Volume 6

Cena 4

Piercing aos Quinze [2/3]

 

  1. PARQUE – DIA

A câmera está focada em um campo de beisebol dentro de um amplo parque. O som de crianças brincando ecoa ao fundo, mas ninguém está perto de DAIYA e KOKONE.

Um DAIYA de cabelos pretos está em cima da área do arremessador, enquanto KOKONE se empoleira na base principal, apoiada em um muro. Ela está usando óculos.

A vista panorâmica aos fundos do parque é iluminada por campos brilhantes de trigo dourado.

DAIYA: Vamos lá!

DAIYA arremessa a bola gentilmente, para que seja fácil para KOKONE pegá-la.

Visivelmente tensa, KOKONE se prepara e estende a luva. A bola ricocheteia na luva e rola para longe. Ela corre apressadamente atrás da bola e tenta devolvê-la, mas seu arremesso acaba não alcançando o DAIYA.

Esse ciclo se repete várias vezes.

DAIYA: Você é péssima!

DAIYA ri alegremente enquanto recupera a bola que saiu completamente de seu curso.

KOKONE: Uuh! Sinto muito!

KOKONE de alguma forma consegue pegar a bola, segurando a luva com as duas mãos, mas falha novamente ao tentar devolver a bola para DAIYA.

KOKONE: Daiya... jogar comigo não é chato?

DAIYA: Bom, é verdade que não consigo realmente praticar desse jeito.

Ele pega a bola que vem rolando em sua direção.

DAIYA: Mas não faz mal!

KOKONE: Mas eu não consigo jogar muito forte... e meus arremessos sempre vão para o lado errado...

KOKONE arremessa a bola para longe novamente, e DAIYA vai atrás dela.

DAIYA: Você pode arremessá-las para onde quiser!

Ele se abaixa para pegá-la.

DAIYA: Eu pegarei todas.

DAIYA sorri, ele realmente quis dizer isso. Mesmo assim, KOKONE não quer depender dele para sempre, então corre até ele para pegar algumas dicas de como jogar corretamente.

KOKONE escuta calmamente enquanto DAIYA explica coisas como técnicas de arremesso e postura adequada. De alguma forma, ele parece estar se divertindo.

KOKONE: Ok, aqui vou eu!

KOKONE arremessa algumas bolas; seu desempenho melhorou um pouco. À medida que o tempo, ela gradualmente vai melhorando.

KOKONE: Vai!

A bola voa diretamente para a luva de DAIYA.

DAIYA: Você conseguiu.

DAIYA sorri.

KOKONE: Eu consegui.

KOKONE sorri.

  1. PARQUE – UMA NOITE DE INVERNO

O cabelo de DAIYA está tingido e sua orelha direita perfurada. Ele está arremessando uma bola de beisebol furiosamente contra um muro de concreto.

Toda vez que a bola bate na parede, ouve-se um baque surdo ruidoso. Não há ninguém apanhando seus arremessos; ele está sozinho. Os campos de trigo foram ceifados.

DAIYA: ...Hah...hah...

Ele se prepara e arremessa. Por ter colocado muita força no arremesso, a bola voa alto, direto para a cerca sobre o muro, e fica presa. Não há como recuperar a bola.

DAIYA fica parado em silêncio, encarando-a.

KOKONE (Monólogo): A pureza é

KOKONE (Monólogo): bela

KOKONE (Monólogo): frágil

KOKONE (Monólogo): e insubstituível.

 

Daiya Oomine - 11/09 SEX 22h50min

Estou no meu limite.

Um alarme está tocando em minha cabeça, como um alerta de terremoto.

Na tela, posso ver Kokone Kirino antes de tingir seus cabelos, e meu antigo infantil e ingênuo eu.

Eu estava preparado.

Estava preparado para o que “Piercing aos Quinze” ia me mostrar. Mas estar preparado não significa estar prevenido; a dor que sinto ao assistir persiste.

— Ah.

Eu vou.

Eu vou.

…Eu vou.

É como se uma força hostil estivesse me prendendo ao meu assento com lâminas afiadas. A coloração do mundo mudou, manchada com uma cor lamacenta chamada realidade.

Tenho a sensação de que o mundo inteiro está contra mim. Toda a hostilidade à qual me acostumara está me consumindo mais uma vez. O mundo no filme é tão belo que a diferença, a sujeira, do mundo de hoje se sobressai totalmente, crua e terrível.

Ah.

Quero desmaiar.

Quero me livrar dessa tortura.

— Mestre Daiya.

Minha consciência está quase se desvanecendo quando é puxada de volta à realidade por uma voz que me chama com um título desagradavelmente exagerado.

Lutando contra o estupor que o “Cinema” impõe em mim, me recomponho e viro minha cabeça em direção à voz. Uma mulher desconhecida está próxima à entrada do cinema, de pé. Embora não consiga reconhecê-la imediatamente por causa de meu estado enfraquecido, rapidamente percebo quem ela é. Seu rosto não é muito familiar, mas, entre os meus [servos], apenas os mais fanáticos me chamam de “mestre”.

Não é, contudo, a aluna de ensino fundamental fanática que encontrei em Shinjuku há algum tempo; Ela não é minha única adoradora fanática. Ah, agora me lembro. A mulher que está vindo em minha direção é uma estudante universitária que tentou cometer suicídio repetidamente. Como os outros fanáticos, ela equivocadamente experimentou uma teofania quando usei a “Shadow of Sin and Punishment” nela.

Ironicamente, alguém tão impuro é a única coisa que pode me acalmar agora. Provavelmente, é por que ela me lembra da realidade que vivenciei, a qual é o oposto da cena calorosa mostrada no filme. Que terrível, alguém tão horrível quanto ela me ajudando a me recompor.

— Qual é o problema?

Mesmo que minha dor de cabeça e náusea continuem me atormentando, eu me recomponho o bastante para me lembrar da tarefa que dei a ela. Mandei-a observar o Kazu.

Para a minha outra fanática, a aluna do ensino fundamental, dei uma [ordem] para que usasse a Mogi para forçar o Kazu a vir aqui… e que quebrasse alguns dedos da Mogi, se necessário. Ao mesmo tempo, também [ordenei] a esta universitária que seguisse a aluna do fundamental secretamente. Eu estava certo de que o Kazu estaria ocupado demais lidando com a Mogi e com a primeira fanática para detectar a presença de outro de meus [servos]. Também [ordenei] que entrasse na “Wish-Crushing Cinema” em seguida, para reportar suas descobertas.

A universitária se aproxima de mim e se ajoelha, como uma escrava fiel. Dá pra ver que está nervosa.

Chego à conclusão óbvia:

— A ameaça falhou?

— Sim.

Isso é natural, considerando o poder que o Kazu obteve. Dei aquela [ordem] antes de falar com “O”, e desde então descobri sobre o poder do Kazu de destruir “caixas”. Então, eu já havia desconsiderado esse ataque.

Entretanto, não esperava tal continuação da mensagem:

— Mas isso não é tudo; ele deduziu os seus planos!

Incapaz de engolir a mensagem dela, franzo o rosto.

— O que você quer dizer? O quanto ele sabe?

— Ele sabe que seu objetivo é apagar as memórias de Aya Otonashi, Mestre Daiya!

Como isso é possível? Nem preciso dizer que não falei desse plano fora da “Wish-Crushing Cinema”, portanto, não tem como isso ter vazado.

— Se alguém contou a ele... talvez tenha sido “O”? …Não, é pouco provável que ela tenha feito isso depois de dizer que Kazu é inimigo dela. Então isso deixa…

— Perdão, mas quem revelou o plano foi Kasumi Mogi.

— Mogi?

Mogi sabe o que está acontecendo dentro do “Cinema”? Como isso é possível?

Considero minha pergunta por um momento e chego a uma resposta imediatamente. Viro-me para minha direita. A fonte do vazamento; a garota que considerei estar completamente fora do jogo.

— Yuuri Yanagi.

— Hein? Sim? — diz ela, arregalando os olhos. Parece completamente ignorante.

Mesmo assim, pouco a pouco, estou começando a entender sua encenação.

— Shindou compartilhou o poder dela com você? Sem minha aprovação? — digo, tendo compreendido a situação.

Yanagi não se dá ao trabalho de tentar disfarçar, em vez disso, mostra um sorriso contente.

— Hihihi — ri ela discretamente, logo antes de sua expressão se tornar completamente gélida. — Não posso fazer nada se você descobriu. Sim, você está certo. E Kasumi-san é minha única [serva] — admite ela.

Sua atitude provocativa faz com que a universitária ao meu lado a encare com o rosto transbordando de inimizade. Sinalizando com a minha mão para que a fanática se mantenha afastada, continuo conversando com a Yanagi.

— Você esqueceu que minha vitória irá te ajudar a se aproximar do Kazu ou o quê?

— Hein? Do que você está falando? Eu disse isso antes, mas por que me submeteria a alguém que já me matou? Fico enjoada com o fato de que você parece pensar que pode controlar uma garota dessa maneira, então, pode me fazer o favor de queimar até a morte?

Essa garota não tem limites.

Com o poder da minha “caixa”, posso estimular sua “Sombra do Pecado” e atormentá-la o quanto quiser; posso mandá-la fazer o que eu quiser. Apesar disso, ela ainda encontra maneiras de me desafiar. Espero por suas próximas palavras, já planejando atormentá-la com sua “Sombra do Pecado” quando ela terminar.

No entanto…

Brincadeirinha — diz ela, sorrindo.

— O quê?

— Só estou brincando, Oomine-san! Por favor, não fique irritado. As coisas não são como parecem… estou te ajudando, como prometi.

Eu definitivamente não posso confiar nela, mas decidi deixar de lado a ideia de atormentá-la por enquanto e investigar suas verdadeiras intenções.

— Está dizendo que meu plano vazar me ajuda?

Parece uma desculpa esfarrapada.

Todavia, Yanagi responde, absolutamente convicta:

— Sim!

Que atitude é essa?

Yanagi não é estúpida. Ela deve estar perfeitamente ciente de que, como um [mestre], estou praticamente segurando uma faca contra o pescoço dela. Como ela pode estar tão confiante de que não vou usar essa faca?

— Apenas imagine como o Kazuki-san reagiria se descobrisse que você está tentando apagar as memórias da Otonashi-san.

Finalmente entendo aonde ela quer chegar.

— Então você está me dizendo que o que você fez foi —, presumo, — uma armadilha para atrair o Kazu para dentro da “Wish-Crushing Cinema”?

Yanagi assente de forma lenta e estressante.

— Sim. Você não concorda que essa é a melhor ameaça? Não há porque fazer algo tão horrível quanto quebrar os dedos da Kasumi-san!

Aquela estratégia envolvendo a Mogi era apenas uma distração, uma contramedida contra “O”, já obsoleta. É compreensível que Yanagi a considere uma escolha ineficaz.

— Otonashi-san. O Kazuki-san virá, certo? —pergunta ela, virando-se para Aya, em busca de confirmação.

Aya, que se manteve fora da nossa conversa até agora, responde:

— Sim… sem dúvida.

O que ela diz pode ser encarado como fato.

— Está vendo, eu te ajudei, Oomine-san!

Graças à Yanagi, Kazu está vindo para cá.

Nós vamos nos confrontar diretamente. Caramba…, penso em silêncio, obrigado por tirar esse peso das minhas costas. Não é como se eu não tivesse considerado usar meu plano de apagar as memórias da Otonashi para ameaçá-lo; eu estava bem ciente de que poderia trazer o Kazu até aqui dessa maneira.

Mas por que eu assumiria tal risco?

Se souber das nossas intenções de antemão, ele pode planejar seu contra-ataque mais efetivamente… a probabilidade de ele impedir nosso plano aumenta. Isso fica ainda mais preocupante sabendo que ele possui a esmagadora habilidade de destruir “caixas”.

Se Yanagi queria me ajudar, ela deveria ter pensado em uma estratégia completamente diferente e repassado essa estratégia à Mogi. Deixando isso de lado, é surpreendente ela ir tão longe para separar o Kazu da Otonashi…

— O Kazu te odiaria por isso.

— É claro que não! Do que você está falando? —responde ela, casualmente. — Afinal de contas, eu tentei tudo o que podia para te impedir de machucar a Kasumi-san e, além disso, revelei seu plano a ele, não foi? Na verdade, ele tem razões para me agradecer, e nenhuma para me odiar, com certeza.

…Do que ela está falando? Mas agora que penso sobre isso… ela está certa. Do ponto de vista do Kazu, a escolha da Yanagi de revelar o meu plano a faz parecer uma aliada. Também é verdade que ela tentou proteger a Mogi. Essa garota está realmente assumindo o papel que o Kazu deu a ela.

Ela está planejando suas ações cuidadosamente, para manter sua posição favorável aos olhos dele.

— Que grande ajuda…

Suas ações também servem para se proteger. Agora que o Kazu sabe que estou tentando apagar as memórias da Aya, ele perceberá que a Yanagi é um alvo provável para a “Flawed Bliss”; sua resposta natural será tentar prevenir isso… ou seja, encontrar uma maneira de proteger a Yanagi.

O que a Yanagi fez foi aumentar as chances dela de ser salva.

— Bom, você pode até achar isso, Yanagi, mas acaba de cavar sua própria cova…

— Hã? — ela murmura, arregalando os olhos.

Agarro a “Sombra do Pecado” dela.

— Ah… AAAH!!

Novamente, ela está experimentando a culpa pelos assassinatos que cometeu dentro da “Game of Idleness”.

— AAAAAAAH! AAAAAAAAAAAH!!

Não tem como suportar essa dor.

— Eu considerava necessário usar a “Flawed Bliss” diante dos olhos do Kazu para causar um impacto massivo, mas a história é diferente se ele sabe que vou apagar as memórias da Otonashi e sabermos que ele está vindo. O Kazu saberá o que aconteceu se ele chegar e a Otonashi já tiver perdido as memórias. Ao confrontá-lo dessa maneira, destruiremos a determinação dele.

Yanagi cai de seu assento.

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHH!

— Alegre-se, suas ações causaram a ruína do Kazu. Agora, desespere-se e implore pela “Flawed Bliss”.

Seu pecado é assassinato. Yanagi pode ser astuta, mas, no fundo, ela é uma boa pessoa… pura, o oposto de um criminoso. Não há como ela suportar um pecado tão pesado.

E mesmo assim…

— …Eu me recuso. — Ela solta essas palavras, me surpreendendo. — Eu me recuso. Fazer isso seria o mesmo que ser derrotada pela “Game of Idleness”. Não há dúvidas de que sou um monstro por fazer o que fiz, mas aquelas ações foram inevitáveis. Não havia outra forma de sobreviver. Se eu não tinha outra escolha… não importa o que é certo e o que é errado… só tenho que aceitar.

— Pare de falar merda, assassina.

— Calado! Não vou desperdiçar os esforços dele. O Kazuki-san me visitou todo santo dia quando me tranquei em casa e pacientemente me explicou que eu não tinha outra alternativa. Ele me perdoou. Então não importa o quão dolorosos eles sejam, não vou perder para os meus pecados… não vou!

— Por quanto tempo você será capaz de continuar dizendo isso?

Não importa o que diga, ela não conseguirá suportar por muito tempo. Só preciso esperar até que comece a implorar por piedade.

Entretanto:

— Pare, Oomine! — Aya grita. — Não usarei a “Flawed Bliss” se você forçar alguém a pedir por ela!

Largo a “Sombra do Pecado” da Yanagi.

— Não ouse fazer isso de novo! Certo, me decidi: absolutamente não usarei minha “caixa” se você fizer alguém sofrer por ela!

Ela está completamente séria. E então, Yanagi escapa de sua dor.

— Uh… aah… aah… — resmunga Yanagi, enquanto me encara com os olhos cheios de lágrimas. — …Uh… haha… ouviu isso…? Ela não vai usá-la da forma que você quer… bem feito!

Com o que resta de sua força, ela sobe em seu assento e desmaia, completamente imóvel, na mesma posição em que caiu. Ela sussurra:

— Kazuki-san…

Apelando pela simpatia do Kazu mesmo que ele não esteja aqui?... De qualquer forma, agora eu entendo: Yanagi contou meus planos a ele porque quer me impedir.

— Tch, vadia estúpida…

É uma pena. Meu plano teria funcionado perfeitamente se eu tivesse a convencido… Ou foi por causa do Kazu que ela conseguiu resistir ao poder da minha “caixa”? Porque Kazu enfrentou a “Game of Idleness” e pacientemente ajudou a Yanagi a se recuperar, também?

Uma onda de exaustão invade meu corpo. Desabo no meu assento. Enquanto isso, a garota fanática ainda está em uma posição entre de pé e ajoelhada, olhando-me de forma preocupada.

Ela está me dando nos nervos.

— Suma.

— Hã?

— Suma da minha frente.

Ela parece infeliz, mas, já que confia completamente em mim, jamais desobedeceria minhas ordens. Ela se levanta e deixa o cinema, como ordenado.

Cena após cena, o filme continua a rodar.

Logo terei que assistir a Rino queimar as costas da Kiri com cigarros.

 

 

Certo, minha vantagem foi anulada pela Yanagi. Minha dor de cabeça e náusea estão piores e estou ficando cada vez mais fraco, mas preciso organizar minhas ideias e lidar com a situação mesmo assim.

Com as mãos na minha cabeça, tento rever meus planos. Minha situação ficou pior depois do fim de Repetir, Recomeçar, Recomeçar. Ocorreram cinco mudanças das quais tenho conhecimento:

  • “O” não é mais aliada do Kazu.
  • Kazu obteve o poder de destruir “caixas”.
  • Eu percebi que Kokone Kirino é a “portadora” da “caixa” em que estou.
  • Kazu está vindo para cá.
  • Aya não usará a “Flawed Bliss” se eu forçar alguém a pedir por ela.

Considerando as novas informações, preciso mudar minhas táticas. Originalmente, planejava destruir a determinação do Kazu; destruir sua determinação e forçá-lo a abandonar a “Wish-Crushing Cinema”.

Eu estava errado. Mesmo que conseguisse derrotar o Kazu, ainda seria derrotado, porque Kiri continuaria em poder do “Cinema”. Mesmo assim, ainda é necessário destruir a determinação do Kazu; é absolutamente necessário neutralizar seu poder destrutivo.

As seguintes condições são suficientes para alcançar minha vitória:

  1. Trazer a “portadora” do “Cinema”, Kokone Kirino, para cá antes do fim do dia onze de setembro e fazer com que ela abandone sua “caixa”.
  2. Destruir a determinação de Kazuki Hoshino antes que ele possa encostar no meu peito. Realizar isso fazendo com que Aya use a “Flawed Bliss”, o que fará com que perca suas memórias sobre Kazuki Hoshino.

Que droga é essa? Como posso alcançar essas condições?

Para começo de conversa, como eu deveria trazer a Kiri até aqui? Como deveria fazer com que ela abandone sua “caixa”? Como posso persuadi-la, quando o propósito de sua “caixa” é exclusivamente destruir a minha? Não tem como eu mudar crenças firmemente enraizadas de alguém em apenas uma hora. Em vez disso, preciso encontrar uma maneira de destruir a “caixa” dela à força.

Mas não tenho como fazer isso. É impossível.

Além disso, como eu posso fazer com que a Aya use a “Flawed Bliss”? Serei forçado a trazer um amigo do Kazu até aqui que, além de tudo, precisa estar interessado em usar a “Flawed Bliss”. Mesmo que eu consiga fazer isso, duvido que essa pessoa seja capaz de tomar a decisão de aceitar a “Flawed Bliss” tão rápido, o que dará ao Kazu a oportunidade de destruir minha “Shadow of Sin and Punishment”. Afinal de contas, ele só precisa tocar no meu peito.

Impossível.

A menos que haja uma possibilidade de eu controlar as ações de Aya Otonashi, minha vitória será impossível.

...

Espere.

Ah, então, seria essa a solução?

Só há uma condição necessária para a minha vitória.

E ela é…

 

transformar Aya Otonashi em minha [serva].

 

Só há uma maneira de me livrar da “Wish-Crushing Cinema”… usar o poder do Kazu para destruí-la. Posso dar [ordens] até mesmo para fazer alguém suicidar. Se eu ameaçasse fazer com que a Aya cometesse suicídio, Kazu não teria escolha a não ser me obedecer e esmagar a caixa da Kiri.

Eu seria capaz de forçar Aya a usar a “Flawed Bliss” com uma [ordem] e derrotar o Kazu apagando as memórias dela diante de seus próprios olhos. Se eu transformar Aya Otonashi em minha [serva], posso alcançar minhas duas condições de vitória.

Contudo.

— Não tem como eu fazer isso… — sussurro, enquanto assisto Kiri se debatendo desesperadamente contra seus agressores na tela.

— Pare! Po-por que você está fazendo isso comigo, Rino?!

Aya Otonashi é conhecida por sua determinação de ferro. Não tem como ela se tornar uma [serva]. Sequer pensar sobre tomar esse rumo é uma perda de tempo.

— NÃÃOOOOOOOOOOO!

Minha resistência diminui quando ouço o grito que ecoa pelos autofalantes, corroendo meu coração. Tento tocar um dos meus piercings e falho. Não consigo nem sequer reunir forças para erguer minha mão até minha cabeça.

Fim.

Fim.

Fim.

Fim.

Fim.

Termine de uma vez! Merda!

— Já…

Já é o bastante.

Hora de desistir.

Hora de desistir de tentar construir meu mundo ideal com minhas próprias mãos.

— Devo matá-los?

Devo matar Kazuki Hoshino e Kokone Kirino?

É possível, se eu usar meus [servos].

Se eu o fizer, posso eliminar tanto a “Wish-Crushing Cinema” quanto o poder do Kazu de destruir “caixas”.

Eu sei. Minha mente irá se despedaçar se eu o fizer. Já estou no meu limite; não há dúvidas de que vou quebrar.

Entretanto, não serei capaz de manter minha sanidade por muito mais tempo. Preciso encontrar alguém que aceite minha responsabilidade, antes que seja tarde demais; preciso dar o poder da “Shadow of Sin and Punishment” a alguém que seja capaz de usá-la.

Até a Shindou foi derrotada. Ela parecia ser uma pessoa capaz de adotar meus objetivos, mesmo que de uma forma relativamente distorcida, mas perdeu sua habilidade de usar a “Shadow of Sin and Punishment”.

Meus seguidores fanáticos estão fora de questão. Eles só servem para obedecer a um líder, não para dar [ordens]. Tento me lembrar dos rostos de todos os meus [servos], mas não parece ter alguém que serviria para o meu propósito.

Não há ninguém disposto a se sacrificar por um mundo melhor.

Simplesmente ninguém.

Tal pessoa…

Tal poço de esperança…

Uma pessoa que adotaria meus objetivos como seus simplesmente…

— ...existe, afinal de contas.

 

Apenas uma.

Existe uma única pessoa que, na verdade, pode ser muito mais capaz que eu.

A garota que declarou ser uma “caixa” e abandonou tudo pelo seu objetivo.

 

Aya Otonashi.

 

No momento em que percebo isso, tenho um lampejo de inspiração.

É como jogar as peças de um quebra cabeça no chão e ver todas elas de alguma forma se juntarem espontaneamente e formarem a imagem completa. Embora isso soe ridículo, minha situação inteira realmente se tornou clara dessa forma.

Me levanto. Até um segundo atrás, estava tão sem energia que não conseguia nem tocar meus piercings, mas quem se importa? Opondo-me à força esmagadora da “Wish-Crushing Cinema”, viro-me para encarar Aya.

Eu me sinto tão mal que me preocupa a possibilidade de vomitar sangue quando tentar falar. Uma poderosa tontura está mexendo com meu senso de equilíbrio, fazendo com que eu não consiga ficar em pé direito.

Porém, antes que eu possa perceber, começo a sorrir.

— Aya, você sempre quis uma nova “caixa”, certo? E esteve correndo atrás de “O” e dos “portadores” para conseguir uma… tudo para realizar seu “desejo”.

Aya franze o rosto.

— Também foi por isso que você gastou uma vida inteira dentro da “Rejecting Classroom”, e ficou com o Kazu porque ele atrai o interesse de “O”. Você devotou sua vida toda a esse objetivo e continuamente se esforçou para completá-lo. Você existe unicamente para completar esse objetivo.

— Sim, certo. Qual o seu ponto?

Na verdade, seus esforços são fúteis; Não há possibilidade de Aya obter uma “caixa” ideal. É por isso que ela nunca compreende o que “O” realmente é e continua lutando contra ela.

Sua “Flawed Bliss” tenta permanecer falha. Mas isso é porque ela está lutando sozinha. E se houvesse alguém com quem ela pudesse dividir seu fardo? E se ela encontrasse uma alma gêmea?

— Alegre-se.

E se houvesse alguém que, coincidentemente, tivesse uma “caixa” similar?

— Seu desejo está prestes a se realizar.

Aya percebe que estou falando sério e me encara de perto.

— Onde está? Onde está a “caixa” que estou procurando?

A “Flawed Bliss” e a “Shadow of Sin and Punishment” são similares.

Ambas foram criadas sob fortes crenças e, mesmo assim, são frágeis e frias de diversas maneiras. Ao mesmo tempo, podem ser usadas para quase qualquer propósito.

Sempre achei que eram parecidas.

— Está bem aqui — digo, apontando para o meu peito. — A “Shadow of Sin and Punishment” é a “caixa” que você procura.

Certo, com minha “caixa”, ela pode finalmente escapar dessa armadilha de “falhas” em que está presa.

Aya esteve me observando com os olhos arregalados o tempo todo. Ela agora está com os olhos voltados para o chão, balançando a cabeça.

— Você não percebe o quão sem sentido você soa? Sua “caixa” não é o que eu procuro. Uma “caixa” que sacrifica os outros está longe do meu ideal; na verdade, é o completo oposto. O que você fez com a Yanagi mais cedo é prova disso.

— Isso é porque sou eu quem a está usando — argumento, atraindo seu olhar novamente. — Você está certa; quando a uso, minha “caixa” cria sacrifícios, porque é assim que eu estava tentando mudar o mundo. Contudo, não preciso dizer que você pode fazer muito mais do que apenas criar “Cães Humanos” com esse poder. Em sua essência, é um poder para controlar as pessoas. Não, descrever dessa forma dá a ela uma conotação negativa.

Em suas palavras…

Olho no fundo de seus olhos cheios de determinação e digo:

— …Ela tem o poder de guiar as pessoas.

A expressão dela muda.

Ah, assim como eu esperava. Ela está interessada nessa “caixa”.

— Ela tem o poder que você está procurando — digo com convicção. — O poder de guiar as pessoas à felicidade.

— Não pode ser… mas, mas…

Enquanto tenta negar com raciocínios vazios, ela mesma já percebeu…

Que estou falando a verdade.

Que essa é a “caixa” pela qual ela esteve procurando.

Ando em direção à Aya Otonashi.

Esse tempo todo, o estupor gerado pela “Wish-Crushing Cinema” continua me incomodando. Além disso, sinto minhas “Sombras do Pecado” me devorando a cada passo que dou. Estou balançando para frente e para trás enquanto caminho, mantendo o equilíbrio me apoiando nos assentos do cinema ao caminhar em direção à Aya.

— Hehe.

Embora me sinta muito mal, não consigo suprimir o prazer que está surgindo dentro de mim.

Afinal de contas, finalmente encontrei a resposta.

Desde o momento em que obtive a “Shadow of Sin and Punishment”, estive preparado para dar minha vida para usá-la. Eu estava preparado para ficar louco em um futuro próximo e sofrer uma morte vergonhosa.

Por causa de sua natureza, essa é uma “caixa” feita para ser herdada. Mas quem deveria ser meu sucessor? Talvez eu sempre soube a resposta. Afinal de contas, não a defini como minha fonte de esperança mais cedo?

Embora não saiba se é porque nós trabalhamos juntos na “Rejecting Classroom” ou se é simplesmente porque percebi seu transcendentalismo, estou certo de que alguma parte do meu cérebro já havia decidido para quem essa “caixa” eventualmente seria herdada desde que a obtive.

Se isso for verdade, então a “Shadow of Sin and Punishment” é, na realidade…

 

Uma “caixa” feita para ser passada à Aya Otonashi.

 

— Ha, ha…

Finalmente alcanço seu assento. Embora esteja visivelmente hesitante, ela não demonstra qualquer sinal de querer fugir.

— Levante-se, Aya.

Ela está me observando.

— Levante-se e aceite a “caixa” pela qual você esteve procurando!

Alguns segundos se passam.

No entanto, Aya finalmente se levanta.

Ela se levanta, sabendo muito bem o que estou prestes a fazer. A luz da tela faz com que ela projete uma pequena sombra. Olho-a nos olhos. Não há mais qualquer sinal de hesitação neles. Ela já se preparou para aceitá-la.

— Muito bem.

Sou eu quem precisa aceitá-la primeiro.

— Mostre-me seus pecados, Aya Otonashi!

É o que digo ao pisar na sombra dela.

— Ah.

Piso na sombra e vejo um pecado.

O pecado de Aya Otonashi… não, o de Maria Otonashi.

Isso é,

Isso é…

……

…………

………………………

Eu caio.

Desmaiei momentaneamente.

Também gritei? Não, acho que nem fui capaz de fazer isso, não é?

Reflito sobre a memória que acabei de ver.

Não foi o mais grotesco dos mil pecados que já vi, nem o mais cruel. Mas o quão grotesco e coisas do tipo são diferentes da dor que acompanha cada pecado; o nível de dor que eu sinto é o nível de dor que a pessoa sentiu subjetivamente no momento de seu pecado, e não tem nada a ver com a crueldade dele.

Então foi esse o dano que Aya Otonashi sofreu naquele momento?

É uma dor penetrante, como se mil facas tivessem atravessado meu coração, meus olhos tivessem sido esmagados com alicates, meus dedos tivessem sido arrancados um por um, meus órgãos tivessem sido jogados em um liquidificador, pregos tivessem sido martelados em cada poro do meu corpo, e, além disso, cada polegada do meu corpo estivesse em chamas.

O pecado dela é como ferro derretido que transformando meu corpo em uma massa disforme. Que merda é essa? Não consigo fazer minhas mãos pararem de tremer violentamente, e meus olhos ainda estão arregalados pelo choque.

Ela…

Ela esteve carregando esse peso esse tempo todo?

— Gah!

Enquanto me esforço para continuar de pé, olho para Aya Otonashi. Para torná-la uma [mestra], primeiro preciso temporariamente torná-la uma [serva]. Para fazer isso, preciso engolir sua “Sombra do Pecado”.

E, se eu fizer isso, Aya irá reviver seu pecado. Mas será ela capaz de suportar a dor? Independente disso, não tenho intenção de recuar. Não estou em posição de hesitar.

— Aqui vamos nós.

Seguro a “Sombra do Pecado” dela, que eu havia absorvido quando pisei em sua sombra, e a engulo. Aya fica rígida e coloca a mão no peito. Mas isso é tudo que ela faz. Não consigo esconder minha confusão.

— Como você pode estar bem?

Aya está de pé, sem problema algum.

— Não estou.

Olhando mais de perto, posso ver suor frio correndo pelo seu rosto. Ela está rangendo os dentes em angústia. Mas, como alguém que perdeu a consciência após entrar em contato com o pecado dela, é difícil acreditar que essa é toda a sua reação.

— Como você consegue ficar de pé? Você não deveria ser capaz de suportar isso. Eu senti em primeira mão… tenho certeza.

— A menos que eu esteja errada, sua “caixa” força as pessoas a se relembrarem de seus pecados? — Aya pergunta. Ela está me encarando, sua determinação de ferro brilhando em seus olhos, mesmo enquanto pérolas de suor percorrem seu rosto.

— Sim, então deveria ser impossível você suportar seu pecado ao ser confrontada por ele tão repentinamente.

— Não é repentinamente.

— O quê?

Aya tira a mão do peito e recupera o fôlego. Ela praticamente está pronta para a luta de novo.

— Eu suporto essa dor o tempo todo. Já me acostumei com ela.

Ela não está fazendo sentido.

Se eu aceitasse o que ela acabou de dizer, isso sugeria algo absurdo. Minha “caixa” faz as pessoas se relembrarem de seus pecados, ou os sentimentos que tiveram no momento em que os cometeram. Pecadores normalmente bloqueiam memórias dolorosas de suas vidas para poderem viver com alguma paz de espírito. Mas e se Aya não fizer isso? E se ela não tiver esquecido daquele trauma nem por um segundo?

— Estou sempre consciente do meu pecado.

Então, ela teria se acostumado a essa angústia infernal, e isso se tornaria apenas mais uma parte de seu cotidiano. Se Aya sempre conviveu com essa dor, não tem como ser surpreendida ao ser confrontada por ela.

— Eu não serei perdoada. É por isso que…

Mas, hã? Como um ser humano pode viver dessa forma?

Não… eu entendo.

Foi por isso.

— É por isso que… não posso viver como humana.

 

Foi por isso que ela pôde se tornar “Aya Otonashi”.

 

Ela está sempre consciente de que pecou. Ao se recusar a esquecer de seu pecado, continua se punindo. Essa é a maneira ética de se lidar com pecado e punição.

Foi isso que a privou de sua humanidade e a transformou em uma “caixa”… em “Aya Otonashi”. Suprimindo agressivamente seu verdadeiro eu, ela pode se focar em um único “desejo”. Ela pode se devotar inteiramente a um único objetivo.

Pelo bem da felicidade de todos os outros. Ela suscita sentimentos de respeito, inveja, encanto e veneração. Ela é a encarnação do triste fim que aguarda um verdadeiro “portador” no fim de seu caminho.

Mas é exatamente por isso que não há ninguém mais adequado para receber meu poder.

 

Aya Otonashi.

Por favor, continue vivendo, mesmo com todo sofrimento, pelo bem do nosso “desejo”.

 

Desculpe Kazu, mas eu definitivamente me recuso a devolver “Maria Otonashi” a você. Definitivamente me recuso a permitir que você esmague nosso “desejo”.

— Eu te darei meu poder. Eu te darei todas as “Sombras do Pecado” que possuo.

Dar a ela minhas “Sombras do Pecado” não tem efeito direto em mim. Ainda posso controlar meus [servos]. Minha missão, entretanto, mudou. Meu maior objetivo é me livrar de Kazuki Hoshino, o homem que possui mais influência sobre ela do que qualquer outro, e seu poder de destruir “caixas”. Devo auxiliá-la enquanto vive pelo nosso “desejo”.

— Está preparada? —pergunto, mas Aya está me ignorando. Ela está olhando diretamente para frente.

— Sempre tentei imaginar — sussurra ela. — Como eu poderia ajudar as pessoas a serem felizes; que tipo de “caixa” precisaria. Felicidade não é algo que eu possa simplesmente criar e forçar neles. Nem algo que pode ser obtido jogando-os em um paraíso e os libertando de suas ansiedades e preocupações. Finalmente, cheguei à conclusão de que uma felicidade sem falhas só é possível quando você visualiza e caminha em direção a sua própria forma ideal de felicidade. — Ela cerra os punhos, imponente. — O poder de guiar as pessoas era o que eu precisava — diz, emocionada. — Não consigo acreditar que era só mudar um pouco minha perspectiva para perceber isso.

Finalmente, ela olha para mim.

— Oomine, eu não considerava muito o fato de estarmos voltados para a mesma direção, mas mudei minha opinião. Você me mostrou que maravilhas como essa são possíveis… entendo, então é isso que significa sermos almas gêmeas.

— Almas gêmeas… sim — assinto e repasso minhas “Sombras do Pecado”.

Pensando nisso, uma ideia passou pela minha mente quando dei algumas “Sombras do Pecado” para a Shindou: uma pessoa verdadeiramente forte pode ser capaz de permanecer inalterada ao engolir as “Sombras do Pecado” de outras pessoas; em contrapartida, isso pode me fazer perder a confiança na minha capacidade de liderar.

— Hum…

Aya Otonashi suportou facilmente as 998 “Sombras do Pecado”. Portanto, ela se tornou uma [mestra] e, como eu havia planejado originalmente, minha 999ª [serva].

— Oomine — diz a nova “portadora” da “Shadow of Sin and Punishment” — Obrigada.

Entretanto, nenhum sinal de felicidade aparece em seu rosto robótico.

 

 

Após me apoiar repetidamente nos assentos do cinema, finalmente encosto minhas costas trêmulas no meu assento. De repente, o estupor me ataca de uma vez e me esmaga, como se jogasse um enorme peso sobre meus ombros, livrando-me do meu desejo de me mover.

Mesmo assim, não posso desligar minha mente ainda. Agora que Aya se tornou uma [serva], só há um último obstáculo para alcançar minhas condições de vitória. Ou seja, trazer a Kiri — a “portadora” da “Wish-Crushing Cinema” — para cá. E quando ela chegar, só terei que ameaçar o Kazu e o fazer esmagar a “caixa” dela.

 

— Kokone, eu te amo!

Minha voz ressoa pelos autofalantes do cinema, e não posso conter minha reação. Por algum tempo, estive olhando para a tela, onde minha versão mais nova está chorando enquanto abraça Kiri na sala de aula. Contudo, Kiri apenas permanece ali, rígida, com os braços pendendo como os de um fantoche. Meu eu mais novo repete seu lamento:

— Kokone, eu te amo!

Foi assim que eu a atormentei. Eu a atormentei tentando expressar meus verdadeiros sentimentos. Lágrimas apareceram em seus olhos vazios. Mas meus sentimentos não a alcançaram na forma de amor sincero; pelo contrário, eles pareceram o produto de uma mente doentia e obcecada.

— …Você não pode me abandonar quando eu te amo tanto!

Para ela, minhas palavras devem ter soado como… uma ameaça a proibindo de mudar, forçando-a a manter sua identidade como a garota que ela considerava feia e inútil.

Eu era um cara horrível.

Eu não podia permanecer daquela forma.

Eu tinha que mudar o mundo ao nosso redor.

Precisava mudar as pessoas que fizeram mal a ela, que a mantinham em seu estado atual. Não eram os maus que deviam ser purificados — Rino e seu bando não eram pessoas más — eram os tolos incapazes de pensar por conta própria. Eles apenas veem o que está diante deles, não as consequências de suas ações. Eu precisava corrigir isso. Corrigindo esse erro, tragédias como as que aconteceram com a Kiri não voltariam a se repetir. Kokone Kirino poderia continuar sendo quem era.

Certo?

Por um mundo justo.

Nada mais importa. A minha felicidade e a felicidade da Kiri são irrelevantes.

— Ah.

Entendi.

Só preciso fazer Kokone Kirino usar a “Flawed Bliss”. Seu coração já está partido, então ela certamente a buscará. Se eu usá-la com esse propósito, as memórias de Aya serão apagadas, destruindo a determinação de Kazuki Hoshino.

…Não há algo fundamentalmente errado com esse plano? Não, não há. Certo?

No momento em que pensei em usar a Kiri, também pensei em um plano simples para atraí-la para cá. Não, é realmente simples. Como seu amigo de infância e ex-namorado, é apenas natural que eu possa pensar facilmente em quantos métodos quiser para trazê-la até aqui. De tudo, eu deveria estar refletindo sobre o porquê de não ter pensado nisso antes! Estava secretamente me segurando ou algo assim?

[Ordeno] a um de meus seguidores fanáticos: “Envie um e-mail para o seguinte endereço…” Penso no endereço de e-mail dela, o qual memorizei há muito tempo, “…e escreva nesse e-mail:”

Kiri não viria se eu apenas a mandasse fazer isso.

Porém, ela virá se pensar que estou implorando por ajuda. Ela virá se achar que estou no meu limite. Essa é a natureza dela: ela escolherá minha felicidade em vez da dela. Determino a mensagem mais efetiva para expressar meu pedido de socorro e [ordeno] meu [servo] a mandá-la. Essa terrível mensagem é a mesma fala horrível que apareceu no filme. “Kokone, eu te amo!”

Dito isso…

É.

Estou no meu limite.

 

Kazuki Hoshino - 11/09 SEX 23h02min

— A Maria virou uma [serva]? — repito o que a Mogi acabou de dizer.

— Kasumi… qual é o significado disso? Po-por que Maria-chan iria…? — Haruaki pergunta, erguendo a cabeça, ainda ajoelhado no chão.

— E-eu apenas repeti o que a Yanagi-san me disse, não sei de mais nada…

Como isso pode ter acontecido?

A “caixa” do Daiya não teve efeito quando a Iroha-san pisou na minha sombra; ela deveria ser igualmente ineficiente quando Daiya pisasse na sombra da Maria. A menos que ela a aceite de livre e espontânea vontade.

— O quê?!

De repente, meu celular toca, notificando a chegada de um novo e-mail. Enquanto o abro, ele toca uma segunda vez.

— Ma-mas o quê?

Dada a nossa situação, receber múltiplas mensagens de uma vez só não deve ser um bom sinal. Não conheço o endereço do e-mail do remetente. Tento abrir a segunda mensagem, mas ela contém apenas a letra “E” e, mesmo enquanto a leio, um novo e-mail chega. Seis novos e-mails chegaram de endereços desconhecidos em intervalos de cinco segundos. Todos contêm uma única letra e, organizados cronologicamente, formam o seguinte texto:

M

E

E

S

Q

U

E

Ç

A

A identidade do remetente não poderia ser mais clara.

— Maria…!

Então é verdade. É verdade que ela se tornou uma [serva]. Não, pior ainda.

— Maria deu [ordens] para pelo menos nove pessoas diferentes…

Maria se tornou uma [mestra].

— Por que… as coisas acabaram assim…?

No entanto, outra mensagem chega enquanto ainda estou completamente confuso. O remetente é novamente um endereço de e-mail desconhecido, mas, desta vez, a mensagem contém mais de uma letra.

“Assista ao noticiário”

Com a respiração acelerada, abro o aplicativo de televisão do meu celular. Imediatamente descubro ao que ela estava se referindo. O apresentador recita o seguinte texto:

Últimas Nóticias: Katsuya Tamura, uma vítima do fenômeno dos “Cães Humanos”, acaba de recobrar sua consciência. Esse é o primeiro caso de recuperação conhecido. Segundo o pronunciamento da polícia, Tamura-san foi colocado em prisão preventiva. Ele está calmo e não mostra sinais de confusão. Além disso, afirma não ter memórias de seu tempo como um “Cão Humano”, e também afirma que matou seus pais e que está disposto a aceitar qualquer forma de punição... Acabamos de receber novas notícias. Yasumi Ishikawa, outra vítima do fenômeno, também acaba de recobrar sua consciência e…

O que está acontecendo? Por que o Daiya libertaria os “Cães Humanos” justo agora? Ele não pretende fazer as pessoas do mundo reconsiderarem seus valores ao produzir “Cães Humanos” em massa? Libertá-los agora não faz com que todos os seus esforços até agora se tornem inúteis?

Ou é a Maria quem está fazendo isso? Mas então por que o Daiya está permitindo? A primeira razão que se pode imaginar é que a Maria tomou o controle da “Shadow of Sin and Punishment”!

— Meu Deus do céu…

Isso é possível?

Maria realmente quis a “Shadow of Sin and Punishment” por vontade própria? Maria se tornou uma [serva] e uma [mestra] com o intuito de usar esse poder como quiser? Se isso for verdade, então por quê?

— Não, isso…

É claro como o dia. Se isso for verdade, seus motivos são óbvios. Seu único “desejo” é fazer as pessoas felizes. Ela não se preocupa com mais nada. Portanto, o que está fazendo agora também é para realizar seu verdadeiro objetivo. Em outras palavras, Maria determinou que a “Shadow of Sin and Punishment” é capaz de trazer felicidade.

Eu sei que ela esteve procurando por uma “caixa”. E a “caixa” que ela escolheu foi a “Shadow of Sin and Punishment”? O poder de controlar os outros?

— Mas… que merda…

Ranjo meus dentes.

Isso não basicamente implica que o Daiya é a pessoa que melhor compreende as necessidades da Maria? Só por…

— Só por cima do meu cadáver.

Sei o que ela fará a seguir. Diferente do Daiya, ela não vai criar um grande espetáculo. Ela irá se aproximar de cada pessoa interferir onde for preciso, para guiá-las de forma a obterem vidas felizes.

Essa é uma tarefa impossível e sem fim. Uma vida desperdiçada servindo os outros. Apesar disso, Maria aceitaria alegremente devotar sua vida inteira ao seu objetivo. Ela ficaria contente por finalmente dar um passo adiante.

— Só por cima do meu cadáver — repito para mim mesmo.

Ela só está agindo dessa forma porque está obcecada pela “Aya Otonashi”. Está negando completamente a si mesma.

— Eu também vou…

Nesse caso, não é difícil encontrar minha resposta para isso.

— Eu vou esmagar…

Não lhe deixarei nenhuma esperança como “Aya Otonashi”. A única coisa que “Aya Otonashi” conseguirá de mim é desespero.

— Também vou esmagar a “Shadow of Sin and Punishment” à qual você está se apegando!

Esse é o raio de esperança que você encontrou depois de tanto tempo? Eu não dou à mínima! Chore o quanto quiser, não vou hesitar em esmagar sua “caixa”.

 

Eu me decidi.

A pergunta agora é como executar meus planos. Daiya pode dar [ordens] à Maria. Ele pode me ameaçar o quanto quiser. Ameaçando fazer a Yuuri-san usar a “Flawed Bliss”, pode conseguir o que quiser de mim. Se ele me mandar destruir a “Wish-Crushing Cinema”, terei que destruí-la. Se me mandar desistir da Maria, terei que desistir dela.

— Urgh…

Então, o que posso fazer? Daiya ainda está se impondo entre mim e a Maria. A menos que pense em uma forma de me opor a ele, não vou conseguir recuperar a Maria e serei derrotado.

…Uma forma de me opor a ele. Uma forma de me opor a ele…! O que me vem à mente é…

Minha visão se dirigiu a Haruaki, que está me pedindo algo já há algum tempo. Ele quer que eu leve ele e a Kokone comigo para dentro do “Cinema”.

— Haruaki.

Certo, afinal, ela é o único ponto fraco do Daiya.

— Vamos encontrar a Kokone.

Um arrepio percorre minha espinha. Um arrepio percorre minha espinha por causa do que estou planejando.

 

 

Mogi-san disse que queria me ajudar, mas não podemos simplesmente levá-la para dentro da “Wish-Crushing Cinema”, então nos apressamos e a levamos de volta para o hospital.

Depois disso, vamos nos encontrar com a Kokone. Nós ligamos para Kokone antecipadamente, então ela já estava nos esperando em um estacionamento próximo ao dormitório. Assim que nos encontramos, Kokone pula em meus braços, se apoiando no meu peito.

— Daiya acabou de me enviar uma mensagem — diz, com a voz trêmula. — Dizendo que me ama.

Ela não olha para mim. Mesmo se não estivesse tremendo loucamente, ainda estaria claro que ela está chorando.

— Essa é a primeira vez que ele me diz isso depois de perceber que eu mudei.

Haruaki morde os lábios ao ouvir suas palavras em silêncio.

— Fiz minha escolha. E vou fazer do meu jeito — diz ela e, ao mesmo tempo, vira seu rosto em minha direção, encarando-me com os olhos vermelhos. — Eu vou salvar o Daiya.

Sua determinação é inabalável.

— Kokone…

Ele deve ter dito indiretamente, por meio de um e-mail, que a ama. Obviamente é uma armadilha, mas isso não irá impedi-la. Contudo, isso por acaso está de acordo com meus planos.

— Você está disposta a fazer o que for preciso?

— Estou. Colocarei minha vida em jogo se for necessário.

Essa é a resposta que eu queria ouvir. Essa é a resposta que eu queria ouvir, pois, assim, posso tirar vantagem dela para me opor ao Daiya.

— Kokone, Haruaki. Vamos entrar na “Wish-Crushing Cinema”.

Vou usar a paixão da Kokone pelo Daiya, mas somente para recuperar minha Maria. Mesmo assim, Haruaki sorri para mim.

— Você vai nos levar com você? Muito obrigado, Hoshii! — diz e segura minhas mãos. Com força.

— I-isso dói, Haruaki.

Mas ele não alivia seu aperto, seus olhos continuam fixados em mim e lágrimas começam a escorrer por seu rosto.

— Obrigado, Hoshii!

Mesmo que trazer a Kokone comigo não signifique que o Daiya será salvo. Na verdade, Haruaki provavelmente irá testemunhar a destruição do Daiya. E, mesmo assim, está derramando lágrimas de alívio, erroneamente pensando que tomei essa decisão pelo bem da Kokone e do Daiya.

Ele finalmente solta minhas mãos. Elas ficaram quentes.

— Ah…

Meu coração se aqueceu de repente; se aqueceu tanto que é difícil suportar. As lágrimas que eles estão derramando pelo Daiya estão me atingindo. E me fazem perceber.

— Ugh…gh…

Olho para minhas mãos, que foram aquecidas pelo firme aperto do Haruaki. Essas mãos possuem o poder de esmagar “caixas” e de destruir os “desejos” dos outros. Essas mãos provam que abandonei minha humanidade. Minhas intenções de explorar os sentimentos deles pela Maria provam que abandonei o caminho correto. Porque o que eu vou fazer é…

— Aaaahh…

Quando foi que eu me perdi tanto? Não, minha tentativa de matar a Iroha-san já não é uma grande prova de que estou com alguns parafusos soltos? Já estava mentalmente alterado quando fiz aquilo; simplesmente não percebi porque a Iroha-san acabou sobrevivendo.

Quero rezar pelo Daiya. Quero rezar pela felicidade dele, da Kokone e do Haruaki. Quero chorar junto a eles. Quero compartilhar seus sentimentos e ir ao resgate dele também. Mas não posso.

Vou recuperar a Maria. Não posso deixar de priorizá-la acima de todos. Não há outra opção. Mudei de vez. Ao obter a “Empty Box”, me transformei neste ser monstruoso.

— Uh…uuuuuh…

Lágrimas escorrem pelo meu rosto. Mas as minhas lágrimas não são belas como as da Kokone e as do Haruaki, que choram por outra pessoa. Minhas lágrimas são traiçoeiras e egoístas, derramadas em lamentação pelo que me tornei.

— Haruaki, Kokone.

Só posso pôr meus verdadeiros sentimentos em palavras.

— Eu realmente amo vocês dois.

Essa é a única coisa que posso dizer sinceramente.

Haruaki nos abraça.

Kokone está chorando muito.

Derramar essas lágrimas monstruosas me faz sentir como se tivesse cometido um pecado terrível. As lágrimas de Kokone caem no meu rosto, a pureza delas parece me condenar silenciosamente, deixando-me ainda mais deprimido.

— Eu os amo, mas posso traí-los.

Eles olham para mim com os olhos arregalados.

— Sinto muito. Não importa o que aconteça, farei qualquer coisa para salvar a Maria. Posso até mesmo me aproveitar dos sentimentos de vocês para recuperá-la. Talvez eu não seja capaz de salvar o Daiya. Posso ter que encurralá-lo. Mas realmente penso que quero salvá-lo. Me desculpem, não posso me comprometer a isso do fundo do meu coração. Me desculpem. Sinto muito por não poder desejar pelo resgate dele de verdade. — Minhas lágrimas não param — Por favor, me perdoem.

Por algum tempo, permanecemos em silêncio, nos abraçando em um círculo, bem próximos uns dos outros.

Kokone é a primeira a falar:

— Está tudo bem — diz, entre soluços. — Não sou diferente. Só consigo agir pelo bem do Daiya. Eu não poderia agir pelo meu benefício, nem se o Haruaki me pedisse.

Ela se afasta do meu peito, escapando do nosso círculo, e sorri para mim.

— Eu te perdoo, Kazu-kun, então, por favor, me perdoe também.

Vendo suas lágrimas, só posso dizer:

Assim como é mostrado nos quatro filmes que Daiya esteve assistindo, não posso imaginar um final feliz para essa história. Qual foi meu erro fatal? Quando foi que as coisas começaram a dar errado? Se eu estava errado desde o começo, então o Daiya estava certo sobre corrigir o mundo?

Não sei. Não sei, mas precisamos ir.

Para o shopping onde podemos entrar na “Wish-Crushing Cinema”.

Para o Daiya.

Para a Maria.

Mas, antes disso, irei gravar em meu corpo um lembrete de que abandonei o caminho correto. Sim, farei isso na parte de mim que possui o poder de esmagar “caixas”. Escolhi minha mão direita.

Assim que tiver o feito…

Assistirei aos créditos dessa história.



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