Volume 1

Capítulo 39: Tempestade

— Você a matou, não foi!? — Garta mantinha uma posição selvagemente ofensiva para cima de Edgar. — Me responde! Droga!

— Eu já disse... Eu amava sua mãe.

— Eu perguntei, se você a matou, seu nojento! — Gritou a mulher em mais um soco enfurecido.

                                               ***

— Então você usou a sua tal habilidade para fazê-la ameaçar o Frederic? Como você é cruel.

— É para o próprio bem dele, ele mesmo já entendeu isso. Estou só mantendo a região Norte segura longe dos guardas reais.

— Eu não estou falando do Frederic. Estou falando da Garta, força-la a fazer algo assim, é crueldade — corrigiu Runa sentada à mesa frente ao velho amigo.

O restaurante gato implacável estava na sua primeira semana de funcionamento e já colhia um sucesso impressionante. As mesas estavam todas cheias e o movimento era intenso. Edgar e Runa estavam seguros ali, sabiam disso e puderam continuar sua conversa tranquilamente.

— Do jeito que você fala, Runa, parece pior do que realmente foi — resmungou Edgar após tomar um gole de sua cerveja. — Ela vai me agradecer por isso, quando o império estiver em pedaços.

— É? E ela sabe disso? — caçoou seriamente a mulher.

— A mãe dela morreu por causa do império. Acha mesmo que ela não me agradeceria?

— Eu não sei, por que não pergunta para ela? Aposto que a Garta gostaria de saber mais sobre a mãe.

— Nisso você tem razão. — Edgar pensou duas vezes antes de prosseguir. — Ela me perguntou sobre a mãe. O que eu faço, Runa? — perguntou em tom mais ameno, requisitando um conselho.

— O que você disse?

— O que eu poderia dizer? Não respondi.

— Você não disse nada? Realmente, crueldade. — A mulher desaprovou com o balançar de cabeça negativamente. A bochecha avermelhada revelava o nível de álcool em seu sangue. — Ela é só uma garota. Com quantos anos ela está? Oito? Por que esse medo todo frente a uma criança?

— Ela tem onze. E não é medo, eu só não sei o que dizer.

— Onze anos? Tudo isso, já? Bem, diga a verdade.

— A verdade? Tá brincando? — indignou-se ele.

— Foi você quem me perguntou. Deve estar muito desesperado, minha única experiencia com esse tipo de coisa foi ter cuidado de um cãozinho na minha adolescência.

— Eu não consigo imaginar você cuidando de alguma coisa viva.

— É, não durou muito. O meu cãozinho fugiu assim que o soltei da coleira pela primeira vez. — Runa virou toda a sua bebida na garganta e voltou ao assunto após pensar sobre. — Tá aí, se você prender um cachorro por muito tempo, os seus desejos vão se acumular e, quando você o soltar da coleira, tudo virá de uma só vez. É como abrir as comportas de uma represa.

— Você está completamente bêbada, Runa. — Foi a vez dele de reprovar a mulher mais velha. — Eu nem acredito que ainda estou te ouvindo...

— Garçom! Eu quero outra bebida!

— De fato, eu nem consigo imaginar você cuidando de alguém.

Após a conversa com a sua conselheira não oficial e o fechar do restaurante tarde da noite, Edgar pôde subir as escadas para o segundo piso do prédio e se aconchegar em seu quarto calmo. Ao esperar o sono chegar, foi interrompido pelo barulho de algo se movimentando no quarto ao lado.

Estranhou, se levantou da cama em alerta e foi conferir a origem do ruído. Atravessou o corredor na luz noturna do luar e abriu a porta vizinha a sua.

— O que você? — perguntou ele ao flagrar Garta de pé em meio ao seu quarto.

— Gerente? — Ela foi surpreendida. — Ah, eu estou sem sono e...

— Você foi ver o seu irmão?

— Não... — respondeu Garta desviando o olhar e autoincriminando-se.

— Está tudo bem, não precisa esconder isso de mim.

— ... — Deu de ombros. — Eu não preciso dar nenhuma justificativa a você.

— Garta, você sabe que estou fazendo isso para te proteger, não é?

— Me proteger de que? Hã? — confrontou ela. — Você sempre me diz isso, mas nem a resposta, por eu possuir essas habilidades, você me dá.

— Eu já disse, você...

— “Você é especial.” Isso não me diz nada. Eu queria que você não tivesse me encontrado.

— Não diga isso. — Foi acertado pelos dizeres. Pensou mais uma vez nas palavras da Runa antes de se decidir: — Escuta, eu quero te dar uma coisa... — Edgar levou as mãos ao pescoço para retirar o seu pingente que carregava debaixo da camisa. O mesmo pingente que um dia foi de Petrica.

— Então, me fala. — Garta o ignorou e interrompeu qualquer ação do homem, rebelou-se com as palavras cheias de ousadia: — Me fala o porquê de você não ter salvo minha mãe. O porquê de ela ter morrido. Você não fez nada.

— ... — Ele retornou as mãos em posição natural sem retirar o acessório de prata.

— Eu deveria ir embora. Nem sei como continuo aqui. É como se eu estivesse presa. Sinto como se eu nunca tivesse saído daquela maldita igreja. Aliás, talvez eu saiba o porquê de você não ter ajudado a minha mãe. — Garta encarou o Gerente franzindo a testa e levantando as suas suspeitas: — Foi você, não foi?

As palavras foram demais para o homem. Afiou os olhos se enfurecendo de dentro para fora. Levantou a mão rapidamente com a palma apontada para a garota em um impulso:

— Cala a boca! — esbravejou utilizando de sua magia.

A garota ajoelhou imediatamente colocando as mãos sobre a cabeça em dor intensa:

— Ahh!

— Você não sabe do que está falando! — Emoções confrontantes acertaram o velho homem que carregava um fardo pesado demais.

— Para... — implorou Garta.

— Eu não estou fazendo isso por mim, sua ingrata! — Exclamou ele, não só tentando fazê-la entender, mas também tentando se convencer de suas próprias palavras.

— Por favor...

—Você nunca mais vai tocar nesse assunto! — Ele manteve a palma da mão apontada para Garta em resistência e cortou pela raiz o problema. — Nunca mais vai me confrontar!

— Para... Ah! Para...

Edgar baixou as mãos e respirou fundo para tirar qualquer culpa da cabeça. Os gritos da garota cessaram, assim como sua indignação.

— O que você queria falar, mesmo?

— Eu... — Ela respirou fundo se recuperando da dor. Teve o início de um pensamento revoltoso, mas sumiu antes de ganhar forma.  — Nada... Gerente.

— Assim é melhor. Agora, vá dormir. — Se virou saindo do quarto com o bater da porta.

A garota, solitária, não sentiu mais aquele sentimento de dúvidas ou vontade de explora-los. Simplesmente se recuperou da dor e foi direto para a cama com os olhos em lágrimas sem nem se lembrar do motivo para tal.

Edgar, por sua vez, sentiu-se minimamente arrependido, mas remoeu o sentimento de raiva no caminho de volta para o seu quarto. Raiva da garota, raiva da situação, raiva de si mesmo. Prometeu que agarraria qualquer outra tentativa de fazer a garota entender, prometeu desfazer as palavras e a magia opressora no dia seguinte. Mentiu para si mesmo.

                                               ***

— Você a matou!? — Deu mais um forte soco no rosto de Edgar em busca das respostas.

O homem ao chão já não tinha forças para revidar e, mesmo que tivesse, não o faria.

— Não...

— Mentira! — Garta cuspiu a sua raiva enquanto sentada sobre o corpo do emissário.

— Desculpa — disse fraco Edgar. — Sua mãe morreu protegendo você e o seu irmão. Eu não pude fazer nada. Me odeio desde aquele dia.

— Então, por que não a salvou? Você estava lá. Eu lembro muito bem da sua voz.

— Eu não pude...

— Não pôde? Não pôde!? — Ela ameaçou mais um soco.

— O pingente... Meu pingente — implorou desconfigurado.

— O que tem ele?

— Era da sua mãe... Ela me pediu para te entregar.

Garta se recusou a acreditar por um segundo, mas em dúvidas, procurou pelo tal pingente acorrentado em volta do pescoço do velho homem e, assim que colocou as mãos nele, puxou com força para arrebentar a corrente e visualiza-lo de mais perto.

— Da minha mãe... — Aceitou como verdadeiro. Levantou-se pensativa enquanto o homem tossia em dor e sangrava os seus ferimentos ao chão. Garta manteve seus olhos no objeto curiosa — Por que não me deu isso antes?

— Eu não consegui... Não consegui te encarar, Garta.

— Não conseguiu me encarar? Quanta bobagem.

— Eu juro. Eu fui usado. Jamais mataria a sua mãe. — Sentou-se ao chão com os olhos marcados pelos hematomas. — Mas sem dúvidas, não fui forte o suficiente para salva-la.

Garta calou-se sem dar atenção àquelas palavras. Observou os pequenos detalhes na prata do objeto em mãos. Percebeu aquelas gravuras estranhas e se lembrou de já tê-las visto antes.

— Essas letras... — pensou alto. — Haviam letras parecidas nos livros da biblioteca da fortaleza.

— Letras? — Edgar nunca imaginou que aqueles desenhos sem sentidos, entalhados na prata, fossem letras.

— Será que...

Antes que a guardiã pudesse conclui o seu palpite, a porta gradeada da cela foi aberta em um som característico.

— Vocês... — disse o guarda adentrando ao cárcere enquanto era acompanhado por mais dois. — Venham comigo.

— Para onde vai nos levar? — Disfarçou Garta levando o objeto prateado para as costas.

— Cala a boca! O que você está escondendo aí?

— Não é da sua conta.

— Sua...

O homem perdeu a paciência rapidamente. Se preparou para socar a mulher sem hesitar. Fechou o punho e o levou acelerado até a região da barriga da guardiã. Muito lento. A mulher desviou com facilidade e o socou do mesmo jeito que ele próprio pretendia.

— Urgh! — Caiu de joelhos cuspindo saliva.

— Ei! — gritou prontamente o outro guarda.

Os dois companheiros daquele que sentiu o punho quente da guardiã interviram energeticamente. Ambos se aproximaram e a agarraram usando da força física e da superioridade numérica.

Garta resistiu, mas perdeu pela quantidade, agarraram seus braços e a imobilizaram violentamente.

— Me solta! Eu vou acabar com vocês! — Se debateu ela sem sucesso.

— Soltem ela! — Gritou Edgar tentando se levantar.

Antes que o emissário conseguisse ficar de pé, foi atingido por um chute dos mais rasteiros por aquele que havia sido golpeado por Garta. O homem mais velho não foi páreo para mais um golpe certeiro no rosto. Caiu em sono profundo.

— Vocês são um bando de lixo — o oficial exprimiu sua raiva após se certificar de que Edgar havia desmaiado.

— Me solta! — Garta não cessou, nem por um segundo.

Os guardas se esforçavam para manter os braços da guardiã sem ação. O oficial líder se aproximou com a raiva lhe alimentando:

— Eu mandei, calar a boca! — Acertou um golpe, dos mais covardes na mulher indócil, a subjugando.

Garta parou de se debater no momento seguinte, também havia adormecido contra vontade.

— Idiota de merda. Tem sorte de quererem falar com você. Por mim, já estaria morta. — reclamou sem ser respondido. — Levem os dois para a sala do trono.

— Sim, senhor. — Os subordinados acataram as ordens e começaram a arrastar os corpos pelos corredores frios do calabouço.

Passaram-se alguns minutos. Edgar acordou ao ser arremessado ao chão liso límpido. Confuso, procurou resposta por todos os lados.

A sala grande circular pouco iluminada com estatuas e pilastras de mármore tomavam sua vista. Só parou de procurar quando viu a guardiã desacordada ao seu lado, também ao chão.

— Você é um emissário de Anima, não?

— ... — Forçou a recomposição da vista para ver de onde vinha aquela voz feminina indagadora. Constatou-a sentada ao trono frente a um imenso vitral colorido que invocava a luz do amanhecer.

— Controlaste a mente. Possui a magia do frenesi e da submissão. — A mulher dizia sentada na poltrona luxuosa com detalhes em ouro e joias.  Descansando a cabeça sobre o punho direito, mostrava a sua despreocupação nos olhos entediados. — Um inseto irritante. Simplesmente patético.

— Quem é você? — perguntou Edgar. Notou outras pessoas, um total de cinco, elas em pé ao lado do trono da mulher de vestido justo preto e vermelho. Repetiu a pergunta corrigindo-a: — Quem são vocês?

Não se pronunciaram, apenas observavam sem interferir. Três deles já eram conhecidos de Edgar, o tal índigo com suas tatuagens por todo o braço e aqueles dois estranhos que o capturaram, a jovem menina de rosto amigável e o homem selvagem gigante.

— Quanta blasfêmia! — Um daqueles cinco não se aguentou e se fez ouvir. Ele era o que possuía o cabelo mais chamativo em conjunto as suas vestes predominantemente vermelhas, uma aura completamente arrogante, tomou as dores. — Você está na presença da sua governanta, tenha mais respeito! Essa é a mais nova imperatriz de Albores. Não vou permitir tamanha afronta com a guardiã de Rubrum, Lashir.

— Guardiã de Rubrum... — sussurrou Edgar trazendo consigo o receio.



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