Volume 1

Capítulo 10: O Frescor da Mudança de Ventos da Alvorada

— Colth. Colth. Aí cara, acorda.

— O que foi? — O rapaz abriu os olhos e viu Aldren de pé em frente a porta do quarto o apressando.

— Já é de manhã. Fazem cinco minutos que eu tô tentando te acordar — disse ele com olhares de reprovação para o colega de quarto.

— O que eu posso fazer, Aldren? Eu tenho um sono pesado... — respondeu Colth sem abrir os olhos.

— Acorda logo, vamos nos atrasar.

— Ai, ai. Tá bom. Tô levantando.

— Que vergonha... — Aldren fazia questão de mostrar o seu tom corretivo.

— Aff...

Após o esforço de Colth, e o aguardo paciente de Aldren, ambos se aprontaram e saíram do apartamento com objetivo de chegar ao restaurante. Colth ainda parecia um morto vivo com um caminhar sonolento em meio a praça com resquícios das festividades do dia passado. As ruas residenciais ao redor dali, eram tomadas por vários pedestres que caminhavam em uma só direção.

— Esse lugar é sempre movimentado, assim? —  iniciou Aldren ao notar a fila de moradores que se dirigiam até a estação de trem de passageiros do Norte, rumo aos seus trabalhos.

— Acho que é isso que as pessoas chamam de horário de pico. Não é tão surpreendente. — respondeu Colth amargurado enquanto bocejava.

— O que você queria? Estão todos indo para o trabalho.

— Você fala como se entendesse do assunto. Não sabia que já tinha morado na capital. — Colth usou do sarcasmo para manter a conversa enquanto passavam sob a tenda que abrigou os artistas na noite passada.

— Não. Nunca morei, mas a minha antiga casa em Rasuey ficava próxima a uma estação de trem onde os operários das grandes minas de Sathsai utilizavam para chegar ao trabalho — respondeu Aldren enquanto se lembrava da vista de sua janela, sempre observava esse tipo de movimentação nas manhãs da sua vida antiga.

— Entendi. — concluiu alongando os braços. — De qualquer jeito, acho que Rasuey é maior que Toesane. Nunca que eu veria tamanha movimentação cotidiana assim, por lá.

— Então deve ser verdade, Toesane é a menor cidade de toda Albores. — Aldren expunha o seu conhecimento.

— A menor? Sério? — Colth se surpreendeu franzindo as sobrancelhas de modo lamentoso.

— Você pareceu desanimado — percebeu os ombros do colega em direção ao chão sem relutância. — Talvez isso seja bom. Vai ver, foi por isso que Toesane foi a última cidade a ser anexada pela Capital.

— Isso é “bom” onde? — Colth não tinha outra resposta que não uma bem rabugenta. — Minha cidade era tão irrelevante que foi deixada por último.

— Eu sei lá. Só estava tentando te animar.

— Não ajudou. — Respirou fundo encerrando a conversa quando percebeu que já estavam na entrada do restaurante.

Assim que a dupla adentrou pela porta dupla do Gato implacável, encontraram duas pessoas que pareciam esperar por eles. Garta e um pequeno garoto alegre, em meio ao vazio salão do restaurante.

— Bom dia. — Aldren cumprimentou a todos com o seu sorriso de sempre.

— Bom dia — respondeu Garta. — Estão prontos para o primeiro dia no Norte?

— Claro. Tenho certeza que vai ser melhor do que aquele seu mundo, ou então Rasuey. — Aldren respondeu sem medir as reclamações sobre a sua cidade natal, ele mesmo se indagou sobre o sentido de ter falado aquilo tão de repente.

— Você é de Rasuey? — O garotinho perguntou. No momento em que ele ouviu aquelas palavras, os seus olhos brilharam. — Você já foi na montanha de Caiwa?

— Se eu já fui? Eu morei lá — respondeu simpaticamente.

— Uau!!! — O menino expressava o seu entusiasmo no inocente sorriso que só uma criança de dez anos possui. — Você já viu uma criatura sombria?

— Se-se eu já vi uma criatura sombria? — Aldren sabia do motivo daquela pergunta, mas não do motivo do entusiasmado do garoto.

— Do que você está falando, Jorge? — A pergunta atravessada veio de Garta para a criança.

— Nas montanhas de Caiwa há muitas criaturas sombrias. — Jorge tentou explicar de imediato. — Duens, Capelobus, Sirveres, e até Farates. Foi o que o senhor Papinhas falou.

— Senhor, quem? — Aldren se surpreendeu mais uma vez, Colth teve a mesma reação.

— Esquece isso. — Garta minimizava a situação. — É só um apresentador de um programa infantil bobo da rádio.

— Não é bobo! — O garoto ficou bravo como qualquer outra criança ao ser confrontada com uma opinião que lhe desagradava.

— Jorge, escuta. — Garta disse calmamente frente ao garoto. O seu tom de voz, doce e amável, deixavam Colth e Aldren minimamente surpresos. — O que eles falam na rádio é tudo de mentirinha. As criaturas sombrias aparecem em vários lugares, não só em Rasuey.

— Em vários lugares, Garta? — O menino pensava por um segundo antes de se animar. — Então... Eles podem aparecer aqui na Capital?

— Na capital? — Nem mesmo Garta, poderia prever aquela pergunta. — É... Sim.

— Sério que criaturas sombrias podem aparecer por aqui? — Aldren sussurrou apenas para Colth.

— É claro que não — respondeu ele. — É só para o menino parar de falar besteiras sobre as outras cidades.

— Ah... Entendi.

— Então, se eu tiver sorte, posso ver um Sirveres algum dia? — O garoto se perguntava quase como se falasse com um amigo imaginário. — Que legal!!!

— Não. São perigos... — Garta tentou chamar a atenção do garoto de volta, mas já era tarde.

Jorge pulou de alegria e começou a correr pelo salão sem dar a mínima atenção as palavras da mulher. Criaturas sombrias eram perigosas e matavam pessoas sem qualquer distinção ou remorso. Eram realmente feras sanguinárias e selvagens pouco conhecidas e compreendidas, mas para aquela criança em especifica, tudo isso não importava.

— Ah... Esquece. — Garta desistiu do garoto e voltou a sua atenção para os outros dois. — Eu tenho alguns trabalhos para fazer, então vamos...

— Espera. Antes disso. Onde está a Celina? — Aldren não se orgulhava de insistir, mas também não se envergonhava.

— Você não larga do pé dela mesmo, né? — respondeu Garta mergulhada em sarcasmo, seus olhos meio cerrados demonstravam todo o seu deboche. — Relaxa, ela está bem.

— Eu quero vê-la.

— Ah? Ela está escondida, você sabe disso — respondeu a guardiã. Se forçando a estar surpresa, ela começou a falar o que já tinha ensaiado em sua mente para tal situação. — Eu não posso simplesmente sair revelando a localização para você assim. E se, algum dos seguidores da Deusa de Lux, te capturar e forçar você a falar? Você estaria se colocando em risco. Quer mesmo isso?

— Sim. — Aldren não pensou duas vezes. A sua resposta foi imediata, assertiva e certeira.

— O quê? — Agora sim, a resposta de Garta era legitimamente surpresa. Foi o mesmo sentimento que Colth teve ao ouvir a palavra vinda de Aldren, mas ele se conteve o bastante para ficar absolutamente em silêncio.

— Sim. Você me ouviu. Agora, me leve até ela. — Aldren repetiu a sua resposta seriamente, não mudou em nada o seu tom de voz. — Eu sei que ela está aqui no prédio.

— Espera. Você ouviu o que eu disse? — Garta não esperava por aquela resposta, imaginou que o rapaz fosse abandonar a ideia ao ouvir os seus argumentos, mas foi ignorada. Pior, o rapaz negou que aquilo fosse relevante. Ela não tinha previsto uma resposta com tamanha valentia. — Você vai colocar a Celina em risco se for pego por...

— Eu não vou revelar nada. Eu estou disposto a tirar a minha própria vida, se algo acontecer — respondeu em tom absurdamente sóbrio.

— Calma Aldren. — interrompeu Colth ao dar um passo à frente. — Não seja tão...

— Colth, você não entende. Eu devo isso a ela. É só isso que resta.

— Foi o mesmo que ela me disse... — Garta sussurrou em tom constatador ao ser atingida pelas recordações do dia anterior.

— Você disse alguma coisa? — perguntou Aldren ao perceber a mulher desviar o seu olhar emotivo pelo piso do salão do restaurante

Garta hesitou, demorou para erguer seus olhos de volta aos rapazes que esperavam por sua resposta e, quando o fez, tratou de esconder qualquer sentimento aparente em seu rosto.

— Certo, tudo bem. Eu vou pedir para que a Bertha deixe você ajudar nas tarefas. — A guardiã assentiu ao pedido de Aldren em partes, em seguida, deu dois passos em direção ao rapaz e o encarou de perto. — Não faça eu me arrepender disso.

— Cla-claro. — gaguejou ele ao experimentar o olhar mais ameaçador.

— O trabalho da Bertha vai ser bem simples, então você só tem que se manter atento. — Garta se afastou, mas continuou com o seu tom minimamente aterrorizante. — E nada de falar sobre a situação da Celina ou sobre os guardiões com qualquer outro. Você entendeu?

— Sim. — respondeu aceitando as imposições da mulher.

— Colth, espere com o Jorge lá fora — ordenou a guardiã como uma líder. — Aldren, me siga, vou te levar até a Celina.

Assim que Colth, sem nenhuma recusa, deixou o restaurante com o garoto, foi abordado por ele:

— Ei, tio. Você também é de Rasuey?

— O quê? Eu não sou o seu tio. Meu nome é Colth... — respondeu erguendo o nariz. — E não. Eu sou de Toesane.

— Eu nunca ouvi falar. Lá tem criaturas sombrias?

— Para falar a verdade, não tem muitas não — Colth respondeu pensativo.

— Entendi. — O garoto se manteve sério. — Lá tem plantação de chocolate?

— Plantação?

— É. Igual as de Tekai.

— Existe plantação de chocolate em Tekai? E quem te disse isso? — Colth franziu as sobrancelhas de modo a duvidar do garoto.

— A minha amiga dos bolinhos. — respondeu sorrindo.

— Ah, entendi. É aquele negócio de amigo imaginário. Não está um pouco velho para isso?

— Não é imaginaria. Ela realmente existe. — Jorge cruzou os braços e encheu suas bochechas de ar.

— Tá, claro que é.

— É sim. Ela até me trouxe um bolo uma vez.

— Mas é claro... — Colth escondeu seu sorriso de canto de boca, mas continuou com um tom sarcástico. — Ela vive em uma plantação de chocolate e distribui bolos por aí. Que pessoa impressionante.

— Não é? — O garoto voltou a sorrir inocentemente.

A porta do restaurante se abriu novamente e Garta saiu por ela.

— Vamos, Colth. Eu e você temos outro trabalho. — ordenou ela mais uma vez. — E Jorge, não esqueça de voltar para sua casa na hora do almoço.

— Tá bom... — o garoto respondeu nada entusiasmado e começou a correr pela praça em mais uma de suas brincadeiras. Nem se despediu.

— Quem é esse aí?

— É só um garoto que vive por aqui. — Garta deu início a sua caminhada.

— Que bom que você esclareceu, eu nem imaginava isso. — caçoou ele. — E para onde vamos? — Colth seguiu os passos da mulher.

— Eu já disse. É só um pequeno trabalho.

— Não acha que está pegando um pouco pesado demais? — o rapaz puxava conversa ao alcança-la.

— Do que você está falando?

— Do Aldren. Você não queria deixá-lo ver a Celina.

— Eu estou protegendo um mundo inteiro, nada é mais importante do que esse objetivo.

— Sério? Então por que você simplesmente não dá um sumiço no Aldren, ou até mesmo em mim? — continuava ao lado de Garta. — Você só precisa da Celina, mesmo.

— Quando você fala em “sumiço”, se refere a assassinato? — perguntou ela em tom sério.

A dúvida de Garta era sincera, mas era uma pergunta tão pouco convencional que Colth demorou um breve momento para perceber que não era mais um de seus sarcasmos descabidos.

— Bom, eu não chegaria a esse extremo, mas...

— Se eu fizesse isso... — A guardiã parou em meio a praça vazia e mostrou os seus olhos com incertezas, atrás das lentes de seus óculos, para o rapaz. — Estaria destruindo um pouco, um pedacinho que seja, desse mundo que eu quero proteger, não? Eu não seria diferente da Deusa de Lux.

— Eu não sei como responder. Não esperava isso... — Colth se surpreendeu de forma tão legítima, que acabou expondo os seus pensamentos em voz alta.

— Não esperava? O que você acha que eu sou? — perguntou Garta de forma leve, por um segundo parecia ter baixado a guarda de seu temperamento truculento, pensou em dar um tempo para ouvir a resposta do rapaz, mas desistiu imaginando o que poderia vir. Continuou ao voltar o seu caminhar: — Mas de fato, isso não partiu de mim. Foi meu irmão Hikki que disse.

— Isso faz muito mais sentido —sussurrou Colth para si mesmo.

— “Não machucar ou matar, mesmo que seja necessário.”

— “Não matar”? Isso é bem especifico. Espera. Então, você já...? — O rapaz parou sussurrando as suas palavras frente a um prédio já conhecido.

— Hã? — Garta estacou alguns passos à frente após ouvir o sopro de voz do rapaz e, assim que se virou, pareceu acanhada. — Está se perguntando se eu já matei alguém, não é?

— ... — O silêncio de Colth deixava a mulher ainda mais moderada.

— Me diz... — desviou o olhar para a rua vazia e tomou coragem para continuar com suas palavras. — O que você acha?

— O que eu acho? — Colth estranhou aquela pergunta vinda do nada. Não era o tipo de coisa que se espera quando o assunto aborda assassinato, isso era estranho até mesmo para Garta. O rapaz não sabia como responder, não queria responder. — E-eu não sei...

Jamais diria que aquela mulher parecia ser capaz de matar alguém, mesmo que ele realmente tivesse aquela opinião. Além disso, aquilo poderia ser algum tipo de abordagem ameaçadora por parte de Garta? Não, Colth descartou essa possibilidade assim que ela surgiu em sua cabeça. Garta não parecia nada ameaçadora quando fez a pergunta. Ela se assemelhava mais com uma garota pedindo um conselho, do que com uma mulher ameaçadora naquele momento. O que, por si só, parecia ser algo mais raro do que o aparecimento de uma criatura sombria na Capital.

Garta continuou olhando para rua vazia por alguns instantes sem qualquer reação, em seguida, se virou para Colth e transformou o seu olhar vazio em um olhar presumido.

— Eu devia ter imaginado que você não era capaz de responder uma simples pergunta dessas, seu tonto. — voltou a ter seu tom seco e direto antes de se virar.

— Isso era realmente necessário? — sussurrou o rapaz mais uma vez frustrado com o tom dela.

— Chegamos — disse Garta cessando o seu caminhar frente a um pequeno prédio na praça das duas grandes árvores na região Norte.

— Você é bem assanhada, né? — perguntou Colth presunçoso. Parou ao lado da mulher e, de braços cruzados, ficou diante do prédio que ele próprio havia passado a noite anterior. — Se você queria ter um encontro comigo, era só ter me dito.

—Não deveria ficar me irritando. — A resposta aborrecida de Garta já era esperada.

— Por quê? Você pode me impedir de voltar para Toesane? Ah é, você já fez isso — continuou irônico.

— Não. Eu posso... como você disse mesmo? “Dar um sumiço” em você. — Agora sim, o tom era de uma mulher ameaçadora.

— Você aprendeu rápido o significado. Agora me diz, por que voltamos para o meu apartamento temporário? — Colth cessou o deboche com a sua curiosidade.

— Não viemos para o seu apartamento. Viemos para isso. — Garta respondeu e apontou para a placa de madeira com os dizeres “Alfaiataria da Runa”.



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