Volume 1

Capítulo 22: Um Raio, Um Relâmpago

— Como é possível? — balbuciou Aldren. — Eu vi você...

— Morrer? — perguntou o homem mais velho mostrando os dentes cerrados. Era o famoso Buregar, talvez a pessoa mais poderosa de Rasuey. Sua raiva transparecia em seu tom de voz e olhos enfurecidos. — Seu moleque, você tirou tudo de mim! Eu vou...

— Calminha aí, tio lordaço — disse o rapaz do cabelo bagunçado Interrompendo a investida do burguês ao esticar a mão frente ao peito do mais raivoso. — Quem é esse mané?

Ambos adentravam sem pressa ao terraço no telhado da sede do ministério da Defesa. Aldren e Garta estavam absolutamente cercados entre os homens da policia da capital e a torre de transmissão na beirada do prédio. Mas aqueles dois homens é que chamavam a atenção e preocupavam.

— Esse é o garoto que matou a minha esposa, Bernard — o Burguês tentava justificar a sua raiva ao descolado que parecia dar as cartas por ali.

O flash de um relâmpago iluminou todo o telhado enquanto os três policiais que acompanhavam os homens posicionavam suas miras sobre Garta e Aldren debaixo de chuva.

— Você é realmente um riquinho inútil, não é mesmo? — provocou Bernard, o rapaz mal encarado ao lado. — Deixou que um baixinho desses te acertasse... Que patético. E quem seria essa garota? Ela não bate com a descrição da guardiã de Tera.

O provocador começou a caminhar lentamente em direção a Garta e Aldren. Seu cabelo arrepiado e seu casaco longo de couro avermelhado eram banhados aos poucos pela chuva.

— ... — Garta calou-se e deu um passo para trás em uma posição defensiva à Aldren, imaginou o que poderia vir a seguir.

— Eu fiz uma pergunta! — gritou o arrogante sem perder a postura atrevida. — O que foi? O gato comeu a língua de vocês?

Garta respirou fundo sem demonstrar o seu cansaço físico, mesmo não completando o último deslocamento, aquele drenou a sua energia como qualquer uso de sua habilidade. Ela soube que teria problemas assim que viu o homem com a palma da mão iluminada após o estilhaçar poderoso da porta de metal do telhado. Assim como ela, aquele também era um guardião, isso era certo.

Aldren deu mais dois passos para trás hesitando em resposta aos olhos sanguíneos do homem.

— Não se aproxime! — exclamou Garta se firmando ao chão e se colocando em posição de combate.

— Ou o que? — perguntou Bernard levantando uma das sobrancelhas e mostrando o seu sorriso de canto de boca presunçoso. Os policiais avançaram para fazerem questão de serem notados. Imediatamente, e ele esbravejou de imediato: — O que é isso!? Eu não mandei ficarem lá trás?!

— Senhor... — Um dos policiais se aproximava um pouco mais do irritado e sussurrava algumas palavras medrosas. — Essa mulher, ela é uma...

O homem das roupas de couro e cabelos exóticos ouviu trivialmente o policial sem dar a devida importância, mas assim que uma palavra em especifica chegou aos seus ouvidos, concentrou o seu olhar vaidoso em Garta e a encarou mais seriamente:

— Uma guardiã. — Repetiu o que havia escutado. — Vocês todos, esperem no corredor — ordenou aos oficiais fardados e armados.

— Mas senhor... — O policial destacado contestava.

— Cala a boca! Eu mandei saírem. Saiam! — gritou mais uma vez Bernard impaciente. — Essa é minha!

— Sim, senhor. — O oficial fez uma reverencia desastrosa e covarde antes de ordenar os seus subalternos a o seguirem para além do corredor.

Garta respirava fundo o ar frio da noite enquanto a chuva apertava sem se acanhar. Sabia que precisava esperar mais alguns segundos até poder utilizar a sua habilidade de deslocamento novamente.

Bernard sorriu levemente ao notar a saída completa dos policiais do telhado. O guardião voltou seus olhos para a barra de ferro ao chão, a mesma barra que havia segurado a porta antes de ela se partir em pedaços.

— Aí, lordaço! — O que se destacava, não só por seus cabelos e roupas, mas também pelo seu comportamento ousado, chamava a atenção de Buregar enquanto recolhia a barra de ferro do chão encharcado. — Você fica com o baixinho.

— Mas é claro. — respondeu o burguês sorrindo ardilosamente. Em seguida, olhou e apontou uma faca recém retirada de seu cinto em direção a Aldren, deu dois passos em frente com o olhar fervendo em raiva.            — Vou adorar acabar com você...

— Nem pense nisso! — exclamou Garta se colocando à frente de Aldren em guarda.

— Não é com ele que você deve se preocupar — interviu Bernard enquanto alongava os seus braços despretensiosamente com a barra de ferro se preparando para o que viria. Abriu a boca para fazer um pedido completamente inusitado à mulher: — Não me decepcione.

Garta estranhou as palavras, mas não teve tempo de responde-las, o homem deu seus primeiros passos para, em seguida, começar a correr na direção da guardiã. Se aproximou dela enquanto um relâmpago iluminava todo o céu noturno. Era um primeiro ataque, um avanço tão rápido quanto o estrondo do trovão que ecoou.

Com o braço invertido, da esquerda para direita, o atrevido movimentou a barra de ferro violentamente de encontro ao rosto da mulher. Garta não teve problemas para desviar do golpe, com um passo para trás e o inclinar do corpo para ficar fora de alcance, ela apenas ouviu o assovio do metal ressoando ao passar veloz diante de seus olhos.

Em seguida, a guardiã se preparou para seu contra-ataque, segurou o braço do homem que passara em branco em seu golpe pífio e tentou, ao trançar o seu tornozelo à perna do homem, derruba-lo em um só movimento, mas antes que conseguisse o feito, a barra de metal na mão de Bernard começou a vibrar em uma frequência absurdamente veloz enquanto se iluminava.

Swooish! O metal simplesmente se estilhaçou.

Em uma reação idêntica ao da porta do telhado minutos atrás, os estilhaços voaram por toda direção de forma violenta. Era como uma pequena explosão.

O rosto da guardiã estava extremamente perto daquela reação inesperada, era inevitável. Um, das dezenas de pedaços de metal, acertou em cheio uma das lentes dos óculos de Garta, mas não parou por aí, o estilhaço atravessou o frágil vidro e seguiu até alcançar a córnea do olho esquerdo da mulher, ela imediatamente parou o seu movimento de contra-ataque em resposta à dor extrema.

O sofrimento foi intenso, mas Garta não teve tempo de reagir, antes que o fizesse, o punho do rapaz acertou em cheio o seu rosto. Seu corpo foi arremessado metros com o impacto potente.

— Aahh!!! — A guardiã odiou a dor sentida ao tocar o chão molhado do telhado, a dor proveniente do soco do arrogante, mas principalmente, a intensa dor emanando de seu olho esquerdo.

A ardência envolvia por completo toda sua reação. A dor que vinha do lado direito de seu rosto acertado pelo soco do homem, passava completamente despercebida frente ao sofrimento extremo de ter um de seus olhos perfurados pelos estilhaços.

— Garta!!! —gritou Aldren em desespero.   Arregalou os olhos e, ao ver a colega voar para tão longe, tentou partir em corrida para socorro, mas assim que o fez foi acertado por um violento soco no estômago.

O outro oponente, Buregar, já havia se antecipado ao rapaz despreparado, o golpeou sem medir forças.

— Ufh! — Aldren caiu de joelhos sem conseguir outra reação que não essa. Já estava completamente fora de combate, antes mesmo de entrar nele.

— Você destruiu a minha vida. Eu vou acabar com você. — disse Buregar espumando suas palavras pela boca ao empurrar e se debruçar sobre o corpo de Aldren com a faca apontada para a garganta do rapaz.

Aldren resistiu com as costas no concreto molhado do telhado, se desesperou ao notar a lâmina se aproximando de seu corpo. Segurou as mãos do oponente com a faca instintivamente pela própria sobrevivência. Viu de perto os olhos raivosos do homem se esforçando para esfaqueá-lo enquanto a torre de rádio sombreava ambos.

Imaginar que aquele já fora um dos homens mais poderosos de toda Rasuey parecia maluquice, Aldren voltou a se arrepender de não ter notado todas as atrocidades que se passaram na mansão de Rasuey, principalmente as que envolviam Celina e sua mãe. Na verdade, havia notado, só não havia se manifestado.

A lâmina aguçada da faca brilhante de Buregar arranhava a região do pescoço de Aldren que continuava a se esforçar para manter o objeto o mais longe. Pouco a pouco, parecia ser inevitável a vitória do burguês naquela disputa de forças. Mais alguns milímetros e a ponta de metal alcançaria a garganta do alvo.

Desistiu sem perceber.

“Sempre me imaginei morrendo na minha cama, rodeado de uma família que construí depois de anos trabalhando no meu próprio restaurante singelo na região mais afastada de Rasuey.” Pensava Aldren, se preparando para sentir a sua última dor.

“Jamais pensei que seria assim. Por que foi que me envolvi nisso mesmo? Por que os meus planos simples foram completamente mudados? Ah é... foi por conta da Celina. A pessoa menos interessante desse mundo, sem qualquer carisma ou sentimento, ela nunca nem sorriu verdadeiramente para mim. Vai ver, é porque ninguém espera nada de mim. Ninguém mostra verdadeiros sentimentos por quem não se importa.” Aldren resistia aos seus últimos momentos em pensamentos manifestados pelo fim.

A torre de rádio se iluminou pelos relâmpagos e fez os olhos do rapaz brilharem ao refletirem a luz. Lembrou que já havia visto aquela cena, não só o rosto enfurecido do burguês, mas sim a posição que se encontrava.

“Essa torre deve ter a mesma altura daquela parede de escalada do exame. O Colth quase arrumou problema com o coronel por minha causa. A Celina quase chorou... Não, ela nunca choraria, e a Garta nos defendeu daquele emissário. Eu queria ter vencido aquela escalada, pelo menos ter terminado ela. Talvez assim...”

— Ahhh!!! — O grito distante de Garta chamou a atenção de Aldren interrompendo o seu pensamento e trazendo-o de volta.

— Você vai pagar por tudo!!! — Buregar colocava toda sua força sobre as mãos para empurrar a faca contra o corpo do rapaz ao chão.

 — Isso tá errado. — Aldren sussurrou entre os dentes cerrados.

— Cala a boca! Morre logo! — respondeu Buregar com mais força.

— Tá errado! — Aldren gritou resistindo como nunca antes o ataque do burguês. — Não vou perder dessa vez!

— De que merda você está falando?... Argh!

A faca começou a se distanciar do alvo com a força contraposta de Aldren. Ele não hesitou em dobrar o seu pulso com força para que o oponente sentisse a sua mesma dor com os ossos estalando em quase quebra. O Burguês se obrigou a soltar a faca. A arma branca caiu ao chão se afundando na poça da água que se acumulava.

— Merda... — O homem foi empurrado com força pelo rapaz.

— Eu percebi uma coisa, Buregar. — Aldren se levantou enquanto o oponente deu passos devagar para trás. O rapaz observou distante Garta do outro lado do telhado e fechou as mãos contendo o seu receio pelos gritos da mulher em desespero antes de voltar a sua atenção ao insano. — Nossas forças vêm das pessoas que queremos proteger.

 — O quê? — O homem franziu a testa ao notar olhar confiante de Aldren. Deu mais um passo para trás enquanto levou uma das suas mãos até o seu cinto nas costas.

— E você, Buregar, não tem mais ninguém para proteger.

Aldren se atirou para frente em passos rápidos, simplesmente um relâmpago.

O burguês puxou o seu belo revólver que carregava nas costas ao ser alvo do rapaz repentinamente endiabrado. Levou a mira até o baixinho ágil e não hesitou.

Um único disparo ecoou ao mesmo tempo que o estrondo de um raio cortante pelo telhado acertou a torre de rádio e ensurdeceu os dois mais próximos dali.



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