Volume 1

Capítulo 28: Do Outro Lado do Muro

Colth foi o último a passar por aquela estreita abertura nos muros da Capital, para ele, o espaço era muito apertado e as pedras ao redor da passagem arranhavam grosseiramente o seu corpo de modo a rasgar suas roupas e abrir ferimentos em sua pele. Não se abateu, continuou apressado.

O espaço foi se abrindo à medida que se aprofundavam no concreto até revelar uma curta caverna natural. Celina apressou-se na frente enquanto era seguida de perto pelo garoto. Foram só alguns passos para se depararem com o fim da, uma saída.

O túnel natural desembocava justamente no alto da encosta de uma alta montanha, dali era possível vislumbrar um grande vale com poucas florestas e vegetação rasteira que se estendiam além do horizonte.

Celina não deu qualquer importância para a bela vista, se preocupou de imediato, percebeu que o local onde se encontravam era relativamente alto, descer aquela montanha de forma segura levaria algumas horas.

— Não vai demorar para que encontrem a passagem, precisamos sair daqui — disse Colth se aproximando dos dois à beira despenhadeiro.

— Não tem saída — Celina afirmou com a voz pouco crédula. — Não tem saída, vai demorar muito descermos essa encosta.

O rapaz finalmente colocou os olhos na paisagem e, imediatamente, deu razão as palavras pessimistas da garota. Se tentassem descer, quem quer que fosse a sua procura, iria alcançá-los com facilidade.

— Podemos pular —sugeriu Colth apressado.

— Ficou maluco? — respondeu ela.

— Você tem outra ideia?

— O que é aquilo? — disse Jorge desfocado.

— Não é hora, garoto — o rapaz respondeu sem dar atenção à criança. — Então, o que você pretende fazer, Celina? Ficaremos aqui esperando os soldados chegarem? Se descermos em linha reta deslizando pela encosta, nada vai dar errado.

Jorge se descolocou ainda mais da discussão, estava curioso com algo sobre uma caixa de madeira ao lado da entrada da caverna, chegou mais perto.

— É muito arriscado, e se alguém quebrar uma perna? Como vamos continuar caminhando até algum lugar seguro? — Celina expandiu seus sólidos argumentos.

— Eu prefiro quebrar a perna, do que virar uma peneira por aquelas armas de Sathsai. Você ouviu o que o Helm disse, eles não estão brincando!

— Eu posso ficar com essa vela? — perguntou Jorge se colocando em meio aos dois.

— Vela? — Colth perdeu seu foco na discussão por um instante, quando observou o garoto, seus olhos arregalaram imediatamente. Tentou não mostrar a tensão evidente em seu rosto após engolir seco. — Jorge... me deixa dar uma olhada nisso.

O garoto segurava um objeto que realmente parecia uma vela, a grande diferença é que um papel pardo era enrolado em seu corpo cilíndrico e, se acesso, além de iluminar a escuridão, explodiria em questão de segundos.

Jorge tinha em suas mãos uma peça de dinamite. Foi obediente e entregou o objeto de bom grado para Colth, o rapaz suspirou aliviado ao retirar o explosivo da mão da criança sussurrando seus pensamentos:

— Essa foi por pouco...

— Isso é perfeito. Podemos explodir o túnel da caverna. — pensou Celina rapidamente.

— Explodir?! Isso sim, é que é perigoso. Sem chance. Não tem nem como acender o pavio dessa coisa.

A garota ficou orgulhosa, não demonstrou em palavras ou sorrisos, mas Colth pôde sentir no silêncio e nos seus olhos, que a garota tinha algo além da ideia maluca.

— O que você está pensando? — perguntou ele se preocupando.

Celina retirou do seu bolso uma caixa de fósforo e o mostrou.

— De onde veio isso?

— Do esconderijo escuro atrás da parede de tijolos. Aquele pobre casal não vai mais precisar disso.

Colth engoliu seco, sabia que não teria motivos contrários suficientes para interromper o que Celina estava prestes a fazer. A garota riscou o fosforo e aproximou a chama para perto do pavio do explosivo que o rapaz segurava em mãos.

— Tem certeza disso? — perguntou Colth uma última vez tirando o artefato de perto das chamas.

— Não confia em mim? — perguntou ela sincera com o palito de fósforo iluminando o seu rosto. — É só lembrar como o meu último plano deu certo.

— No seu último plano eu fiquei de costas para o uma criatura bizarra prestes a me acertar com garras mortais.

— Mas no final deu tudo certo.

— Aff — desistiu Colth desapegando-se de sua consciência e baixando a cabeça. Voltou o explosivo para perto da garota. — Faz logo.

O rapaz segurou o artefato firme e esperou suando frio a sua angústia. Celina aproximou o fogo com o cuidado necessário.

O pavio foi aceso. Colth entortou a cara mostrando todo o seu medo. Rapidamente se virou para a caverna e arremessou o explosivo para dentro. A peça de dinamite sobrevoou metros e pousou próximo a passagem apertada de concreto, o pavio era consumido enquanto o barulho das faíscas elevava a tensão a um outro nível. Jorge percebeu o ambiente angustiante e se abrigou às costas do rapaz abraçando a sua cintura.

— Estou com uma mal pressentimento — sussurrou Colth franzindo a testa enquanto protegia o garoto com suas mãos.

— Não se preocupe. — Celina tinha o seu pensamento lógico de sempre, mas nunca pareceu tão confiante. — A massa do explosivo é bem pequena, não há possibilidades de... Ahhh!

A dinamite explodiu violentamente liberando o seu poder em um rugido raivoso.

Diferente do que a garota dizia, a onda de choque do explosivo moveu a massa de ar de dentro da caverna para a única saída possível. O vento forte atravessou a caverna com o poder da condensado da nitroglicerina e acertou em cheio os três que estavam justamente entre a entrada e a encosta.

Colth agarrou mais forte o garoto, mas não resistiu. A garota não teve nem chance, seu corpo leve foi um alvo fácil. Os três foram arremessados montanha a fora.

Aterrissaram em movimento ao longo do declive, mas não pararam. Seus corpos, com a velocidade ganha através da gravidade, começaram a rolar sobre a grama rasa e as pedras duras da encosta por metros a baixo.

O rapaz abraçou com toda a sua força o garoto e tentou mantê-lo o mais seguro possível em meio ao caos da descida. Celina se odiou por ter aprovado aquela maldita ideia enquanto engolia terra e arranhava as suas canelas e braços no vórtice da sua própria queda.

Após segundos sendo punidos pela insensatez, finalmente os sucessivos tombos cessaram com o fim do declive. O movimento dos três estagnou assim que encontraram as margens do imenso vale. Se encontraram deitados sobre a grama baixa e permaneceram ali, imóveis, por um longo período, apenas enaltecendo as próprias dores.

— Vocês estão bem? — perguntou Colth se preocupando sem sair do chão. Observou e agradeceu por ver o Sol entre as nuvens estático novamente no céu.

— Sim — respondeu Celina em dor.

— Eu tô bem — Jorge fez o mesmo.

— Celina, você disse que... Ai, ai — Colth remoeu a dor, ainda deitado, antes de continuar — não havia problema em acender aquela dinamite.

— Você jogou a dinamite de forma errada. — respondeu Celina retirando as folhagens de mato que ficaram enroscados em seus cabelos.

— Eu joguei errado? — irritou-se se sentando na grama. — Ninguém quebrou a perna, você estava errada duas vezes — complementou convicto Colth apontando o seu dedo indicador para a garota.

— Isso é porque tivemos sorte. A probabilidade estava totalmente contrária a nós — disse ela virando o rosto ainda com as costas no chão.

— É claro que estava — concluiu o rapaz sem querer que o assunto permanecesse mais. Se levantou com dificuldades e ajudou o garoto ao seu lado a ficar de pé. — Bom, precisamos continuar. Encontrar um lugar para passar a noite.

— Tem razão — respondeu Celina. — Lá de cima da montanha, foi possível ver uma pequena construção a noroeste daqui, talvez uma casa.

— Então, temos um plano — aceitou Colth.

Se aproximou e ofereceu a mão para que ela se levantasse. A garota, à sombra dele, deitada sobre a grama confortável abraçando o seu corpo por inteiro, fixou-se aos olhos do rapaz se surpreendendo com a atitude. Colth, de imediato, acanhou-se ao notar a reação de admiração dela estampado em seu belo rosto, desviou o olhar corado.

— O que vamos fazer agora? — perguntou Jorge interrompendo os olhares e os pensamentos. Fez a pergunta olhando para o alto da ribanceira em despedida da sua antiga vida.

Celina se levantou e Colth se voltou ao garoto com a mudança de tom necessária:

— Bem, você disse que conhece essa tal mulher dos bolinhos, não?

— Sim, é uma amiga próxima da... Runa — respondeu o garoto em meio a um suspiro triste.

Jorge estava aguentando bem a morte de uma pessoa tão ligada a ele, evitou mostrar qualquer fraqueza a partir do momento que percebeu que tudo aquilo não era uma simples brincadeira, a sala escura secreta atrás daquela parede de tijolos deixou isso bem claro para ele.  Mesmo assim, era evidente os seus sentimentos.

— Ela, alguma vez, disse onde morava? — perguntou Colth evitando o assunto espinhoso.

— No centro da cidade de Tekai.

— No centro? — O rapaz desmoronou seus ombros cansados. — Ah, isso vai dar mais trabalho do que eu imaginava.

— Bem, para vocês ficarem seguros de verdade, devem seguir por aquela direção, vão achar a casa de que falei próxima a um bosque e, consequentemente, alguma estrada para o centro de Tekai. — Celina apontou para um lado e, em seguida, olhou para o outro. — Eu vou seguir por aqui. tenho que dar um jeito de voltar para Capital.

— Voltar? — perguntou Colth surpreso.

— Sim. Até onde sei, Aldren ainda está na capital. Tenho que, de algum modo, encontrá-lo.

— Mas você nem sabe se ele está lá.

— A probabilidade de Aldren estar na Capital é maior do que a dele estar aqui em Tekai.

— A mesma probabilidade que nos fez cair dessa maldita montanha? — perguntou Colth irritadiço.

— ... — silenciou-se ela com o rosto fechado e se virou caminhando para longe.

— Espera. Então, você vai, assim? — O rapaz interrompeu os passos da garota ao se colocar em seu caminho.

— Se eu seguir o muro, vou, mais cedo ou mais tarde, encontrar um portão da Capital.

— Eles vão acabar te encontrando quando você estiver entrando pelo portão. Certeza que estão vigiando as entradas da Capital à sua procura.

— Eu sei. Vou dar um jeito. — Celina desviou-se do corpo de Colth afrontoso e voltou a caminhar decidida.

“Por mais inteligente que essa garota seja, vai acabar sendo capturada ou até morrendo na primeira oportunidade que algum daqueles homens tiverem.” Colth pensou calado enquanto observava Celina se afastando.

— Espera! — Sua reação veio ainda enquanto refletia sobre. — E se... e se você vier com a gente para o centro de Tekai?

— Para o centro de Tekai? — Celina cessou os seus passos.

— Isso. Nós três. — O rapaz enrolava as palavras tentando ganhar tempo para pensar em um plano minimamente viável. — Nós três podemos ir ao centro de Tekai para tentarmos achar alguma pista quanto ao lugar que Aldren está.

— E porque Tekai teria informações sobre o Aldren?

— Bom, se parte do império, como o exército, está envolvido nisso, então os governantes das cidades podem saber de algo, já que são subordinados do império, não acha? — Colth apostou alto.

— Hum? — A garota levou o seu polegar sobre os lábios de maneira pensativa. Ainda não parecia totalmente convencida da ideia.

— E mesmo se, nós não descobrirmos nada, você ainda vai poder pegar o trem de Tekai até a Capital.

— Faz sentido. Mas isso tudo pode ser uma grande perda de tempo. Eu prefiro ir direto ao portão. — Celina concluiu o seu pensamento rapidamente e voltou a caminhar na direção dos muros.

— Eu vou junto com você! — As palavras de Colth saltaram de sua boca em apenas um impulso. — Se você decidir ir por Tekai, eu vou junto com você. Vou te ajudar a encontrar o Aldren. E a Garta, e a Bertha.

Os dizeres, um tanto tropeçados de Colth, surtiram efeito. A garota parou o caminhar e voltou a pensar no assunto novamente. Aquela era a última cartada do rapaz para não deixar Celina simplesmente andar por aí desprotegida em direção ao inimigo.

— Você vai me ajudar a encontrar o Aldren?

— Sim, eu vou ajudar. Não vou parar até achar todos eles, é uma promessa — reforçou a sua proposta.

“O que eu estou falando? Eu deveria estar me afastando de toda essa situação.” Pensou Colth com a face serena e convicta em falso.

Celina pensou na proposta por mais alguns instantes medindo a situação da forma que só ela sabia fazer, finalmente consentiu em meio a olhares receosos:

— Tá, me convenceu. Vai ser bom ter ajuda.

— Está decidido, vamos para o centro de Tekai procurar por pistas de Aldren e da tal mulher dos bolinhos. Alguém contrário? — perguntou Colth sabendo que a pessoa mais infeliz com aquela solução era ele próprio. Os outros se calaram. — Ótimo. Então, vamos.

Os três começaram a caminhada debaixo das poucas árvores da região em direção a suposta vila que a garota havia observado. Além daquela casa e dos campos amarelados, Celina não havia identificado mais nenhuma construção ou qualquer coisa que lhe chamasse a atenção anteriormente sobre a encosta da montanha. Realmente, estavam fora da Capital, mais especificamente na região periférica da cidade de Tekai.



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