Volume 1

Capítulo 30: Tríade Valente

Quando Colth se deu conta, estava em meio a um corredor luxuoso, com um tapete vermelho ao chão e lustres por toda a sua extensão, o rapaz se sentiu abraçado pelo suntuoso.

Colth espremeu os olhos para tentar enxergar o fim do corredor, mas não conseguiu. Para esquerda ou para a direita, não importava, o lugar parecia não ter fim. Com centenas de portas ao longo do corredor em ambas as paredes, a visão era de algo surreal.

— Onde eu estou? — sussurrou para se ouvir confuso.

Sem respostas, e com apenas uma mínima suspeita, Colth colocou um pé frente ao outro e caminhou pelo corredor observando as portas, suas formas, cores, e materiais, eram diferentes umas das outras, únicas, mas o rapaz não se sentiu confiante para ousar entrar por qualquer uma delas.

 Se por um lado lhe faltava confiança, por outro sobrou curiosidade ao colocar os olhos em uma porta que lhe chamou tanta atenção que o fez parar seus passos imediatamente.

Sentiu como se algo lhe chamasse, como se sua vontade tomasse forma e o empurrasse em direção a porta em madeira talhada com o desenho do que parecia um dragão imponente cuspindo fogo.

Colocou sua mão sobre a maçaneta. Não sabia o porquê de ter escolhido aquela em meio a infinitas possibilidades, mas teve certeza quando a palma de sua mão envolveu o metal escovado e girou o objeto sem pressa.

Colth empurrou a porta e encontrou uma sala encantadoramente luxuosa. As grandes janelas ao fundo traziam a luz para iluminar uma grande mesa ao centro do local com cadeiras acolchoadas a envolvendo.

Duas pessoas, uma mulher em um belo vestido azul simples e um homem maltrapilho, destoavam, ambas sentados à mesa, tiveram sua atenção roubada pelo confuso que ainda tentava entender onde estava após deixar o corredor para trás.

— Seu convidado? — perguntou a mulher de cabelos castanhos escorridos.

— Não. Quer dizer, sim — o homem respondeu tropeçante. Estava surpreso com a presença do rapaz ali. Se voltou para a porta recebendo-o — Colth, o que faz aqui?

— O que eu faço aqui? — o rapaz estranhou a pergunta mais do que qualquer outra coisa que o cercava. — Que lugar é esse? Quem é você?

Colth deu passos lentos para dentro da sala e arrancou olhares duvidosos da mulher sentada à esquerda da mesa, ela se voltou ao homem desarrumado na ponta e não mediu o tom desacreditada:

— Me diga que isso é um engano, Hueh. Esse é o seu...

— Não, não, não — o mal vestido interrompeu a fala da mulher sem qualquer delicadeza. Implorou com os olhos ardilosos para ela e então se voltou ao rapaz de pé. — Por favor, Colth. Sente-se, temos coisas para conversar.

— Você sabe o meu nome?

— É claro que eu sei seu nome...

— Só pode estar brincando — murmurou a mulher descontente.

— Vamos, sente-se — insistiu o homem. — Meu nome é Hueh, e essa — apontou para a mulher — é a minha convidada...

— Não diga meu nome, seu idiota — interrompeu ela.

— Ah! Tem razão. — Hueh percebeu o quão leviano estava sendo. Se voltou ao rapaz já sentado à direita da mesa. — Colth, se conseguiu vir para meu mundo, significa que está do lado de fora dos muros, como conseguiu?

— Nós fugimos por uma fresta no muro nordeste enquanto o exército atacava a região Norte e... Espera! Você disse, meu mundo?

— Atacaram a região Norte? — a mulher não nomeada se perguntou ignorando o rapaz. — Isso significa que Lashir já está agindo. Hueh, você precisa fazer alguma coisa, imediatamente — concluiu ela em um tom quase suplicante ao homem.

— Tá bom, já entendi — Hueh pediu calma com as mãos. — Colth, você disse que estava com mais alguém, quem está com você?

— Eu estou sozinho. Só lembro de ter caído no sono e, de repente, eu estava nesse corredor e...

— Não, eu não estou falando daqui. — O Homem chacoalhou a cabeça negativamente parecendo aflito. — Estou falando no mundo de Tera. Quem mais está com você?

— ... — Colth se calou com um ponto de interrogação desenhado em sua face.

— Antes de dormir, quem fugiu com você para fora dos muros? — insistiu. 

— Eu, Jorge e Celina — respondeu o rapaz ainda em confusão.

— Quem é Jorge? — A mulher deixou a pergunta no ar, mas foi ignorada.

— E a guardiã de Finn? Onde ela está? — perguntou Hueh ainda mais angustiado.

— Está falando da Garta? Ela foi mandada para a região Central, junto de Bertha e Aldren.

— Para a região central!? — O maltrapilho se surpreendeu de tal forma que fez as palavras de Colth parecer um insulto.

— Está tudo acabado — pronunciou a mulher em tom soturno — Eles vão tomar o palácio, alcançarão o meu túmulo e transformarão Tera em um mundo sem deuses.

Colth sentiu o clima da sala pesar, o tom quase fúnebre da mulher e o baixar de cabeça de Hueh deixava isso evidente. Seja lá o que estavam dizendo, parecia realmente importante, e suas notícias haviam trazido a desesperança, sentiu-se culpado mesmo sem saber o que havia noticiado.

— Ah!!! — gritou frustrado repentinamente Hueh. Colth se assustou, já a mulher, nem tanto. — Que seja. Colth, você disse que saiu pelo nordeste da cidade, certo? Deve estar no caminho para Tekai, então? — pensou alto antes de ganhar empolgação em seus olhos, sussurrou para si mesmo como se respondesse a própria pergunta: — Está decidido.

— O que está decidido? — estranhou o rapaz intruso.

— Você, Colth — Hueh brandiu as mãos sem direção —, mandarei um dos meus emissários para encontra-lo.

— Esqueceu que você não tem nenhum emissário sobrando, soninho? — reclamou a mulher com o apelido pravo sobre o desarrumado.

— Tem razão, o meu único emissário está... — desviou os olhos pensativos — Deixa pra lá.

— Parece até que é você quem precisa da minha ajuda — caçoou a mulher revirando os olhos. — Mande o meu emissário, ele saberá o que fazer.

— Tem certeza? Você havia me dito que essa era a sua última cartada.

— Parece que essa é minha última jogada mesmo. Nada mais justo do que sacar a minha última carta, não acha? — retrucou a mulher resoluta, recebeu a resposta em um aceno positivo de Hueh.

— Esperem. — Colth interrompeu. — Do que vocês estão falando?

— Pois bem, Colth. — O homem se voltou a ele. — Um emissário o encontrará e, quando isso acontecer, quero que siga as suas instruções.

— Mas o que...

— Nos encontraremos em breve, e então poderemos discutir melhor os detalhes — Hueh estava decidido, demonstrou isso quando simplesmente ignorou as palavras do rapaz — Por enquanto, é melhor você ir. Usar sua magia por muito tempo vai acabar te esgotando a ponto de não acordar.

— O quê?

Hueh ergueu sua mão direita até a altura dos olhos e estalou os dedos sem mais.

Despertou.

— Colth, acorda. Acorda. — Jorge sussurrava e empurrava os ombros do rapaz que finalmente abria os olhos.

— O quê? O que foi?

— Finalmente. Você dorme feito pedra — disse o garoto em tom baixo. — Tem alguma coisa lá fora.

Após a breve explicação de Jorge, Colth se viu na cama da casa abandonada, o interior era iluminado com o fogo da lareira e, na porta, Celina estava concentrada em ouvir os ruídos que vinham do exterior noturno estrelado.

Colth percebeu a tensão nos olhos de ambos, rapidamente se levantou esquecendo o estranho sonho que tivera e coletou a adaga com a lâmina de Sathsai guardada com as suas roupas sobre a lareira, se dirigiu até próximo de Celina. Jorge permaneceu encolhido em um dos cantos da casa, o medo assolava os seus pensamentos.

— O que tem lá fora? — perguntou o rapaz em sussurros para Celina.

— Eu acho que é um lobo. — respondeu ela seriamente.

Os dois ficaram em silêncio por apenas três segundos, foi o suficiente para ouvirem o rosnado do que parecia um animal raivoso rondando o exterior da construção em meio ao ambiente noturno.

— Vamos ficar em silêncio, ele já deve ir embor...

No momento em que Colth estava prestes a terminar a sua suposição, o animal atacou a porta da casa. Celina chegou a dar um passo para trás com o susto, mas a passagem estava protegida pela simples tranca de madeira entre o batente e a superfície da porta velha.

O animal continuou a atacar a superfície da porta sem grandes consequências. Mas antes que os moradores momentâneos pudessem respirar aliviados pela segurança, um outro animal tentou alcançar a janela com suas garras arranhando a parede exterior de pedra.

— Droga. Tem mais de um — Colth presumiu o óbvio.

O rapaz rapidamente foi até a janela e olhou para o exterior. Seus olhos arregalaram ao ver o que parecia um lobo negro. Não só um, mas dois.

Um, exatamente diante de seus olhos na janela, outro, mais distante se focando na casa do casal de camponeses e, além desses, havia ainda o animal que estava atacando a porta ferozmente.

— São pelo menos três — sussurrou — Acho que não estão afim de ir embora. O que vamos fazer? — perguntou com a voz tensa, ele já esperava que Celina estivesse pensando muito a frente. Não se envergonhou nem um pouco de mostrar isso.

— Eu não sei. — a garota empurrava a única porta com o ombro em uma tentativa de retardar o dano causado a tranca da porta.

— Não sabe? — Colth se apavorou, mesmo que não demonstrasse.

— A porta não vai aquentar muito tempo, e não há outra saída. Além disso, eu só consigo imaginar uma intervenção externa para chamar a atenção desses lobos para longe.

A porta estava prestes a ser arrombada e a janela prestes a ser alcançada, não havia mais o que resistir.

— Droga... — lamentou Colth cerrando os dentes. Focou-se na adaga em suas mãos e soube exatamente o que precisava fazer. — Tem mais uma alternativa — respirou fundo. — Eu vou sair e atrair eles.

— Não! Isso é idiotice. — Celina negou de imediato.

— Você não tem outra ideia, não é? — Colth já se preparava frente a única porta em que a garota se focava. — Além disso, essa lâmina é de Sathsai.

— E daí? Isso não faz a mínima diferença contra animais e...

— Ao meu sinal, você abre a porta, Celina — interrompeu a resposta de forma valente. Já estava determinado àquilo. — Assim que eu sair, você fecha a porta novamente. E quando os lobos me seguirem, vocês buscam outro abrigo. Talvez o telhado, ou o alto de alguma árvore. Tenho certeza de que vão ter alguma ideia.

— Droga... — Celina concordou observando os olhos resolvidos de Colth.

Sabia que não havia muito a ser fazer naquela situação e que o plano do rapaz era o mais razoável, mesmo assim, o risco envolvido lhe preocupava.

Colth apontou a adaga na direção da porta e respirou fundo. Cerrou os olhos e desejou que nada viesse a acontecer com todos eles.

— Agora! — gritou e a garota abriu a porta. — Ahhh!

O rapaz, movido pela coragem, correu com a adaga segurada pelas duas mãos. Assim que a porta se abriu, viu os olhos vermelhos do predador. Sua velocidade e determinação não deram escapatória para a criatura que foi surpreendida.

A lâmina da adaga foi fincada com êxito na garganta da criatura que ao mesmo tempo enterrou suas presas no braço esquerdo do atacante.

Colth sentiu os dentes da criatura perfurando a sua pele, mas não a deixou reagir de modo que pudesse rasgar a sua carne, continuou com o seu impulso e velocidade após esfaquear e, empurrando a criatura para longe da porta da casa, continuou em um grito de euforia:

— Ahhhh! — O rapaz manteve o movimento com a criatura em seus braços até se afastar. A porta se fechou.

O sangue quente da criatura escorreu pelas suas mãos e aos poucos ela perdeu a força em suas mandíbulas. Colth sabia que o alvo estava morto e que poderia retirar o seu braço dali sem grandes ferimentos, mas aquela já não era mais a sua preocupação. Duas criaturas, além daquela, o seguia ferozmente, elas pareciam famintas e estavam prestes a atacar.

O rapaz se virou rapidamente, e com violência jogou o corpo da criatura morta nos seus novos inimigos. Ganhou poucos segundos em meio ao terreno da propriedade iluminado pelos primeiros raios de sol para se preparar ao ataque duplo que viria.

As criaturas caminharam para perto de sua caça enquanto calculavam a sua ofensiva. Elas mostravam as suas presas e seu olhos vermelhos em meio a pelagem incrivelmente escura.

O rapaz segurou firme a adaga com a mão direita e preparou a mão esquerda com o fechar do punho. “Quando há dois oponentes, deve-se retirar um da batalha até que consiga acabar com o outro” Lembrou Colth das palavras de Thomas quando foi duramente treinado. A estratégia fazia sentido ali. “O único problema é que os oponentes são tão agressivos e fortes, que eu vou ter apenas uma chance.” Conclui seu pensamento.

A primeira criatura correu em ofensiva, saltou para cima do rapaz sem piedade. Sem piedade também foi o soco com as costas da mão esquerda que Colth acertou no focinho da besta. O movimento do punho, de dentro para fora, foi o suficiente para que a criatura fosse atirada alguns metros para o lado.

Colth não teve tempo de respirar, a segunda criatura já estava sobre o seu corpo. Ele sabia que aquela seria a sua única chance, tentou fincar a adaga com a sua mão direita na garganta do atacante enquanto se desequilibrava e caia sobre a grama rala.

A lâmina chegou a cortar e derramar algum sangue da besta, mas não foi o suficiente para fazê-la parar com a sua ofensiva. A criatura tentava de algum jeito fincar os seus dentes no pescoço de Colth, mas sua presa se defendia com afinco em resistência e se recusava a ceder.

A saliva escorrendo dos dentes afiados da fera sobre o corpo obstinado de Colth se misturava ao sangue e ao calor do instinto selvagem de sobrevivência que vinha das profundezas da garganta da criatura e do humano.

Aquilo não duraria muito, a primeira criatura já havia se recuperado do golpe e, agora, estava prestes a abocanhar as pernas do rapaz, foi o que fez. Assim que colocou os seus dentes na canela de Colth, o rapaz gritou com dor e viu o seu fim próximo. Contra uma já era difícil, contra duas seria impossível.

A criatura pressionava os seus dentes sobre a pele da perna de sua presa na tentativa de rasgá-la, um movimento, e a vítima teria o seu membro dilacerado. Assim que reuniu a força para tal, a besta foi surpreendida por um disparo.

Swooish. Uma luz azulada, conjuntamente com o som característico, acertou o corpo da criatura e a elevou para o ar. A besta foi empurrada com o impacto para o lado ao mesmo tempo que um buraco em seu torso foi aberto.

Swooish. A segunda criatura, grudada a perna do rapaz, teve o mesmo fim.

Colth parou após observar a criatura ser morta. Ficou imediatamente aliviado e pôde respirar sem ser pressionado. Finalmente seguiu o rastro da luz desenhado por instantes no ar, já imaginava que aqueles disparos tinham origens em mosquetes de Sathsai, teve certeza ao encontrar três figuras sobre cavalos se aproximando devagar.

— Bem a tempo, não? — A voz masculina e grave vinha de um homem barbudo e chapéu de couro com grandes abas montado em um belo cavalo malhado.

O dia começava a amanhecer quando Celina e Jorge abriram a porta da cabana e correram até Colth.

— Você está bem? Está ferido? —  a garota perguntou assim que alcançou Colth deitado sobre a grama pintada de vermelho.

— Eu estou bem. Foram só algumas mordidas bem superficiais.

— Jorge, vá pegar água para limpar esses ferimentos. — ordenou Celina fazendo o garoto correr de volta para casa enquanto analisava os ferimentos com mais calma.

O homem barbudo desceu de seu cavalo e caminhou até o rapaz e a garota ao centro da propriedade. Ele carregava em suas costas o mosquete de Sathsai que salvou Colth e mostrava as suas botas de couro que combinavam com o seu chapéu.

— Não se preocupem civis. Vocês estão seguros. Nós somos da divisão anti-criaturas, meu nome é Richert. — O homem se apresentou em um tom superior e convencido, mas ainda assim, gentil. — Viram mais Sirveres? Ou alguma criatura sombria por aí?

— Então... Era isso mesmo. — Celina observou as feras mortas ao chão, e então se voltou a Colth em um tom de bronca: — Criaturas sombrias. Você sabia, não é?

O rapaz apenas mostrou um sorriso amarelo. Havia percebido o tamanho do problema desde que viu os olhos vermelhos de uma das criaturas através da janela da casa, mas preferiu não preocupar Celina e Jorge com a informação. Guardou para si sabendo que seria impedido de se usar como isca, caso os outros soubessem o quão perigosos eram os predadores.

— Se não tem mais nenhuma criatura por aí, então eu devo perguntar o seu nome. Você parecia bem habilidoso para um simples civil. — O homem de chapéu interveio novamente com os olhos sobre Colth.

— Não precisa. Eu o conheço. — Um segundo homem do trio, se aproximou após desmontar de seu cavalo. — A quanto tempo, Colth.

O arregalar dos olhos do rapaz sentado sobre a grama, ao ver de quem se tratava, foi autêntico. Realmente, ambos se conheciam, mas ele jamais imaginou a possibilidade de encontrar com essa pessoa em um lugar tão distante.

— Goro? — perguntou Colth congelando sua face incrédula.



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