descansamos tempos atrás, quando quase começamos uma guerra.

Mas as coisas estavam um pouco diferentes do que eu lembrava.

Havia muita fumaça na cidade, pouco movimento, e no portão principal da cidade haviam algumas coisas penduradas. Brogo fez um sinal para que eu esperasse, enquanto buscava algo dentro de um bolso. Freei o cavalo e esperei.

Nilo chegou logo atrás a parou ao meu lado, mas a expressão dele era de medo.

— Eu já vi isso…

Brogo estava olhando em uma luneta, que devia ser o que ela procurava. Ela abaixou a luneta e ficou em silêncio, sem olhar para nós, apenas encarando os portões da cidade.

— O que você viu?

Brogo não respondeu. Em vez disso, ela me entregou a luneta, desceu do cavalo começou a andar de um lado para outro. Eu não entendi, então olhei em direção à cidade…

As coisas penduradas nos portões da cidade eram cabeças humanas.

Não dava para reconhecer, mas as expressões de horror estampadas eram resquícios dos últimos momentos de cada um deles.

Aquilo me gelou a alma.

Haviam cabeças de pessoas presas aos portões de Parva. Isso era algo que nunca havia acontecido em nenhuma cidade por onde eu já tinha passado. Então lembrei do que Anne tinha me dito.

Os outros heróis. Eles tinham vindo na frente e armado uma emboscada. Mas em vez de se focarem nos escravos, eles tomaram Parva. Juntaram a captura dos escravos com a vingança pela derrota dos soldados de prata naquela mesma cidade, quase um ano atrás.

Mas quais motivos eles tinham para pendurarem cabeças nos portões?

Anne também havia dito que a guerra havia sido evitada. Então o que estaria acontecendo? Senti minhas mãos tremerem, as pernas também. Meu coração estava batendo muito acelerado, e minha mente estava funcionando muito rápido.

Brogo olhou para a cidade através da luneta mais uma vez, eu nem vi quando ela pegou o objeto de volta. Ela parecia estar contando algo, eu esperei ela terminar.

— Vinte e oito soldados com emblemas do Reino de Prata sobre os muros da cidade. — Ela disse — E nenhuma das cabeças nos portões são de conhecidos nossos…

— Isso não garante que eles estão vivos! — Nilo disse.

Minha vontade era de ir lá e sair matando geral. Até tentei fazer isso, mas algo em minha cabeça dizia que eu estaria ferrado se me metesse em uma cidade cheia de inimigos, sozinho, cansado, e com um tornozelo ferrado.

Senti minha mente se acalmar. Era disso que eu precisava, acalmar a mente, descansar o corpo, recuperar meu poder. Aquele recuo estratégico entes da verdadeira batalha.

— Ei! Aqui… — Alguém gritou não muito longe.

Era um dos membros do grupo de mercenários que Nilo fazia parte. Ele estava nos chamando para uma direção diferente, seguindo uma rota para o lado em vez de ir em frente.

Então achamos um acampamento improvisado.

Lá estavam pessoas de vários lugares. Jairo e Zhu-Li tentavam pôr ordem em tudo, mas estava difícil. Algumas pessoas ali eram bandidos convertidos, outros eram escravos resgatados, outros eram mercenários, e tinham muitos que eu nunca tinha visto na vida.

Então vi rostos conhecidos, e alguns eram de pessoas que conheci em Parva. A maioria estava ferido, todos estavam abatidos. 

— O que aconteceu? — Perguntei, quase sem voz.

— Uma emboscada! — Jairo explicou — O Reino de Prata mandou um grupamento inteiro de soldados para nos perseguirem, mas já havia um segundo grupo nos esperando…

— Soldados armados, cavaleiros experientes… Até heróis eles mandaram. — Zhu-Li disse, com uma expressão de cansaço — Cinco deles!

— Heróis… — Murmurei — Eles estão na cidade?

— Os soldados estão, mas os heróis foram embora assim que renderam as forças de defesa da cidade e executaram o magistrado e mais alguns guardas responsáveis pela segurança. — Jairo respondeu.

— O magistrado? — Aquilo me pegou desprevenido — Eu conheci o magistrado de Parva um tempo atrás, o nome dele era Nerii. Também havia um amigo meu cuidando da segurança de Parva, o nome dele é Ladii…

— Ambos mortos! — Disse um jovem, que estava sentado no chão enquanto tratavam de seus ferimentos — Eles conseguiram tempo para a maioria dos habitantes fugirem, quem não saiu está morto… Aqueles dois foram heróis de verdade, não como esses que se dizem ter sido escolhidos pelos deuses.

Aquelas palavras foram pesadas. E a notícia de que aqueles dois haviam morrido me deixou pior do que eu estava. Precisei sentar tomar um copo de água.

Mas as notícias não paravam de piorar. Fui informado de que o primeiro grupo a chegar a Parva, não sabendo da situação, foi atacado impiedosamente. A maioria daquelas pessoas era ex-escravos, sem nenhuma habilidade de combate ou autodefesa.

Dois haviam morrido, e uma estava gravemente ferida. Brogo, que sabia um pouco sobre cura emergencial correu para tentar ajudar. Eu fui logo atrás, me arrastando de cansaço e dor na perna esquerda.

Quando entrei na tenda improvisada, que estava repleta de pessoas feridas, reconheci a pessoa que estava em piores condições. Era Sceno, uma senhora de mais de quarenta anos, aparentemente. Ela era escrava na mesma cidade que Jairo, e foi uma das que ajudou na fuga dele, ateando fogo na cidade.

Durante o período em que ficamos escondidos na estalagem, ela sempre foi como uma mãe para o nosso grupo, cuidava de todos e cozinhava muito bem. Sempre estava sorrindo e dizendo o quão feliz estava de ser livre após uma vida inteira de escravidão. E agora estava ali, em uma maca improvisada, com um ferimento enorme no abdômen.

Brogo tentava fechar o ferimento, acho que ela conhecia alguma magia de cura. Mas, minha pequena companheira estava muito desgastada, ela havia passado por uma aventura cansativa no dia anterior, passou metade do dia cavalgando, e ainda estava tentando salvar uma vida.

Cheguei ao lado de Sceno e peguei em sua mão.

— Não me deixe morrer… Por favor… — Ela disse, quase sem forças.

Aquilo foi doloroso de ouvir. Mas eu não podia fazer nada. Nenhum de nós podia, nem mesmo Brogo estava conseguindo impedir que o sangramento continuasse. Só nos restou assistir seus últimos minutos em silêncio.

Um sentimento ruim dentro de mim, dizia que não podíamos salvá-la. Senti um gosto amargo na boca, um nó na garganta, um aperto no peito, e muito ódio na minha alma. Mas a tristeza em meus olhos era maior do que tudo isso.

Até mesmo os mais bravos guerreiros, como era o caso de Zhu-Li, estavam chorando. Não julgo, eu também estava… 

Brogo deu uma arfada de cansaço e caiu para o lado, com seu corpo em exaustão. Entendemos que ali ela tinha encontrado o seu limite, era o momento de dar adeus a Sceno.

Mas nenhum de nós conseguiu dizer uma palavra que fosse.

— Adeus crianças… — Ela disse em meio a um sorriso triste — Eu só… queria ser livre… obrigado!

Por que as coisas sempre acabavam assim? Por que as pessoas boas tinham que morrer? Se os deuses eram justos, onde estavam quando o sofrimento se abatia sobre o povo? Ou será que apenas os nobres tinham o direito de serem felizes?

Muitas perguntas passaram pela minha cabeça já meio ferrada.

Mas a pergunta que ficou foi: O que faço agora?

E para essa eu tinha uma resposta.

Matar todos os meus inimigos… E eles estavam bem perto.



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