Volume 1

Capítulo 19: Said, O Domador de Ratos

O dia passou rapidamente, o sol se pós no horizonte e à noite caiu, tornando as antes animadas ruas de Jaisen em um lugar vazio sem sinal de vida.

— Eu ainda não entendo uma coisa — disse Sienna encarando o rosto do comerciante com dúvida. — Você diz que, desde a chegada de Amon, coisas ruins vem acontecendo, não é?

— Você dúvida de mim? — questionou Afreim com seriedade.

— Bem... É um pouco irreal. — Ela soltou uma risada rápida. — Viajei o dia inteiro pela cidade e ela parece ótima. Crianças andam felizes, os comerciantes vendem as suas coisas e os artistas são livres. Não é um pouco ilógico dizer que administração de Amon é ruim?

Um silêncio ocorreu. Sienna encarou o rosto envelhecido de Afreim, a expressão triste no rosto dele não fugiu dos olhos dela.

— Parece não é? — Ele soltou um suspiro. — Uma cidade tão vívida... Até agora foram mais de vinte sequestros. Vinte crianças desapareceram na ilha no período curto de 1 mês.

Sienna ficou pasma por um segundo, lembrando-se da mulher que tentou obriga-la a ir com ela.

— Mas esses desaparecimentos não afetam os outros? As famílias das crianças não reclamariam? Talvez até uma rebelião poderia ocorrer.

— Não é assim que funciona. Os piratas controlam toda a situação, calando a força aqueles que tentam qualquer coisa. Eles fingem que nada acontece, mas há algo sombrio rondando por essas ruas. E, além de tudo isso, aquele maldito Cassino está corrompendo tudo. Logo você verá.

O homem se calou e apenas fez um gesto de fúria. A menina de cabelos brancos balançou a cabeça, ainda um pouco cética com a situação.

Afreim fechou a sua loja e saiu com Sienna por uma porta escondida nos fundos. A dupla partiu na calada da noite, ocultos pela escuridão dos arredores. Eles tinham apenas uma lamparina comum e algumas roupas escuras para se disfarçar.

— O seu amigo disse que foi para o porto, não é? Vamos começar por lá. — Afreim tomou a dianteira e Sienna seguiu com a cabeça baixa.

As ruas estavam escuras, um breu completo. Perde-se naquela escuridão era uma possibilidade, então os dois caminharam bem próximos um do outro.

Além da escuridão, Sienna foi atacada por um frio congelante, que era muito diferente do calor terrível que fazia durante o dia. Aquela parecia ser uma situação costumeira da região, pois Afreim não reclamou em nenhum momento.

O comerciante continuou guiando-a até que Sienna tropeçou em algo e caiu no chão. Um pouco desnorteada, ela se levantou e escutou um resmungo. Ao olhar para onde tropeçou, viu um homem caído. Ele era barbudo, fedia, estava embriagado, sem falar das feridas abertas por todo o corpo.

 Ela rapidamente pulou para trás e quase soltou um grito, mas a sua boca foi tampada tão rápido quanto.

— Não grite. Eu não quero problemas com mendigos — sussurrou Afreim soltando o aperto da boca de Sienna.

Ela logo deu um passo para trás, pegando um pouco de distância do morador de rua.

— Eu não vi nem um mendigo durante o dia.

— É de noite que as coisas mudam, garota. Seja bem-vinda a verdadeira Jaisen. — O homem levantou a lamparina em direção a um beco escuro, revelando uma assustadora visão. No beco, dezenas de pessoas se amontoavam como ratos vivendo em um esgoto. — Por está razão que eu quero matar Amon.

A menina de cabelos brancos ficou sem ar, observando o estado deplorável dos homens e mulheres que fugiam da luz do fogo, como animais assustados. Todos feridos, sujos e com olhares de ressentimento.

— Vamos logo. Antes que um deles nos dê uma facada, ou até pior.

Afreim continuou em frente; Sienna seguiu atrás um pouco receosa. Havia realmente algo de errado naquela belíssima cidade.

— Onde estão as outras pessoas? — perguntou a garota.

— Anoiteceu, garota. Durante à noite, não se pode ver uma única alma limpa nesse lugar. O pôr-do-sol é como um alerta para aqueles que ainda não foram corrompidos. Entre em casa e proteja os seus, pois a verdadeira Jaisen chegou.

Um calafrio passou por todo o corpo da menina. Suor frio desceu pelas costas e o vendo gélido tremeu até a sua alma.

Eles mantiveram um ritmo rápido na caminhada, até que alcançaram um rua próxima do porto, onde já era possível ver algumas velas ao longe.

De repente, do meio de um canto escuro, o som de algo quebrando ressoou. Afreim puxou a garota para trás dele e apontou a lamparina para o escuro.

— Quem está aí? Saia agora! — exclamou o comerciante resoluto.

Um segundo passou, mas logo algo saiu de entre o lixo. Era um pequeno ratinho que os observou rapidamente e logo saiu correndo em direção ao beco. Os dois suspiraram e seguiram para o porto.

Alguns metros depois, outro som ressoou; desta vez de um beco escuro.

— Outro rato? — murmurou Sienna.

Afreim apontou a lamparina para o escuro e rapidamente foi comprovado ser um rato. Contudo, começaram a surgir cada vez mais e mais deles. O número passou das dezenas e alcançou as centenas.

No susto,  Afreim deixou a lamparina cair no chão e só teve tempo de gritar:

— Corre!

Ele empurrou Sienna para frente e os dois saíram enlouquecidos. Os ratos começaram a perseguir a dupla.

A menina olhou para trás e viu os olhos vermelhos terríveis dos roedores. Eles passaram por cima da lamparina que caiu no chão, destruindo-a completamente. Ela foi puxada pelo braço e continuou correndo em um ritmo frenético.

— O que está acontecendo? — exclamou Sienna tropeçando nos próprios pés.

— É um dos homens de Amon! Ele não pode ficar longe dos ratos, então só corra!

Chegando próximo de uma encruzilhada, o homem puxou Sienna para uma rua na direção contraria da que estavam seguindo. Por um instante, Sienna conseguiu ver o mar ao longe, mas ele logo se afastou.

O som da grande quantia de roedores correndo era incessante. Era um grunhido irritante que perfurava os ouvidos.

A dupla alcançou uma rua sem saída. Os ratos estavam logo atrás. Afreim percebeu um pequeno muro de madeira e ajudou Sienna a passar por ele com dificuldade. Ele logo começou a escalar, mas, por ser gordo, teve muitos problemas em subir.

Nesse meio tempo, os ratos alcançaram o beco.

Afreim conseguiu passar pelo muro e os dois voltaram a correr. Eles achavam que o muro conteria a multidão por alguns segundos, possibilitando uma fuga mais suavizada. Contudo, um som ressoou por detrás deles.

O sólido muro de madeira partiu ao meio. Alguns ratos morreram no processo de quebrar a madeira, mas os demais apenas passaram por cima deles.

Logo, os ratos os alcançaram. Sienna deu um passo para trás e olhou para Afreim.

— Corra! Vire na próxima rua e se esconda. Eu vou segurar eles o máximo que consigo.

— Mas...

— Vai logo!  — Sienna não queria abandonar ele, mas a insistência do homem era forte. — Relaxa, eu vou sobreviver.

Ela assentiu com a cabeça e fugiu na direção da outra rua. Ao chegar no lugar, caiu de joelhos no chão. Outra multidão de ratos lhe esperava. Sem escolha, retornou para o lado de Afreim.

— É... Parece que entramos em uma enrascada, garota. — O comerciante soltou uma risada feia enquanto os ratos aproximavam-se devagar.

A dupla foi cercada pelos roedores em uma rápida velocidade. Não havia uma única alma viva na região que pudesse ajudá-los, Jaisen parecia uma cidade fantasma. Sienna tentou lembrar-se de alguma coisa, ela buscou tudo o que sabia, mas, ainda assim, não viu escapatória.

— Desistam logo, eu sou invencível junto dos meus bebês — Uma voz soou por todo o beco escuro. Era um voz arranhada difícil de se ouvir, ainda mais difícil de se entender.

— Quem está aí?! — exclamou Sienna colocando-se na frente de Afreim.

— Eu sou Said! — Um homem baixinho, dentuço e pançudo saiu de entre os ratos, surgindo da escuridão solitária. Ele não tinha uma das mãos e estava cheio de manchas pelo corpo possivelmente causadas pelas doenças que contraiu dos ratos. — O domador de ratos!

Ele apresentou-se como se estivesse retirando uma cartola da cabeça e dançou com passos ligeiros em direção a dupla. Ele se apoiava o tempo inteiro em uma bengala de madeira com a ponta afiada.

— O que você quer comigo?

— Eu? Eu não quero nada além de ficar com meus bebês, mas... — O homem sorriu com deboche. Ele estava tentando imitar o sorriso de Amon. — O cretino do meu chefinho quer você, então... Venha comigo!

A expressão no rosto do homem mudou no último trecho da sua fala. Ele levantou a sua mão e apontou para que os ratos atacassem e, como marionetes, as pequenas criaturas correram em direção à menina.

Eles subiram pelas roupas dela, puxaram os seus cabelos e roupas. Sienna se desesperou, tentando escapar dos ratos em desespero. Afreim tentou ajudá-la, mas logo a ponta da bengala foi colocada no seu pescoço.

Nananinanão. Fique quietinho aí.

Sienna foi jogada no chão pelos ratos. O seu corpo estava cheio de feridas e vários dos fios brancos do seu cabelo foram arrancadas pelas criaturas. Entretanto, diferente de outras vezes, a raiva era o que estava lhe consumindo por dentro.

De repente, um brilho forte surgiu dos céus; isto chamou a atenção de Said. Os olhos de Sienna brilhavam como fogo, mas eles não eram a fonte da luz. O brilho também fez com que Said pudesse ver o rosto do comerciante o que lhe deixou pasmo.

— Você... — Antes que pudesse terminar de falar, Sienna enfurecida levantou-se do chão. — Bebês! Parem-na!

Os ratos estavam imóveis, eles nem piscavam. Sienna estendeu a mão para cima e os ratos seguiram com suas cabeças em direção a ela. Rapidamente a mão apontou para Said que de imediato suou frio. Um dedo foi levantado e outra vez os ratos atacaram, mas desta vez o alvo era o seu antigo dono.

O homem pançudo se desesperou e começou a fugir, sendo levado pela onda de ratos. Em seguida, os olhos de Sienna pararam de brilhar.

— Garota? O que foi aquilo?! — Afreim estava realmente surpreso. Os olhos do homem estavam esbugalhados e ele nem imaginou que aquilo fosse possível.

— Eu não sei...

— E aquele brilho? Foi você também... — Antes que pudesse terminar de falar, o comerciante foi atingido por um sombra negra.

Afreim foi arremessado contra uma parede e uma lâmina foi pressionada contra o seu pescoço. Engolindo em seco, ficou parado suando frio.

— Ele machucou você? — Uma voz suave e ao mesmo tempo fria ressoou. Sienna a reconheceu na mesma hora e um sorriso de alívio surgiu em seu rosto.

— Morpheus!

A sombra negra que arremessou Afreim era ninguém menos que Morpheus.

— Eu estava atrás de você, menina. — Apesar de não parecer, Morpheus estava aliviado e Sienna sabia disso e correu para dar-lhe um abraço.

Morpheus tentou soltar, mas percebeu o aperto forte que Sienna fazia. Ele percebeu o desespero que ela passou, então permitiu que ela continuasse apertando-o com força.

Alguns segundos passaram, o silêncio foi quebrado pelo gemido de Afreim.

— Poderia me soltar agora? — O comerciante já estava ficando roxo.



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