Volume 6

Intervalo

 


 

 

Daiya Oomine - 11/09 SEX 22h00min

A irmã mais velha de Maria Otonashi, Aya Otonashi, está morta. Pelo menos é o que dizem os registros.

Descobri isso antes dos eventos do “Game of Idleness”. Estive investigando algumas coisas sobre o passado de Maria Otonashi, esperando melhorar meu controle sobre minha “caixa”.

Maria Otonashi.

Ela é a segunda filha de um executivo de alto escalão que trabalhava para uma grande firma de finanças. A casa em que ela vivia com sua família — seu pai, Michishige, sua mãe, Yukari, e sua irmã, Aya — era parte de um bairro nobre no distrito de Hyougo. A diferença de idade entre seus pais era grande: quando Maria tinha quatorze anos, seu pai já estava em seus sessenta, enquanto a mãe tinha apenas trinta e cinco. Além disso, a mãe de Maria era a terceira esposa de Michishige.

Claramente, a situação familiar da Maria era um tanto… complicada. Isso também se aplica a sua relação com a irmã, Aya. A mãe biológica de Aya era a esposa anterior de Michishige. Para piorar, Aya era apenas três meses mais velha que Maria, portanto, as duas estavam no mesmo ano escolar. Para evitar chamar atenção alheia para isso, Michishige mandou as duas para diferentes escolas durante o ensino fundamental.

De acordo com minhas fontes, as duas garotas eram totalmente opostas. Aya, a irmã mais velha, se destacava completamente. Ela era incrivelmente brilhante e atlética, sem falar de sua popularidade. Ninguém ficava surpreso quando ela assumia posições proeminentes como a de presidente do conselho estudantil; todos os alunos sabiam o seu nome.

Sua irmã mais nova, Maria, por outro lado, era quieta e reservada. Aparentemente, sua incapacidade de se defender fez com que ela fosse bastante provocada durante os primeiros anos do fundamental. Deve ser por isso que ela reclamava frequentemente de dores de cabeça ou de estômago, o que permitia que ficasse em casa ou se trancasse na enfermaria, evitando as aulas. Não é preciso dizer que suas notas deixavam muito a desejar.

Contudo, a verdadeira aluna problemática não era Maria, que não se abria com ninguém e estava ausente com frequência, mas Aya, que parecia ser a aluna perfeita. Às vezes, um estudante muito talentoso pode ser uma fonte de problemas, especialmente se ele estiver completamente ciente de seus talentos e os demonstrar despreocupadamente.

Aya possuía mais talento acadêmico que seus professores e não hesitava em corrigir seus erros. Quando havia casos de bullying em sua sala, ela lidava com o problema muito mais efetivamente do que qualquer professor poderia. Quando havia discussões com o professor em sala, ela sozinha o subjugava, embora o professor fosse quem devesse ter a última palavra.

Aya rapidamente provou que era muito mais perspicaz que seus professores, e a diferença de habilidade era tão visível que até mesmo seus colegas estavam cientes disso. De forma alguma eles respeitariam professores tão incompetentes. Aya desbancou profundamente a autoridade de todo o corpo de funcionários, eventualmente resultando em um comportamento desobediente por parte de seus colegas. A condição deles se deteriorou — não de uma hora para a outra, mas de uma forma gradual que não seria percebida até que alguns incidentes sérios ocorressem.

Por exemplo, alguns de seus colegas começaram a se automutilar e tentaram suicídio. Três professores perderam seus empregos por terem entrado em contato com Aya. Um se tornou incendiário, um atacou um estudante e outro se apaixonou por Aya e começou a persegui-la.

Apesar de suas personalidades opostas e mães diferentes, Aya e Maria pareciam se dar bem. Elas frequentemente eram vistas conversando pelo telefone ou passando o tempo juntas nos fins de semana, de mãos dadas. Uma colega de Aya que as acompanhava de vez em quando me disse isto:

— Elas eram próximas demais! Mais do que irmãs ou amigas… gêmeas? Não, isso ainda não parece certo. Acho que a palavra mais adequada seria… amantes?

Minha investigação falhou em encontrar qualquer lado negro na relação delas. Considerando a “complexidade” do ambiente familiar de Maria, eu me deparei com pouquíssimos problemas. Também não houve incidentes registrados envolvendo a mãe de Aya (de quem Michishige se divorciou depois que Maria nasceu), porque ela recebeu uma generosa pensão. Aparentemente, Michishige estava completamente ciente de sua situação familiar pouco convencional e lidou com isso de forma apropriada.

É claro, meu conhecimento é limitado ao que pode ser descoberto lendo registros e por meio de testemunhos de terceiros. É impossível descobrir os detalhes sobre o que aconteceu entre eles sem ter realmente me envolvido. Contudo, é definitivamente verdade que não havia nenhuma crise familiar óbvia, como era o caso de Ryuu Miyasaki e Riko Asami.

Porém, a família Otonashi não existe mais.

Todos exceto Maria morreram em um acidente de trânsito.

Os detalhes daquele acidente permanecem obscuros, já que não houve testemunhas; foi uma colisão frontal entre dois carros, e o motorista do outro veículo morreu na hora. Fora Maria, que ficara em casa, todos eles morreram. Isso é um fato imutável.

Maria Otonashi estava sozinha. Incapaz de se abrir com ninguém de fora de sua família falecida, Maria Otonashi estava sozinha no mais verdadeiro sentido da palavra.

Depois que os assuntos sobre os bens de seus pais foram resolvidos e a custódia de Maria foi passada ao irmão mais novo de Michishige, Kyohiko, Maria desapareceu sem deixar rastros.

 

Isso é praticamente tudo que consegui descobrir sobre Maria Otonashi. Não sei como ela entrou em contato com o milagre das “caixas” depois daquilo nem o que a fez querer se tornar um ser que garante desejos e o que a permitiu adquirir a “Flawed Bliss”.

Dito isso, tem de haver alguma ligação com a perda de sua família. Suas mortes transformaram Maria e instalaram um desejo anormal de auto sacrifício em seu coração, indiretamente dando vida à pessoa transcendental que ela é hoje.

Curiosamente, ela recebeu a oportunidade de se reinventar. Graças às repetições da “Rejecting Classroom”, ela teve todo o tempo do mundo para fazer isso. Ela evoluiu para uma cópia de Aya, de certa forma, talvez achando que, ao se tornar sua irmã perfeita, poderia cumprir seu novo objetivo.

Ah, munido de todas essas informações, eu deveria ter entendido a verdadeira natureza de “O” muito antes… Não, não exatamente. Ligar “O” a algo tão mundano quanto à família dela foi difícil por outras razões.

Quanto mais você entende o sobrenatural, mais ele perde seu mistério. A menos que você acredite cegamente nele e abandone todas as formas de compreendê-lo, você será incapaz de dominar a “caixa”. Você não deve buscar sentido no misterioso.

No entanto, o ato de renunciar ao pensamento profundo é exatamente a coisa que eu mais odeio. Essa condição contradiz o meu “desejo”, então simplesmente não há como eu atendê-la. Já que isso me impede de dominar minha “caixa”, eu precisei estabelecer uma série de restrições à capacidade dela. Mas, graças a essas restrições, fui capaz de obter uma “caixa” com a qual posso realmente lidar — a “Shadow of Sin and Punishment”.

Compreender “O” era apenas questão de tempo.

 “O”.

Durante todo esse tempo, era apenas a letra inicial de “Otonashi”. E levando em consideração que Otonashi usa o nome de sua irmã, tenho certeza de que a interpretação correta dessa letra é a seguinte:

 “O” é a abreviação de…

— Aya Otonashi.

 

 

Otonashi, Yuuri Yanagi e eu ainda estamos dentro da “Wish-Crushing Cinema”, a “caixa” que consiste em um cinema carmesim. O cinema é tão insanamente estéril que parece ter sido designado unicamente para eliminar seres sujos, e eu sinto sua constante pressão. Ela continua arranhando minha determinação e lentamente esmagando minha “caixa”.

Enquanto resisto à pressão, estou pensando em uma questão em particular.

…É estranho.

Olho ao redor. Estamos em um corredor vermelho completamente livre de pó que forma um círculo perfeito, conectando as quatro salas de exibição. Diante de nós está o hall de entrada. Um painel de informação digital está mostrando a mensagem “O filme Repetir, Recomeçar, Recomeçar terminou”.

Até agora, fui forçado a assistir três filmes:

 “Close-Up e Adeus”

 “60 Pés e 6 Polegadas de Distância”

“Repetir, Recomeçar, Recomeçar”

Cada um deles focados em várias partes do meu passado, vistos das perspectivas de Miyuki Karino, Haruaki Usui e Maria Otonashi, respectivamente. É uma brilhante apresentação dos meus pecados feita com a intenção de me desgastar, por assim dizer. Dado o número de salas nesse complexo, obviamente há um filme restando.

Seu título é “Piercing aos Quinze” e está programado para ser exibido das 22h30min até às 24h00min. Minha derrota está praticamente garantida, a menos que eu consiga resolver tudo até meia noite.

Mas é estranho. Eu achei que esse duelo já havia terminado.

— Oomine, por que essa cara?

Alguém me perguntou isso por causa da expressão em meu rosto.

Maria Otonashi.

…Não. Ela não é mais aquela garota tímida e reservada; não devo chamá-la por esse nome.

— Aya. Tenho uma pergunta — tento usar esse nome, e de alguma forma parece estranhamente adequado.

Ah, não é de se estranhar. Quando a conheci dentro do “Rejecting Classroom”, ela não era ninguém senão “Aya Otonashi”. A garota diante de mim agora é a personalidade criada durante aquelas infinitas repetições em que ela perseguiu seu ideal, “Aya Otonashi”.

Estava além do meu poder chamá-la de Maria quando estávamos presos naquelas repetições inacabáveis. Em primeiro lugar, Maria é um nome falso que deveria ter desaparecido completamente; ela o mencionou somente por capricho. Nenhuma pessoa chamada “Maria Otonashi” jamais existiu, nem Aya jamais teve a intenção de permitir que tal pessoa existisse.

O feito milagroso de superar essa intenção foi algo que apenas o Kazu pôde realizar, como uma das poucas pessoas que podia manter suas memórias durante as repetições. De certa forma, Kazu atrapalhou os planos de Aya Otonashi e mudou o destino.

Eu, por outro lado, não pude fazer tal milagre. Era impossível para mim me lembrar do nome “Maria” durante aquelas repetições. Portanto, ela é e continuará sendo “Aya Otonashi” para mim, mesmo que ela tenha emprestado esse nome de sua irmã mais velha.

Sem demonstrar qualquer reação especial em relação à forma como me dirigi a ela, ela responde:

— Qual a sua pergunta?

Coloco em palavras o motivo desse sentimento de que algo está errado:

— Por que a “Wish-Crushing Cinema” ainda não terminou?

Aya ergue uma sobrancelha.

— Do que você está falando? É porque o Hoshino não a destruiu ainda, isso é bem simples.

— Você não entende aonde quero chegar? Estou perguntando por que ele ainda não fez isso. A determinação dele foi destruída no momento em que você abandonou sua identidade como Maria Otonashi. Ele não deveria naturalmente desistir dessa luta? Por que a “Wish-Crushing Cinema” continua intacta?

Certo, a presença de Aya Otonashi aqui indica que a luta deveria ter acabado. Porque isso significa que o cenário de absoluto desespero para o Kazu veio à tona. Mas por que ainda estamos aqui então? Por que ele não desistiu?

— Parece que você ainda não entendeu nada, Oomine. Você não faz ideia do verdadeiro calibre do Hoshino.

— Do que você está falando?

— Simplesmente quero dizer que a determinação dele ainda não foi destruída. — Ela diz sem mover um músculo.

— Hã?

O que isso deveria significar?

O objetivo do Kazu é garantir um cotidiano livre de “caixas” para Maria Otonashi. Isso obviamente não é mais possível, já que Aya decidiu eliminar “Maria Otonashi” de uma vez por todas ao entrar no “Cinema”. O objetivo do Kazu se tornou impossível; ele deveria saber disso melhor do que qualquer um.

E, mesmo assim, sua determinação está inteira?

— Então… você quer dizer que… ele ainda acha que pode te resgatar?

— Exato. Aquele garoto não é normal. Ele não desiste desde que tenha um objetivo, seja ele possível ou não. Estou começando a achar que ele é incapaz de desistir.

Incapaz de desistir…? Isso é absurdo. Mas, como prova, a “Wish-Crushing Cinema” ainda não terminou. Além disso, não acho que Aya se enganaria sobre a natureza do Kazu. Em outras palavras, ela está certa. O que significa que…

— …Ah, merda!

O foco dessa batalha sempre foi destruir a determinação dele. Kazu não é mais capaz de alcançar seu objetivo agora que Aya fez sua escolha. Ele definitivamente perdeu. Estou convencido disso, não importa o que ele pensa.

Contudo, sua derrota não significa que serei vitorioso. Se eu não fizer algo, nós dois seremos derrotados. Se a determinação dele não falhar e essa “caixa” não for destruída, terei que assistir ao quarto filme, Piercing aos Quinze. Depois disso, minha “caixa” será destruída eu querendo ou não e, se isso acontecer, minha tentativa de transformar o mundo em um lugar mais ético ao produzir “Cães Humanos” será desperdiçada.

Da forma que as coisas estão agora, também serei derrotado. Como as coisas acabaram assim? Tudo foi de acordo com o plano. Eu até mesmo fui capaz de impedir o Cavalo de Tróia dele, Yuuri Yanagi, e trazer Aya Otonashi até aqui. Mesmo assim, cheguei a um beco sem saída. Embora não tenha perdido, estou encurralado… O que diabos é aquele cara? Um boxeador invencível ou algo do tipo? Estou começando a entender por que “O” disse que não posso derrotar o Kazu.

— Otonashi-san — Yuuri Yanagi repentinamente quebra seu silêncio para falar com Aya.

Decido ouvir, para o caso de seu comentário poder me levar a uma solução para o meu dilema atual.

— Nos últimos minutos, você parou de chamar o Kazuki-kun pelo primeiro nome, não foi?

Apesar de ter prendido minha atenção, tudo o que ela tem a oferecer é pura bobagem. Isso realmente mexe comigo, de um jeito ruim.

— E o que você tem a ver com isso, vadia? Precisa confirmar se o Kazu está disponível agora que ele e a Aya se separaram? Você é um incômodo, então cale a boca.

— Quêêê?! Por que essa linguagem abusiva?! Isso é maldade! Além disso, vocês não estão ignorando a minha existência completamente já há um bom tempo?!

— É claro, seu tempo sob os holofotes terminou. Aya já é inimiga do Kazu, então seu valor despencou. Seja uma boa múmia e fique quieta, ou você apenas nos arrastará para a tumba junto com você.

— E-eu não tenho nem permissão para falar?!

Eu a ignoro, já que qualquer resposta seria um completo desperdício do meu tempo. Apesar disso, ela está certa, Aya mudou a forma de se referir ao Kazu. Provavelmente, agora que são inimigos, ela não pode mais se referir a ele de forma tão próxima.

Inimigos.

Inimigos…

— A propósito, Aya, deixe-me ver se entendi: Posso contar com a sua ajuda? Kazu não te deixará em paz enquanto a determinação dele continuar inteira, então você também precisa derrotá-lo.

— Sim, você pode. Não posso simplesmente ignorar Kazuki Hoshino. Ele pode não estar armado, mas não posso abaixar minha guarda. Ainda o considero o maior obstáculo entre mim e meu objetivo.

— Acho que sim. Então, acho que é uma boa ideia unirmos forças até que tenhamos lidado com ele. O que você me diz?

Aya se mantém em silêncio por um momento, mas acaba falando:

— Eu detesto essa sua “caixa”, a “Shadow of Sin and Punishment”. Sua aproximação consiste em sacrificar pessoas, o que vai contra os meus princípios. Mesmo eu que concorde que somos parecidos, jamais concordarei com os seus meios.

— …Então você não tem qualquer intenção de cooperar comigo?

Nesse caso, minhas mãos estão atadas. Kazu ainda não desistiu, apesar da situação em que está. Se há alguma maneira de destruir a determinação dele, Aya tem que estar envolvida de alguma forma.

— Não. Eu vou te ajudar.

Não é nenhuma surpresa que eu esteja aliviado ao ouvi-la dizer isso.

— Esmagá-lo definitivamente está no topo da minha lista... O que quero dizer é que não sinto qualquer obrigação de te ajudar… estou fazendo-o apenas por meus próprios objetivos. Por exemplo, você está preso a um tempo limite, mas eu não. Essa diferença pode acabar te ferindo.

— O mesmo vale para mim. Irei traí-la se necessário.

— Ótimo.

— Muito bem, então, por onde começamos? Não consigo encontrar nenhuma maneira óbvia de acabar com a vontade de lutar dele, mas você consegue, certo? Diga-me: Qual a maneira mais efetiva de atacar o Kazu?

Aya fica em silêncio.

Estou fazendo essa pergunta por duas razões. Primeiro, ela pode realmente ter uma ideia que eu ainda não tive, já que conhece o Kazu tão bem. O outro motivo é que quero confirmar se ela realmente o abandonou por completo.

Mesmo estando certo de que ela cortou todos os laços com ele, me lembro da profundidade do relacionamento deles. Não me surpreenderia se seus sentimentos pelo Kazu ainda estivessem presentes em algum nível. Ela pode propor um plano meia-boca porque, no fundo, ela ainda está apegada a ele. Se esse for o caso, ela será um apenas um fardo como parceira, e será melhor eu apenas tirar vantagem dela o máximo que puder e mantê-la afastada do Kazu.

Contudo, a resposta da Aya é:

 

— Eu só preciso me esquecer do Hoshino.

 

É uma resposta que apaga qualquer traço do apego ao Kazu que eu temia que ela ainda pudesse ter.

— Posso facilmente me esquecer dele se usar minha “Flawed Bliss” em um de seus amigos. Não restará nada do que eu e ele construímos naquele mundo repetitivo. Isso é tudo o que precisamos fazer.

Esse plano vai…

Esse plano vai dar certo.

Kazu apenas não desistiu —, e ainda possui esperanças —, porque sabe que é especial para Aya. Mas, se colocarmos de outra forma, isso é tudo o que ele tem; sem isso, ele não terá mais nenhum raio de esperança. Então, eles apenas precisam se tornar estranhos. Os laços especiais que eles possuem apenas precisam desaparecer.

Contudo…

— Mas Aya…

A sugestão dela faz minhas mãos tremerem. Como ela pode dizer algo assim sem nem sequer hesitar? Ele e Aya eram um time; eles dependiam um do outro e tinham laços indestrutíveis. Ligações profundas que os transformaram em pessoas completamente diferentes. Mesmo assim, Aya Otonashi está propondo jogar esses laços fora sem nem pensar duas vezes.

— Aya, você realmente está bem com isso? — pergunto bruscamente, mas a resposta é óbvia.

Ela está. De outra forma, ela não proporia algo assim, para começo de conversa. Uma super-humana como Aya não sente nada, mesmo que tenha que esquecer sobre o Kazu. Não há comparação entre mim e uma super-humana como ela.

Contudo:

— Não estou.

— …O quê?

Congelo. Não esperava por isso. Não teria ficado surpreso se ela dissesse que não se importa, mas não esperava por isso.

— É claro que não estou bem com isso. Se estivesse, não teria tentado ficar com o Hoshino por tanto tempo. Eu estaria mentindo se me recusasse a admitir o quão importante ele é para mim. Enquanto negar isso, não posso me opor a ele.

Aya claramente está dizendo que esquecer sobre Kazuki Hoshino a fere. Mas isso não faz sentido!

— Mas então…

Como ela pode fazer uma proposta dessas? Uma proposta assim, que atropela completamente seus próprios sentimentos.

— Não importa o que o Hoshino significa para mim.

— …Por quê?

 

— Porque meus sentimentos não vão interferir com os meus planos.

 

Prendo minha respiração, Aya está falando com convicção absoluta.

— Não me importarei com sentimentos que ficarem no caminho dos meus objetivos. Minha mente não é tão fraca. Minha determinação não irá falhar por causa dos meus sentimentos.

Vendo-a agindo de forma tão transcendental Como ela pode examinar seus próprios sentimentos de uma perspectiva completamente imparcial... uma coisa fica evidente:

Ela está falando a verdade.

— Não sou humana. Sou um ser que garante desejos. Em outras palavras, uma “caixa”.

É claro, isso é apenas uma figura de linguagem; Aya é inegavelmente humana. Ela só está dizendo que vive sua vida com uma resolução desumana. E ela realmente vive dessa forma. Para Aya, o único significado de sua vida é alcançar seus objetivos. Ela não deixa seus sentimentos ou desejos interferirem nesses objetivos de forma alguma, nem mesmo pelo seu amigo mais querido ou para evitar sua própria morte.

…Máquina… Fantoche… “Caixa”.

Eu também aspirava tal perfeição. Eu também buscava criar um mundo perfeito. Mas, depois de ver como ela ultrapassa os limites da humanidade, posso realmente me imaginar no nível dela?

… Impossível.

Seria mais fácil de tolerar se ela tivesse dito que estava tudo bem em esquecer o Kazu, pois isso é algo que até eu poderia fazer ao endurecer meu coração. Mas não é isso. Mesmo experimentando sentimentos tão extremos, Aya Otonashi pode perfeitamente continuar perseguindo seus objetivos.

Não posso fazer isso.

Impossível.

No fim das contas, sou só um humano.

Pior ainda, eu sou…

Repentinamente, as “Sombras do Pecado” dentro de mim começam a entrar em fúria.

— Argh!

Pior ainda… posso perder minha habilidade de resistir à dor causada pelas “Sombras do Pecado”, mesmo que eu tenha aceitado essa dor para poder [controlar] os outros. As “Sombras do Pecado” guincham e atacam sempre que deixo uma abertura. E estão ficando piores.

Cerro os dentes. Aah, droga! Sinto como se projéteis estivessem correndo por minhas veias. Por que essa dor auto infligida machuca tanto? Minha “Shadow of Sin and Punishment” irá quebrar depois que eu ver o próximo filme? …Haha, sequer posso durar até o filme começar? Talvez eu esteja arruinado antes mesmo disso. A dor é insuportável; aguardar pela minha ruína inevitável é igualmente insuportável.

Por que sou medíocre até a alma? Por que nasci como uma pessoa normal, incapaz de realizar milagres? Toco meus piercings. Eu quero mudar. Não quero voltar a ser o tolo que costumava ser. Quero continuar resistindo a esse mundo esquecido por Deus.

Mas,

Mas,

Mas, na verdade…

 

Luz. Trevas. Oceano. Mundo. Hotel. Útero. Mãos dadas. Lágrimas. Vitória. Mundo. Pele. Frio. Frio. Luva de apanhador em minha mão esquerda. Dormência. Diferença de talento. Inveja. Sonho. Confissão. Ansiedade. Cigarros. Queimaduras. Calafrios. Medo. Ódio. Ódio. Ódio. Ódio. Ódio. Ódio. Ódio. Pecado. Punição. Justiça. Pecado por justiça. Piercing.

 

Toco meus piercings novamente, com a respiração acelerada. Quando foi que furei um buraco em minha orelha? Esse pensamento me força a lembrar da pessoa que mais odeio. Miyuki Karino.

Rino era incapaz de se arrepender do que fez. Ela não percebia que tinha feito algo errado. Eu precisava deixar aquilo claro para ela. Eu não podia esperar para ensinar uma lição a ela, pelo que ela fez à Kiri; aquela era a única maneira de eu aceitar a injustiça desse mundo.

Foi por isso que agi daquela forma. Decidi não a perdoar até que ela mostrasse arrependimento. Mas Rino não estava ciente de sua culpa; ela só pôde oferecer pedidos superficiais de desculpas. Por causa disso, não pude perdoá-la, nem tenho a intenção de fazê-lo. “Por favor me diga o que preciso fazer!” Por que você não pode pensar em algo você mesma? “Eu te amo. Fiz o que fiz porque sempre te amei, Dai-chan.” Pare de zoar comigo. Está tentando fazer com que eu sinta pena de você? Não, você não está, não é mesmo? Você está me culpando. Eu sou aquilo que faz a Kiri sofrer, é isso que você está tentando me dizer, seu pedaço de merda. Antes que eu percebesse, estava batendo na Rino. Não pude acreditar no que estava fazendo. Atacar uma amiga de infância não parecia real. Recorrer à violência fez minha mente se separar da realidade. Embora eu pudesse sentir a violência que estava cometendo, era como se estivesse fora do meu corpo. Aquele cara batendo na Rino não era eu, era um estranho dentro de mim que tomou o controle do meu corpo. “Me desculpa, me desculpa, me desculpa!” Você não pede desculpa para alguém que está te machucando, droga!

Nada estava resolvido.

Nada estava resolvido.

Não havia solução para nada.

Eu era completamente incapaz sem uma “caixa”.

Eu sei. Estou perfeitamente ciente do pesadelo que a Rino viveu naquele hotel. Sei como a Rino se sente sobre mim. Sei que ela tem vários pontos positivos: ela é animada, sociável, atenciosa, simpática e fica feliz com coisas boas e triste com coisas ruins. Sei que ela não é uma má pessoa. Mesmo assim, não posso perdoá-la. Não posso. Não posso perdoá-la.

Foi por isso que houve um conflito. Embora atacar ela tenha sido um anátema, eu precisava fazê-lo. Consequentemente, fraturei minha percepção mental da Rino e eliminei a parte que causou o conflito. Eu esqueci que fomos amigos desde a infância.

E então, eu a encurralei. Tingi meu cabelo e coloquei um piercing. Queria me tornar uma pessoa diferente do antigo “Daiya Oomine”. Se minha sociabilidade tinha sido a razão do que aconteceu com a Kiri, eu queria destruí-la.

Não preciso que ninguém me diga que não sou especial. Não posso ser igual à Aya Otonashi. A única coisa que me distingue de uma pessoa qualquer é que eu vejo as coisas de um ponto de vista mais abstrato.

E está tudo bem.

…Está tudo perfeitamente bem.

Finalmente consigo empurrar as “Sombras do Pecado” de volta e recupero o meu controle.

— Qual o problema Oomine?

— Vo-você está bem?

Aya e Yanagi estão falando comigo.

— …Não é nada.

…Droga, por que estou tão nervoso?

Posso ainda ter fraquezas, mas não há necessidade de ser tão pessimista. Se eu não puder lidar com meus sentimentos, posso apenas suprimi-los e continuar ignorando-os. Não preciso confrontá-los cara a cara como a Aya faz. Sempre soube como evitar minhas emoções, e, graças a isso, sou capaz de pensar racionalmente. Isso é uma grande arma.

Eu deveria ter orgulho das minhas qualidades. Após me controlar, volto a falar:

— Aya. Voltando a sua proposta, concordo que devemos usar a “Flawed Bliss” para derrotar o Kazu. Você já tem algum plano específico?

— Não, ainda não. Afinal de contas, acabei de ter essa ideia.

Como imaginei. Aya Otonashi é surpreendentemente fraca quando se trata de pensar em planos que envolvem manipulação. Seus princípios corretos têm um impacto em sua habilidade de iniciar ataques diretos. É, até mesmo Aya tem fraquezas; por que me preocupar em comparar minhas forças com as dela?

— Posso pedir para você compartilhar seus pensamentos, Oomine?

— Tenho certeza que fazer você perder suas memórias será efetivo. Mas não há sentido a menos que ele tome conhecimento disso, certo?

— Ele descobriria rápido o bastante mesmo que nós não fizéssemos isso, certo?

— Rápido o bastante para você, talvez, mas eu não tenho tempo. Preciso confrontá-lo diretamente com sua perda de memória.

— Hmm, é justo. Em outras palavras…

— Sim, temos que usar a “Flawed Bliss” bem diante dos olhos dele.

— Mesmo que seja possível entrar em uma “caixa”, é impossível sair. Como estou aqui agora, isso significa que precisaremos…

— Chamá-lo para dentro da “Wish-Crushing Cinema”. — eu digo, completando sua sentença.

Esse é o pré-requisito para destruir a determinação do Kazu.

— Mas como fazemos isso? É muito mais fácil para nosso inimigo apenas se esconder em algum lugar seguro e esperar que sua “caixa” seja destruída. Hoshino só precisa esperar por mais umas duas horas. Não acho que ele arriscaria vir até aqui.

— Isso não seria um problema se usássemos minha “Shadow of Sin and Punishment”.

— Além disso, em quem você planeja usar a “Flawed Bliss”, Oomine?

— Depende do que o Kazu fará seguir, mas agora nós três somos os únicos aqui. O que significa que há apenas uma candidata real. — eu digo, olhando para a Yanagi.

— Hã?

—Ótimas notícias, não é, Yanagi? Você acaba de ganhar um novo papel e recuperou algum valor!

— Eh? Hã? Ah… — ela murmura, ficando pálida ao perceber aonde quero chegar. Aya se coloca entre mim e Yanagi, assumindo uma postura defensiva.

— …Desculpe, mas não tenho intenção de usar minha “Flawed Bliss” em ninguém que não esteja buscando minha ajuda. Nem que isso seja necessário para derrotar o Hoshino.

Entendo. Suas regras continuam as mesmas mesmo quando ela está decidida... ela não prioriza a eficiência a evitar usar alguém?

…Não, de certo modo, isso era esperado. Se ela agisse de outra forma, seria uma contradição ao seu objetivo de tornar todos felizes.

— Muito bem. Acho que terei que encontrar outra pessoa então.

Imediatamente percebo que ela não irá desistir, então, uso algumas palavras vazias para resolver esse problema por hora. Aya assente levemente. Ela parece estar satisfeita. Para ser honesto, é brincadeira de criança fazer a Yanagi pedir ajuda, uma vez que absorvi a “Sombra do Pecado” dela. Ela sofreu feridas profundas durante o “Game of Idleness”; já que o pecado dela é pior do que os da maioria das pessoas, apenas jogar um pouco de sal naquela ferida deve bastar.

É claro, Yanagi não é a única candidata. Posso usar qualquer um dos amigos do Kazu para fazer Aya perder as memórias dele. Contudo, não posso cegamente torcer para que alguém apareça. Yanagi é necessária, já que precisamos de um sacrifício garantido. Após chegar a essa conclusão, volto minha atenção a nossa discussão.

— Traremos o Kazu para a “Wish-Crushing Cinema” antes do último filme acabar e então usaremos a “Flawed Bliss” em um dos amigos dele diante de seus próprios olhos. Agora, como vamos fazer isso?

— Sim. Você disse que fazer isso não seria difícil; poderia elaborar?

— Como proceder sobre isso, hmm…

Que tal ameaçar matar a Aya se ele não abandonar o “Cinema”? Não sei se essa ameaça é crível ou não, mas Kazu provavelmente obedecerá se a Aya estiver envolvida, mesmo que seja uma ameaça mal-feita.

Então posso usar a “Shadow of Sin and Punishment” para comunicar essa ameaça a ele? Isso pode funcionar, mas pode ser surpreendentemente difícil alcançá-lo no pouco tempo que temos restando. Caramba, se eu tivesse a ajuda de “O” isso não seria probl...

…Você tem um desejo?

…Não, espere. Estou me esquecendo de algo importante. Em primeiro lugar, como o Kazu obteve a “Wish-Crushing Cinema”? Ele obviamente recebeu sua “caixa” de “O”. Ele pediu ajuda à “O” para me derrotar. “O” está do lado do Kazu, não do meu. Tenho certeza que “O” deu a ele uma “caixa”. A menos que eles tenham se tornado inimigos desde então, preciso levar em conta a possibilidade de eles estarem cooperando.

Vamos supor que eu execute meu plano de ameaçar matar a Aya. Mesmo que eu consiga comunicar minha ameaça, não é possível que “O” revele que é apenas um blefe se ela não gostar do rumo que as coisas estiverem tomando? Posso ignorar essa possibilidade?

Não, não posso. Esse cenário é perfeitamente plausível. Portanto, também preciso enganar “O”. “O” não é completamente onisciente, mas ela parece estar ciente de quase tudo que acontece. Se eu contar meu plano, há chances de que “O” fique sabendo sobre ele. Contudo, “O” não pode ler mentes. Posso esconder minhas intenções se me mantiver em silêncio sobre elas, ela não é diferente de um humano nesse quesito.

Em outras palavras, tenho que fazer o Kazu vir aqui por vontade própria enquanto faço “O” acreditar que as coisas estão indo bem para o Kazu e escondo meu plano verdadeiro de Aya.

…Mas que merda? Isso é ridiculamente complicado.

— Oomine, você ficou em silêncio. Está tendo problemas em pensar em um plano?

Olho para o rosto de Aya. Inexpressiva. Um rosto que esconde seus sentimentos. De repente, algumas falas de Repetir, Recomeçar, Recomeçar vêm a minha mente.

 

— Eu sei o fim que leva um “desejo” desses. Ele leva à...

…Ruína.

— Mas o que eu faria se você descobrisse sobre as “caixas” e conseguisse uma mesmo assim? Eu não a tomaria de você. Eu enfrentaria qualquer outro “portador”, mas não conseguiria enfrentá-lo.

— Talvez eu me alie a você de novo… não, isso está fora de questão. Eu não cooperaria com você. Nem tentaria interferir de qualquer forma. Nossos objetivos apenas possuem a mesma direção por coincidência. Nós nunca deveríamos ter nos tornado parceiros. Sim, na realidade, nós somos…

— Almas gêmeas, eu acho.

 

— Que nostálgico. — murmuro sem pensar, e imediatamente me arrependo de fazê-lo.

Essas súbitas memórias do que ela me disse naquele filme… não, durante uma daquelas intermináveis repetições, estão me confundindo.

…O que “Aya Otonashi” é para mim?

Para Kazu, “Aya Otonashi” é um inimigo. Ele quer trazer Aya — não, nesse contexto devo chamá-la de Maria — para o seu cotidiano, e como “Aya Otonashi” é a razão de Maria chamar a si mesma de “caixa” e ter desistido de ser humana, ela representa o maior obstáculo para o objetivo dele.

Contudo, para mim é exatamente o contrário. Não quero que ela seja “Maria Otonashi”.

...

Não quero?

Por quê?

Porque o objetivo de Aya e o meu são similares? Porque estamos cooperando? Porque também estávamos cooperando dentro da “Rejecting Classroom”?… Sinto que ainda estou deixando escapar algo. Nenhuma dessas possibilidades parece correta.

Minha dependência dela é mais fundamental que isso, o que significa que deve estar relacionada ao meu objetivo. Não há necessidade de eu próprio cumpra meu objetivo. Em um futuro próximo, quebrarei sob o fardo dos meus pecados, e não terei alcançado minha meta quando isso acontecer. Não me importo, desde que haja alguém que, como a Shindou, suporte meu objetivo, e que o mundo eventualmente mude para melhor. Não me importo se morrer odiado por todos e tratado como lixo.

Mas, nesse caso…

Aah… entendi. Já sei o que Aya Otonashi significa para mim.

Aya Otonashi é minha fonte de esperança.

Se ela conseguir realizar seu desejo de um mundo onde todos são felizes, meu próprio objetivo terá sido alcançado também. Se o desejo dela se realizar, o meu também será realizado. A maneira como ela vive sua vida me faz acreditar que o desejo dela pode realmente se tornar realidade, embora seja muito mais difícil de alcançar do que o meu.

Sua indiferença.

Sua nobreza.

Sua conduta.

Sua integridade.

Ela é um ser tão transcendental que até meu “desejo” poderia ser salvo. Não, não apenas o meu “desejo”. Ela poderia salvar todos os “portadores”. Ela é um raio de esperança para cada “portador”. É por isso que ela tem o mesmo nome que “O”. Ela é um ser que garante os “desejos” de todas as pessoas.

Ela é um ser nobre que deve ser protegido. É por isso que não devo admitir minha derrota. Não posso perdoar Kazuki Hoshino por pisar em nossos “desejos” por um motivo tão mundano quanto querer estar com a “Maria”; por um motivo tão egoísta. Nós temos que esmagar o Kazu.

— Acabei de pensar em um plano.

Pelo bem de todos, enganarei Aya, “O” e quem mais for preciso, e atirarei o Kazu nas profundezas do desespero.

— Vamos usar Kasumi Mogi.

Kazu.

Não o deixarei recuperar a zerésima Maria.

 

Kazuki Hoshino - 11/09 SEX 22h03min

Como posso descrever esse sentimento paradoxal?

Nada mudou dentro de mim, mesmo assim, eu claramente mudei.

Tudo o que aconteceu foi compreender melhor a mim mesmo; li meu próprio manual, por assim dizer. Mas isso foi o bastante para mudar meu mundo. Todo meu corpo parece estar refrescado de alguma forma, como se alguém tivesse colocado mentol na minha corrente sanguínea. Minha mente fica mais clara a cada minuto, e tudo o que atrapalhava os meus pensamentos desapareceu.

A névoa que cobria o mundo está se dissipando.

Agora posso focar somente em salvar a Maria.

Essa é a mudança que ocorreu dentro de mim quando obtive a “Empty Box”.

 

— Uou, o que houve com aquela garota?

Essa é a primeira coisa que Haruaki diz, com o rosto pálido, depois que ele entra no túnel. Estamos embaixo de uma ferrovia elevada que corre ao longo do rio na periferia da cidade. Os olhos dele estão fixados na Iroha-san. Ela desmaiou e está apoiada em um muro coberto de pichações obscenas que não poderiam estar mais distantes do conceito de “arte de rua”.

— Nã-não me diga que você matou ela… Hoshii?

— Ela está viva!

— Ma-mas e todo esse sangue…?

Tanto o chão quanto as paredes estão manchados com um líquido vermelho, assim como as roupas e o rosto dela.

— Isso é apenas sangue artificial.

— A-artificial? Sério?

Haruaki se agacha, toca o líquido vermelho no chão e o cheira. Inicialmente, ele franze as sobrancelhas, mas percebe que estou falando a verdade e assente algumas vezes.

— É-é, não é sangue. Mas ainda assim, como isso aconteceu? Por que ela está apagada como uma lâmpada queimada?

Ele examina de perto o rosto dela e checa sua respiração e pulso. De onde estou, é difícil perceber o rosto dela, pois nossa fonte de luz é uma fraca lanterna.

O que eu fiz com a Iroha-san? Explicar isso levaria tempo demais, então decido responder apenas a primeira metade do questionamento dele.

— Daiya e Iroha-san armaram uma armadilha para eu trair a Maria na frente dela. Eu caí completamente, e agora a Maria está dentro do “Cinema”!

— Então a Maria-chan descobriu sobre a “caixa” do Daiya?

— Acho que sim.

Haruaki sabe o quão sério estou, então se levanta com o rosto franzido e me encara.

— Por que você não me chamou antes das coisas ficarem assim? Você não confia em mim o bastante para depender de mim? — pergunta ele em um tom ameaçador. A altura dele o permite ser intimidante o bastante quando tenta me pressionar dessa forma.

— Eu confio! Só não podia te chamar porque me mandaram vir sozinho. — mesmo enquanto falo, sei que esse não é o único motivo. — …Não, eu não teria te chamado mesmo se não tivessem mandado.

— Mas por quê?! — grita ele, sentindo-se frustrado por não ter estado ao meu lado quando eu precisava.

Que grande e confiável companheiro. Estou realmente feliz por termos nos tornado amigos.

— É o contrário! Estou dependendo de você.

— Hã?

— Na verdade… estive dependendo de você durante todo esse tempo…

De outra forma, eu não teria envolvido ele nisso tudo, para começo de conversa; eu não estaria me culpando por ter contado a ele sobre as “caixas”.

— …Se-se você confia em mim, então por que você não…?

— Você estava com a Kokone, não estava? Eu queria que você continuasse protegendo ela! Você sabe o porquê, não sabe?

— Ah… — Haruaki coça a bochecha, envergonhado. — Certo… nós achamos que o Daiyan atacaria a Kiri a seguir.

— Sim, era provável que essa questão toda fosse apenas um chamariz armado pelo Daiya.

Sim. Nós tínhamos certeza de que o Daiya focaria na Kokone. Nós estávamos acreditando que a Kokone estava em maior perigo do que eu ou a Maria. Nós tínhamos um bom motivo para achar isso. Achamos que a essa altura Daiya já teria percebido que não sou o “portador” da “Wish-Crushing Cinema”, e, quando isso acontecesse, ele atacaria o “portador” antes de qualquer outro.

Nesse caso, ele teria atacado a Kokone antes da Maria. Mas ele não o fez.

— Então Daiya ainda não percebeu quem é o verdadeiro “portador”?

— É o que parece.

A “Wish-Crushing Cinema” existe com o único propósito de destruir a “caixa” do Daiya. Ele deveria ter compreendido sua natureza quando a Yuuri-san entrou no cinema, porque apenas o passado dele continuou a ser exibido. Mas por que ele não percebeu que não sou o “portador”?

Certamente não era impossível que eu tivesse obtido uma “caixa”; na verdade, eu tinha a intenção de alcançar “O” e derrotar o Daiya com uma “caixa”, na pior das hipóteses. Novamente, na pior das hipóteses, mas eu planejei isso.

Contudo, mesmo que eu tivesse obtido uma, não seria capaz de desejar algo como aquilo. Minha “caixa” jamais seria algo como a “Wish-Crushing Cinema”. Não posso escolher uma “caixa” que só salva o Daiya.

Quero dizer, uma “caixa” dessas só é possível para alguém que pensa somente no Daiya e em mais ninguém do fundo de seu coração, não é mesmo? É impossível a menos que você seja alguém com uma obsessão quase doentia em relação ao Daiya, certo?

Não tem como eu lidar com isso. Eu o considero um amigo e valorizo nossa amizade, mas meus sentimentos por ele não são fortes o bastante para me deixar cego para o resto do mundo. Não sou capaz de fazer um “desejo” que é limitado a ele e a mais ninguém.

Se ele tivesse pensado adequadamente na questão de quem é o “portador” daquela “caixa” em vez de evitar o assunto, teria percebido isso. Mas ele não conseguiu. Por quê?

Porque sua “caixa” o corrompeu.

Se ele não pode nem sequer perceber quem é o verdadeiro “portador” do “Cinema”, está claro que os métodos do Daiya são falhos. Se ele não pode nem sequer reconhecer a pessoa que tem sentimentos tão fortes por ele, é óbvio que ele está errado. Por estar tentando congelar o seu coração, Daiya está deliberadamente mantendo essa pessoa fora de sua mente. Ele está fechando sua mente, cegando a si mesmo.

E mesmo assim, ele diz que seu objetivo final justifica tudo? Ele clama que quer corrigir o mundo mesmo que tenha que pagar com a própria vida?

— Hehe…

Hilário.

Isso é estúpido.

Uma pessoa assim jamais conseguiria realizar nada de valor. Um homem cego quer mostrar o caminho? Aposto que ele apenas acabará se perdendo, ele apenas deixará as coisas piores. E por isso ele quer tirar a Maria de mim? Quem ele acha que é?

Olho para Iroha-san, inconsciente e coberta de manchas vermelhas. Ela também estava errada. Ela também tentou tirar a Maria de mim. Por isso, ela teve o que mereceu.

Eu disse a Haruaki que Iroha-san está viva — e isso é verdade — mas eu tomei a razão de sua existência. Ela pode não ser capaz de se recuperar, como sua imagem miserável de agora demonstra.

Mas e daí?

— Hehehe…

Sim, farei o mesmo com o Daiya.

Seu desespero será de uma magnitude muito maior do que o da Iroha-san, já que seu “desejo” vem dele mesmo. Ele não será capaz de se recuperar quando descobrir que seu “desejo” jamais se tornará realidade. Além disso, ele é responsável pela morte de Koudai Kamiuchi. Uma realidade cruel espera pelo Daiya quando ele não puder mais escapar.

Mas, mesmo assim, irei esmagá-lo.

Não dou a mínima para o “desejo” de um cego. Será culpa dele mesmo se ele acabar de forma miserável quando sua “caixa” for esmagada. Seu homem louco... você colhe o que planta, não é mesmo?

Então.

Devolva-me a Maria de uma vez, seu cego maldito.



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