Volume 1 – Arco 9

Capítulo 68: O Elixir Do Ingênuo

Os dois estavam no cômodo gelado, frente a porta da esquerda, prontos para saírem dali. Como a tranca ficava do lado de dentro, não era necessário que Margô usasse seus poderes, o que era um alívio para Diego, pois não desejava que a menina ficasse fadigada.

Ao abrir a porta de ferro, o ar gelado que vinha do cômodo se espalhou pelo corredor a frente como uma neblina. Os dois prosseguiram, fechando a porta ao atravessarem o arco. Andando um pouco mais pelo corredor, notaram que o caminho inclinava para baixo. Se encararam, depois continuaram seguindo com cautela.

As fracas luzes no teto do corredor iluminava fracamente o caminho. Deixava o trajeto mais obscuro, bruxuleante, com aspecto de filme de terror, onde no final do corredor sempre haveria alguma coisa para pegar os personagens.

Diego, que já estava inquieto por conta das estranhas sensações, tentou puxar assunto.

— Como que… Como que você faz isso?

— Isso o quê? — A menina o encarou com os olhos saltados. Teria de se conhecer muito bem a garota para notar que ela estava tão assustada quanto ele.

— O seu teleporte — disse forçando um tom impassível.

— Ah! — Ela levantou as sobrancelhas, sem tirar os olhos do rapaz. — É só o meu segredo. É como uma troca comum, mas no lugar de levar um objeto para um outro canto, me concentro em me levar para outro canto.

— Certo, mas até onde eu sei ninguém consegue fazer o mesmo que você. Nenhum Troca, pelo menos. Então você é única.

— Não exatamente — falou, contorcendo os lábios em um sorriso sem graça. — Minha mãe que me treinou desse jeito. É uma técnica de família. Do mesmo jeito que o Leo tem aquela técnica dos clones dele. 

— Eu não chamaria de clones. Pra mim são mais hologramas ou imagens dele. Se fosse mesmo um clone, um que dê para tocar de verdade, aí sim seria um problema. 

— Se ter mais de um Leo é irritante, imagina mais de um que pode te tocar.

Os dois deram risadinhas abafadas, porém logo perdeu a graça quando notaram que o som se propagou por todo o caminho, como um eco. Isso os fez ficar calados por um tempo, enquanto continuavam a descer. 

— Aqui na Espanha — continuou a menina, olhando para o chão — eu sou chamada de Troca. Ao menos é como classificam meu segredo. Mas lá no Japão existem diversos outros nomes e subcategorias bem mais detalhadas. Um deles, o mais comum, é o Troca tipo Sumonador, onde a pessoa tem segredos para trocar algo por outra coisa. 

— Você é uma Sumonadora?

— Não, Di. Eu até consigo fazer objetos desaparecerem e reaparecerem em outro canto se me esforçar, mas o que eu sou especialista é em ir de um lugar para outro. — Ela fazia ilustrações com as mãos enquanto falava. — Fui treinada assim desde pequena, então é natural que tenha mais facilidade com isso do que com outras coisas. Então minha subcategoria, mais específica, é Saltadora.

Diego ficou intrigado com um nome por um tempo. Aquelas subcategorias, tipos e outras coisas confusas não eram ensinadas para ele.

— E por que não é chamada assim aqui? — quis saber.

— Cada país tem sua maneira de chamar os sete tipos de segredo, Di. O Japão é muito avançado, o primeiro ano de lá nem se compara com o primeiro ano daqui. Nem falamos “Troca” lá. A tradução para o espanhol seria algo como: Conjurador.

Diego franziu o cenho.

— Esse nome é muito melhor do que Troca. Por que não mudam o nome dos poderes daqui para algo assim?

Margô riu gostosamente, sem ligar muito para o eco que fazia. Isso fez o rapaz ficar levemente preocupado, porém por pouco tempo. 

— Por que você acha que em todo canto do mundo eles chamam esses segredos de nomes diferentes? — Não esperou uma resposta. — Porque, por exemplo, aqui na Europa, os Assistentes gostam de enganar os Leigos bem embaixo do nariz deles. Ninguém acharia que uma instituição de caridade tem pessoas com poderes incríveis, não é?

O rapaz balançou a cabeça afirmativamente.

— Pois então — continuou a garota. — O Craveiro é oficialmente uma instituição, e essas instituições têm de fazer relatórios para o governo dos Leigos, pagar impostos, tributos, essas coisas todas. 

— Certo, mas o que isso tem a ver com os nomes?

— Os nomes são para disfarçar. É para ninguém desconfiar das atividades da sede. Ainda não entendeu, não é? Tá, deixe-me explicar melhor: É mais fácil explicar o porquê um professor é classificado nos documentos como um Troca ou como um Conjurador? Porque acredite, eles vão querer saber.

— Acho que é a mesma coisa — disse o rapaz com sinceridade. — Classificar um professor de Troca é tão estranho quanto chamar de Conjurador.

— A questão é que funciona — falou a menina, adquirindo um tom de irritação na voz. — Também não concordo muito com essa decisão do Craveiro se fingir de santo e ficar embaixo do nariz desses patetas, mas fazer o que, não sou eu que decido essas coisas. Só digo que a Sakura era bem melhor. Lá a gente não tinha de ficar abaixando a cabeça para ninguém. Fazia o que desse na telha e pronto, depois resolvia o resto.

O rapaz, que começava a querer se distanciar da conversa, resolveu ficar quieto por um tempo, deixando a menina falar sozinha. Para sua sorte o fim da descida estava próximo e por isso pôde ver a próxima sala logo a frente.

Quando chegaram, notaram que se tratava de uma réplica idêntica à primeira sala em que chegaram, tirando apenas a ausência da indicação do banheiro. E para a sorte dos dois, essa sala só tinha uma única porta.

— Trancada — disse a menina. Ela fez sinal para ele com a cabeça. — Vamos lá.

Meio aborrecido, o garoto novamente a segurou pela cintura e a ergueu até a altura do vidro, onde pôde ver o lado de dentro e novamente desaparecer com aquele barulho estranho de capa esvoaçando. A porta rangeu, fez um barulho estranho e por fim abriu.

Esse lugar era apenas breu. Estava tão escuro que foi difícil achar a sua amiga. Os dois tiveram de se segurar no ombro um do outro para que não se perdessem. E também seguindo a voz. 

O piso era fofo e de vez em quando um deles esbarravam em astes que saíam do chão até o teto. Depois de um minuto, os olhos deles se acostumaram ao negrume e constataram que tais hastes se tratavam de…

— Galhos! — sussurrou o garoto.

Eram galhos negros e finos repletos de nós em sua extensão. Parecia que se contorciam de maneira penosa e diabolicamente macabra, de modo que, se Diego usasse apenas um pouco de sua imaginação, poderia muito bem ver formas de rostos.

— Di! Duas portas de novo.

O garoto parou de olhar assustado para os galhos e voltou sua atenção para onde a menina mirava. Observou que de um lado da sala, mais à direita, havia uma porta de onde saia uma leve luz azulada. Essa porta não parecia emitir calor, como as outras. A da esquerda não emitia luz alguma.

Se aproximando da porta direita, o garoto sentiu novamente uma pontada na barriga. Dessa vez foi mais forte, como se alguma coisa quisesse explodir de dentro para fora. Colocando as duas mãos por cima, o garoto teve de se agachar no chão para suportar a dor. Ele ouviu um assobio.

— O que foi, Di? — A garota se aproximou e colocou a mão em suas costas. — O que foi? Tá com dor de barriga? A gente tava em um banheiro agora a pouco…

Repentinamente alguma coisa bateu na porta da direita com muita força. Os dois saltaram para trás, os olhos arregalados para a direção da porta, observando o vidro. Ouviu-se um rugido do outro lado da porta.

— Vamos sair logo daqui… — gemeu o rapaz, se levantando e puxando a garota consigo.

— O que… O que é aquilo?

— Agora!

Mais uma batida na porta fez a garota dar um salto e por fim seguir o garoto até a porta a esquerda. Abriram a porta o mais rápido que puderam, depois a fecharam atrás deles e continuaram correndo até a próxima sala, desesperados.

Aquela sala parecia muito com a primeira, exceto que haviam dois corredores à direita e também havia uma placa escrita B-1. 

— E agora, para onde? — perguntou a menina, euforica.

O rapaz olhou de um corredor para o outro, sem ter certeza de qual deveria ir. O mais a esqueda ou o mais a direita? Sem tempo para pensar o rapaz foi em direção ao da direita, porém parou antes mesmo de atravessar o arco do corredor, pois viu a silhueta de algo obscuro, grande, peludo e com olhos amarelos vir por ali.

— O outro corredor! O outro corredor!

Os dois saíram correndo pelo corredor da esquerda. Ali tiveram de ser cautelosos porque também era um caminho inclinado, porém este havia escadas. Pularam as escadas o mais rápido que podiam até chegar em outra sala.

Ouviram o rugido da besta atrás deles, o garoto sentindo um grande mal estar. A sala que estavam só havia um caminho para a esquerda, por isso foram por ali. Novamente chegaram em outra sala com um único caminho para a direita. 

Quando finalmente chegaram na última sala, notaram que ficaram encurralados. Havia duas portas, uma do lado direito e outra da esquerda. As duas portas pareciam fechados e apenas abririam pelo lado de dentro. A da direita tinha um brilho amarelado, enquanto a da direita um vermelho forte.

— Me levanta, rápido! — gritou a menina, desesperada.

O rapaz obedeceu, ouvindo os cacos da besta enfurecida atrás deles, virando uma esquina por vez, rugindo e fazendo um barulho aterrorizante. A garota desapareceu em um segundo. E no mesmo segundo a fera virou a esquina.

Diego via claramente. Era mesmo um nocivo ao estilo humanoide. Patas de carneiro, braços longos e com garras. Cabeça de cabra, com chifres levemente ondulados. A Besta, a de seu sonho, era muito maior e assustadora que aquela, porém ainda assim… Aquilo lhe dava medo.

O rapaz começou a passar mal, sentiu a sua barriga borbulhar. A garota não havia aberto a porta até ali. Ele não podia ficar parado. Se jogou na outra porta, a da direita, e para sua surpresa está estava aberta. Ouviu os passos da criatura lhe seguindo. Queria ele.

O rapaz parou em outra sala com um único caminho. O rapaz não deu atenção, continuou correndo desesperadamente, até que chegou em uma outra porta. Ele se jogou com toda a força sobre ela, a fazendo abrir. 

O garoto adentrou o novo ambiente. Este era diferente dos demais, tinha uma neblina dourada para todo o lado e varios troncos de arvores espalhados pelo teto, paredes e pelo chão. O rapaz correu de um lado a outro, derrubando vasos, objetos estranhos e entre outras coisas curiosas.

Aproveitando a neblina dourada, foi para o mais fundo que podia daquela sala e se escondeu atrás de um enorme tronco. Parou em um solo fofo. Fofo até demais. Apalpou o chão por um tempo e notou que se tratava de areia. Mas areia não brilhava daquele modo.

O garoto observou melhor. Era como um pó dourado e brilhante. Olhou para o tronco que estava escorado e viu que ali tinha uma plaquinha com um nome assim como os das outras salas em que esteve: Elixir Do Ingênuo.



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