Volume 1

Capítulo 38: Pagamento com Juros

Edgar se aproximou pelas sombras dos becos escuros do centro de Taemar. Em meio ao toque de recolher noturno de uma guerra, ele jamais poderia deixar ser visto.

Manteve-se discreto e invisível utilizando os atalhos e os esconderijos daquelas ruas tão familiares.

E lá estava, a casa da família Vellsan. Não acreditou que havia chego tão longe. Se aproximou pelo beco aos fundos da residência e rapidamente abriu a janela sem tranca da sala de estar.

Adentrou à casa em silêncio e passou pelos cômodos escuros conhecidos até chegar ao quarto. Abriu sem barulhos a porta e se aproximou da cama sorrateiro.

Esticou a mão trêmula para alcançar os lençóis, mas antes que pudesse tocá-los, a luz do quarto se acendeu.

Na verdade, o tapa luz foi retirado de cima da lanterna no canto do cômodo.

— Nem pense em fazer qualquer coisa — disse a voz atrás de Edgar, foi acompanhada pelo característico barulho de engatilhar de uma arma.

— Por favor, eu... — suplicou de costas.

— Edgar? — A voz, de quem quer que estivesse atrás do homem surpreendido, o reconheceu. — Edgar! Que bom ver você.

Antes mesmo de se virar para ver de quem se tratava, o emissário foi abraçado calorosamente por uma pessoa tão familiar quanto aquele ambiente.

— Guido... — sussurrou trêmulo.

— Você veio para nos ajudar? Eu sabia que você jamais nos deixaria, Edgar, amigo. — O homem estava realmente feliz ao rever um velho conhecido, ainda mais naquela situação em que estava vivendo. — Por que você sumiu por esse tempo todo? Eu achei que tivesse... Deixa pra lá.

O homem esbelto deixou o revólver de lado, sobre a cômoda, e não conseguiu esconder o sorriso esperançoso.

— O que você... — Edgar se esforçou para conseguir fechar a boca.

“Pergunte. Pergunte a ele.” Pensou Edgar. Não, não era o seu pensamento se manifestando, e sim uma voz em sua cabeça o perturbando.

— Eu estou sozinho — continuou Guido sem estranhar o amigo — Escondi a Petrica e as crianças, mas tive que me manter na casa, não quero entregar nada de graça para esse povo que se acha superior. Afinal, tenho que lutar para garantir algo, não?

— Onde estão... — Edgar colocou suas mãos sobre a boca para interromper que as palavras escapassem.

O rapaz empenhava-se, mas não conseguia conter suas atitudes. Suas vontades não eram obedecidas pelo seu próprio corpo.

“Pare de resistir, Edgar. Temos um acordo.” A voz permanecia o provocando em seus pensamentos.

— A Petrica e as crianças? Eles estão...

— Não. Não me fale... — o rapaz parecia querer vomitar palavras contrárias àquelas.

— Você está estranho, Edgar. Está tudo bem?

“Pare de resistir, Edgar. É inútil.”

— Ela está em perigo...

— Quem está em perigo?

— A Petrica, eu não posso...

“Você é realmente um fardo para mim, Edgar. Um Emissário inútil.”

— Ela está em perigo? Droga... — Guido ficou pensativo com aquelas palavras vindas de alguém tão confiável. Se virou para visualizar a vizinhança através da janela de seu quarto. — É melhor eu voltar para a taverna, então. Você não se importaria em...

Quando voltou a sua atenção ao Edgar, não acreditou em seus olhos. O amigo confiável estava lhe apontando o seu próprio revólver.

— O que está fazendo, Edgar? Abaixe isso, não é hora para brincadeiras...

— Eu não consigo... — Seus olhos derramavam lágrimas e suas palavras saiam em tom choroso e arrependido.

— Edgar, abaixa isso. — respondeu Guido ameno, nervoso, confuso e sério. — Somos amigos. Você e eu, parceiros, lembra?

— Eu não... consigo. — respondeu com a mão trêmula.

— Porra, Edgar! — O homem forte e musculoso deixou os seus olhos umedeceram em reflexo a deslealdade. — Por favor, vamos para a taverna. Vamos beber aquela cerveja horrível enquanto você conhece as crianças e botamos o papo em dia, amigo. — As lágrimas presas não diminuíram a sua súplica ao companheiro tão amedrontado quanto ele. — Não faça isso. Por favor... Não me deixa morrer sem ao menos ver os meus filhos uma última vez.

— Me... perdoa...

Atirou.

Guido sentiu a traição perfurar o seu coração.

Ambos foram ao chão ao mesmo tempo. Um sem vida, e o outro com o peso de suas ações lhe acertando.

Edgar desabou em lágrimas ferventes, com o ódio e a tristeza se alimentando de seu corpo, sussurrou gritos:

— O que eu fiz? O que VOCÊ fez!?

“Eu? Eu só estou me assegurando de que você cumpra a sua parte do pacto. Aquele homem iria te impedir de alcançar o objetivo de matar a Petrica.” A voz na sua cabeça possuía um tom irritante e desdenhador.

O homem começou a se levantar cambaleante.

— O que você está fazendo? — perguntou a si próprio.

“Vamos, levante. Temos que ir para essa taverna.”

— Não... Eu não vou... — Tentou resistir, mas o seu próprio corpo estava agindo contra as suas palavras.

Se isso não bastasse, uma dor lhe atingia, não era como uma dor física, e também não estava atrelada com a tristeza profunda que sentia, era simplesmente uma dor vinda da sua existência, vinda de sua mente.

“Você não tem escolha. Eu sou o deus de tudo que cerca a mente. Vontades, memórias, desejos, sonhos, medos... Tudo entregue a mim quando você fez o pacto, esqueceu?”

Edgar voltou a se esgueirar pelas ruas após deixar a casa manchada de sangue. Não demorou para chegar na taverna que tanto visitou quando era mais jovem. Ainda distante, viu uma movimentação intensa dentro do prédio comercial de esquina.

Se aproximou mais e, ao adentrar ao local que fazia parte de suas memórias, notou um trio de soldados impacientes de Albores fardados tentando arrombar a porta da dispensa do bar.

— Saia daí, mulher! Vamos só brincar um pouco! — gritou um deles tentando convencer quem quer que estivesse trancafiado e encurralado no deposito atrás do balcão.

O homem observador nas costas dos soldados já havia imaginado quem era a mulher, seu ímpeto de mergulhar ao lugar veio de si próprio, não mais daquele que estava em sua cabeça.

Edgar se aproximou sorrateiramente. Não teve dúvida alguma ao levantar o revólver e apontar para o homem de costas mais próximo.

— Seus covardes nojentos! Saiam, agora mesmo! — exclamou amedrontando os três ao se virarem.

— O quê? — O mais forte, que parecia liderar, arrependeu-se de se sentir acuado por um homem magro daqueles. — Quem você pensa que é?

— Eu mandei sair! — repetiu Edgar, nervoso com a mão direita esticada portando a arma.

— Ah, é? — O contraponto, do outro lado do balcão sacou a sua arma do cinto. Um revólver tão mortal quanto ao que Edgar mantinha na cabeça do primeiro soldado. Apontou rapidamente sem se intimidar. — E o que você vai fazer?

— Que isso, chefe? — O soldado na mira de Edgar suou frio como nunca antes na sua vida. Sentiu-se desprezado pelo colega de batalhão. — Abaixa isso.

— Cala a boca, seu covarde. — o líder respondeu sorrindo em tom desafiador. — Esse lixo de taemariano não vai fazer nada, se fizer, vai morrer em seguida. Ele não tem coragem alguma.

— ... — O terceiro soldado apenas se calou tenso.

— Eu estou falando sério... — Edgar tremulou as mãos tentando impedir o inevitável, e notável, desfecho da situação.

— Ou o quê? — o soldado desafiou mais uma vez com o intuito de levantar sua mira para a testa do taemariano.

— Você não me deu escolha...

Edgar não deixou que notassem, ou não precisou, mas tinha a palma de sua mão esquerda estendida para baixo, com o apontar de sua palma para o líder do batalhão, de uma forma disfarçada. Sua mão emitiu um brilho rápido, quase imperceptível.

O líder valentão sentiu uma dor de cabeça repentina, procurou em seus pensamentos uma justificativa para aquilo, mas antes que encontrasse qualquer resposta, a dor evoluiu e atrapalhou qualquer raciocínio lógico.

— Ah! — Colocou as mãos na cabeça em um grito de dor. — Ahh!

Parecia perturbado. Não apenas parecia, estava completamente perturbado. Se esforçou para não ajoelhar enquanto apertava as orelhas com ambas as mãos.

— Aí, está tudo bem? — perguntou o terceiro soldado preocupado com o seu superior.

— Sai da minha cabeça! Sai! Droga!

Edgar estava livre da mira do soldado em gritos, se antecipou. Puxou o gatilho e ecoou o som da pólvora estourando, fez um buraco na massa cinzenta do soldado que estava em sua mira.

— O que é isso!? — O único são, ainda restante, se surpreendeu com a brutalidade. — Você é maluco, cara!

O atirador à sua frente lhe apontou a arma e manteve-se calado enquanto o soldado, o líder deles, continuava com os gritos de dor.

— Espera, cara. Eu não fiz nada... — O soldado covarde levantou as mãos se rendendo. — Foi tudo ideia dele. — apontou delatando o seu superior.

— Ele já está morto. — Edgar manteve sua arma apontada para a testa do covarde.

— O quê? — Estranhou o soldado. Aquele homem não estava morto, podia estar louco, mas definitivamente, com aqueles gritos energéticos de dor, ele estava bem vivo.

Foi nesse momento que o tal líder de batalhão desistiu de tudo. Com o revólver ainda em suas mãos, apontou para si mesmo. Colocou o cano da arma na boca em meio aos gritos e não hesitou em puxar o gatilho.

Mais um estouro ecoou. Havia sangue no teto e no chão.

— O quê? — Se apavorou ainda mais o covarde. — Quem é você?

— Sou o gerente daqui, e estou acabando com uma infestação de ratos. — Edgar apontou a arma para a testa do último.

Viu os olhos do soldado se encherem de lagrimas em um adeus breve à vida. Hesitou tremendo as mãos.

Antes que viesse a dar um desfecho na situação. Seu pensamento se pronunciou. “Dá pra parar de gracinha. O seu alvo está naquela porta. Acaba logo com isso, e vamos para o que interessa.”

— Eu já falei para sair... — Edgar baixou a cabeça e falou consigo mesmo enquanto rangia os dentes.

— Tá... Tá bom... — O soldado respondeu choroso, entendendo a situação errada, as palavras não eram para ele, mas não se importou. Colocou o medo e sua covardia de baixo do braço e correu para fora do prédio sem olhar para trás.

 “Deixa ele. Agora vamos... O alvo.”

— Sai da minha cabeça!

“É inútil, não há como resistir.”

Realmente era inútil. Edgar pulou o balcão do bar a contra gosto, e se aproximou da porta da dispensa. Tentou abri-la, sem sucesso. Estava obviamente trancada pelo outro lado.

— Quem está aí? — A voz de dentro da dispensa era familiar.

— Petrica? — perguntou Edgar arregalando os olhos — A não... Petrica, não saia daí de jeito nenhum!

Edgar, ou melhor, o corpo do emissário sem controle, começou a empurrar a porta com os ombros. A tentativa era de arrombar a porta de madeira antiga com as próprias forças o mais rápido possível.

— O quê? Edgar? Edgar, é você? — perguntou Petrica do outro lado com o tom aliviado.

— Sim!

— Ainda bem. Espera aí, eu vou abr...

— Não! Não saia! Por favor, não abra a porta! — exclamou Edgar desesperado. Chutou a maçaneta contrariando suas próprias palavras.

— O quê? Eu não estou entendendo...

— Me escuta, se eu te encontrar, vou te matar. — Continuou a forçar a porta com os ombros de forma selvagem.

— P-por que está dizendo isso? — perguntou Petrica em confusão. — Eu vou abrir a porta e nós vamos conversar.

— Não! Por favor, só me escuta... Abaixa! — Gritou o emissário ao ver sua própria mão apontar o cano do revólver para a superfície da porta.

Resistiu ao máximo, sua mão tremeu e os nervos de seus dedos brigaram entre si. Conseguir adiar, mas não evitou o puxar do gatilho.

O disparo perfurou a porta de madeira e criou um rastro de ar quente.

“Pare de me atrapalhar, idiota.”

—  Droga... Petrica, você está bem? Me diz que você está bem, por favor. — Ignorou a voz de sua cabeça e se preocupou com a pessoa de dentro da dispensa.

— Mamãe, estou com medo! — A voz infantil do lado de dentro se pronunciou pela primeira vez.

— Para com isso. Eu imploro. Faço qualquer coisa. — Edgar disse para si mesmo fazendo com que as palavras encontrassem a entidade alocada à sua cabeça.

“Nós. Temos um pacto Edgar, esqueceu? Não há o que implorar.”

— Ficou maluco, Edgar!? — esbravejou a mulher lá de dentro. — As crianças estão aqui. Eu vou sair. Vamos resolver isso na conversa, tá bom?

— Não!... — A maçaneta se mexeu minimamente. — Eu matei o Guido!

— O quê?

— Eu matei o seu marido, Petrica.

— Pare de brinc...

— É sério! Eu não consigo parar. E vou te matar também se... — Chutou a porta. — Por favor, só não me deixe fazer isso.

— Isso tem alguma coisa a ver com aquele dia que você me salvou dos bandidos, não é? — perguntou Petrica em um tom completamente diferente. Sem dúvidas, sentiu a notícia, mas pareceu conformar-se ou esperar por ela.

— E-eu... — Edgar calou-se antes de dar mais um golpe na porta de madeira.

— Entendi, então o dia chegou. Bom, eu já adiei isso tempo demais — Petrica abdicante. — Se esse é o único jeito... — desanimada, mas conformada.

Um barulho incomum vindo do interior da dispensa, prevaleceu em conjunto com uma luz azulada que vazou pelas frestas da porta e invadiu a taverna até se apagar.

Nesse momento, Edgar deu seu último chute na porta para escancarar a entrada.

Em meio a dispensa, uma única pessoa esperava de joelhos ao chão. Petrica fixou seus olhos sérios ao do homem:

— Me perdoe, Edgar. Envolvi você nisso.

— Para! Para! — O rapaz adentrou à dispensa aos gritos de desespero.

“Finalmente, vou acabar isso.”

— Você não mudou nada, irmão. Sempre se aproveitando de tudo, e de todos, unicamente para o seu bem — disse Petrica observando os fundos dos olhos de Edgar.

— Cale a boca — a voz do rapaz mudou de tom, a entidade tomou todo o controle daquele corpo. — Seu tempo acabou. Assim que eu te eliminar, mamãe estará livre novamente.

— Sabe que, quando ela deixar a minha prisão, roubará o tempo.

— Não me importo, se isso for o desejo dela. Eu aceitarei de bom grado. — Edgar caminhou até diante de Petrica e levou a sua mão até o topo da cabeça da mulher. — Agora, desapareça desse mundo que não é seu.

O pequeno cômodo se iluminou com a luz originária da palma da mão direita de Edgar que se mantinha sobre a cabeça da mulher. Ela resistiu ao máximo e, agarrando a mão esquerda do homem, fez seu último esforço:

— Move.

A luz cessou. Edgar retomou o seu corpo, sua mente ainda estava confusa.

— O quê? O que aconteceu? — perguntou ele voltando a si.

— Agora é você mesmo, Edgar? — indagou Petrica com poucas forças.

— Sim. O que você fez? O que aconteceu? — Não segurou as lágrimas ao ver a mulher naquele estado diante dele. Se culpou de imediato ajoelhando-se frente a ela. — Me perdoa...

— Não foi culpa sua. Foi minha. — A mulher debilitada, ainda com suas mãos sobre a do único ouvinte, abriu o punho e passou adiante um pequeno objeto. — Escuta, Edgar. Entregue isso para a Garta quando ela estiver pronta.

— Q-quem? — O homem nunca havia ouvido esse nome.

— A minha filha, entregue isso a ela quando a encontrar. Você faria isso por mim, não?

— Mas eu não sou confiável, você viu o que eu...

— Não se preocupe, Hueh não vai mais ficar na sua cabeça, não vai controlar você de novo.

— Como você... — Edgar se surpreendeu com o conhecimento da mulher sobre o deus com qual ele possuía um pacto.

— Eu cortei o seu pacto com o deus de Anima, Hueh não vai mais te perturbar — Petrica sussurrava suas últimas energias — Mas escuta, eu preciso que você proteja a Garta. Preciso que mantenha Lux longe desse mundo.

— Espera, Petrica. O que você...

— Ela é especial, a Garta, assim como você. — Petrica sorriu movendo minimamente os seus lábios. — Eu posso confiar em você, não é, Edgar?

— É claro — respondeu sem hesitar.

— Cuide dela, e do Hikki também, o meu garotinho. — O fechar dos seus olhos, lento e constante, durou o seu último suspiro inteiro. Foi selado para sempre.

Edgar respirou fundo e engoliu a sua tristeza e seu choro. Abriu sua mão para finalmente visualizar o objeto lhe entregue.

Um pingente de prata do tamanho de um morango pequeno. Oval e com belas gravuras, o objeto era anexado a uma corrente do mesmo material. Não possuía nada de especial além de sua beleza única, mesmo assim, o rapaz sentiu algo poderoso vindo dele, algo ambíguo e sem distinção entre bom e ruim.

— Garta, é? — se perguntou solitário assumindo a sua promessa de forma fúnebre.



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