Volume 1

Capítulo 50: Bem-Vindo, Guardião

— Celina!!! — gritou Colth em corrida até a garota ofegante que acabara por usar a sua poderosa magia de manuseio do tempo.

Ela mal teve reação, seus ouvidos zuniam e o som de toda sala encontrava-se abafado, só algo mais poderoso poderia ser escutado por ela naquele instante, e foi exatamente o que aconteceu quando um estrondo ecoou pelas paredes de pedra do anfiteatro subterrâneo, arregalou os olhos, pressentiu o pior.

Em um flash de luz, um piscar de olhos, mais três pessoas se fizeram presentes em meio ao altar.

Lashir, a que chamava mais atenção com o seu vestido vermelho provocante, sorriu satisfeita e empolgada ao encontrar o rosto fadigado e surpreso de Celina. Outros dois indivíduos ao lado dela, Garta e Índigo, se mostravam bem menos entusiasmado e até soturnos.

Aos poucos, Celina teve a sua audição restaurada e o zumbido incômodo desapareceu, finalmente começou a ouvir os sons das palavras que saiam da boca de Lashir que a acertou com o impacto planejado:

— ...Guardiã de Tera, junte-se a nós.

— E-eu... — gaguejou sem entender o contexto daquilo.

— Celina, para trás — disse Colth tomando a frente da garota confusa.

O rapaz estava armado com sua adaga de Sathsai e determinado àquilo, mas não escondia o temor em sua postura defensiva frente a mulher de vermelho, até porque, a reconhecia, lembrava muito bem daquele rosto, tão bem que o fez ranger os dentes.

Celina se concentrou em recuperar o fôlego e, além de ser defendida por Colth, foi assistida por Koza:

— Garota, você está bem? — perguntou o anfíbio preocupado se aproximando dela.

Celina apenas acenou sutilmente positiva com a cabeça e voltou a sua atenção aos outros do altar.

— Quem são vocês e o que fazem aqui? — perguntou Lashir minimamente irritada com a intromissão daqueles dois.

— Se-senhora, se me permite — interferiu o último dos oradores de pé, Tolson se fez ouvir baixando a cabeça com respeito para a mulher de vermelho em meio ao impasse entre os grupos em lados opostos do altar. —, esses dois são intrusos e...

— E quem seria você? — indagou superior a guardiã de Rubrum com o levantar de uma das suas sobrancelhas.

— Eu? — O burguês ficou estupefato. Caminhou passos em direção a sua líder tentando fazê-la entender: — Eu sou o seu ministro da Defesa, excelência. Eu a ajudei com as tropas militares e...

— Então você é o responsável por esse exército de idiotas?

— O quê?

— Um bando de incompetentes que não conseguem nem sequer manter a ordem em sua própria capital. Não importa, você está fora, jamais volte a pisar no palácio do governo. Não quero fracos como você caminhando por lá.

Tolson se calou por um segundo assimilando as palavras, negou a aceita-las no momento seguinte com o rosto descrente:

— Não, espera. Você não pode simplesmente...

O homem chegou mais perto da guardiã de Rubrum e se viu surpreendido pela a atitude imediata dela. A mulher simplesmente fitou os olhos, como se tivesse sido desafiada, levou a sua mão rapidamente até a face do seu aliado temeroso e a pressionou com a ponta de seus dedos sobre a pele enrugada.

— Cale a boca — serena, o reprimiu.

O ministro, assim que sentiu o tocar das mãos de sua liderança sobre seu rosto, deu um passo para trás institivamente e, em seguida, antes mesmo de poder contestar, sentiu algo em sua garganta:

— O q... — foi interrompido pelo próprio engasgar. Tentou puxar o ar para seus pulmões sem sucesso, perdeu a capacidade de respirar, suplicou com os olhos sem poder usar de suas palavras.

A guardiã de Rubrum manteve seus olhos superiores sem sentimentos sobre o homem que pressionava o seu próprio pescoço com ambas as mãos tentando se livrar do que o asfixiava.

O desespero tomou conta do corpo do burguês e, quando estava prestes a se desesperar pela falta de ar e pelo entendimento do óbvio, sentiu uma dor ainda mais intensa vinda de seu peito, seus movimentos pararam repentinamente. Ele tentou mais uma palavra, mas foi entrelaçado com seu próprio gemido de dor e se perdeu em significado.

O velho corpo ficou sem vida e, ao passo que desmoronaria para a morte plena ao chão, sua laringe explodiu em sangue, consequente de algo carnoso e desuniforme que se expôs vinda do interior de seu corpo. Surgido do buraco fabricado pela própria arrebentação do tecido frágil da garganta do miserável homem, um objeto em vermelho intenso foi exaurido e arremessado ao ar até encontrar a mão da bela mulher que se mantivera erguida durante todo aquele escarcéu ininterrupto provocado por ela mesmo.

Lashir segurou aquela coisa que se assemelhava a uma bola de carne e músculos com uma só mão e, sem qualquer movimento mais, piscou seus olhos e os levou ao rapaz que se contrapunha do outro lado do altar.

Colth recebeu aquele olhar amedrontador com receio, se forçou para manter seu posicionamento mesmo com um dos joelhos trêmulos, respirou para repassar o que acabara de ver e fazer-se acreditar. A guardiã de Rubrum havia matado o ministro da Defesa da forma mais cruel e brutal possível.

É verdade que aquele homem não merecia qualquer tipo de sentimento de compaixão ou piedade, afinal era um usurpador de seus próprios poderes e os usava das formas tão cruéis quanto os da sua morte, mas ter o seu coração arrancado pela garganta por uma magia tão pujante era algo além do imaginável. O silêncio desagradável se fez presente.

— Veja — disse Lashir com o coração do velho ainda pulsante em mãos, enquanto o sangue escorria entre os seus dedos. — Apenas entregue a guardiã, e o seu destino será diferente.

“É óbvio.” Pensou Colth boquiaberto ao receber as palavras. Lashir deu todo aquele show sádico e bizarro com um único objetivo, intimida-los. Colth teve de se firmar novamente, reforçar a sua coragem tomando a frente da situação, dessa vez externou aquilo com tom bravio:

— Não mesmo! Não vamos nos curvar diante de você.

— Tsc. — A guardiã de Rubrum entortou a boca descontente, deixou o órgão cair sobre o cadáver pertencido ao chão e manteve a sua requisição: — Me entregue ela, ou então...

No momento em que Lashir deu seu primeiro passo em direção ao contraponto, um flash de luz surgiu da arquibancada de pedra, uma linha cintilante perfeitamente reta atravessou o anfiteatro e chocou-se ao ar quando estava prestes a acertar a cabeça da autointitulada imperatriz.

Aquele disparo de Sathsai havia se originado do revólver de Goro, ele havia esperado e acompanhado a situação até aquele instante, puxou o gatilho só quando teve certeza de que acertaria a mulher, mas não esperava por aquele impasse. O feixe de luz foi interceptado no caminho, simplesmente chocou-se com o ar quando estava prestes a acertar o seu alvo, era como se tivesse esbarrado em algo invisível e impenetrável, ele ficou boquiaberto assim como os outros.

Lashir foi a única a não se surpreender, manteve seus olhos enfurecidos e os levou até a origem do disparo. Sem falar mais nada além do que os seus olhos cheios de ódio já diziam, ergueu a palma da mão em direção a Goro e a fechou como se coletasse algo no ar.

— Merda... — reclamou o rapaz alvo, pressentiu o pior. Sentiu o seu corpo ficar leve.

No instante seguinte, Goro já não tinha os pés ao chão, foi levitado ao ar e, sincronicamente ao fechar da mão de Lashir, foi sugado em direção ao altar. Rápido, como se seu corpo estivesse em uma queda livre na horizontal, não pôde fazer nada além de observar o belo vermelho vivido da mulher odiosa se aproximar, mas no meio do caminho isso tudo foi interrompido.

— Não! — gritou Garta se atirando em direção ao braço erguido de Lashir. Foi novamente uma última alternativa que se demonstrou desesperada, felizmente funcional.

Garta agarrou o braço de Lashir que foi surpreendida e perdeu todo o domínio sobre a magia que não a pertencia. A magia de Nox, aquela que estava utilizando, foi cedida por Dilin e seu irmão, demandava total concentração em seu uso. Concentração que foi perdido no exato momento em que a guardiã desviou seus braços, foi obrigada a abrir mão do controle.

Goro ficou livre das amarras daquela magia estranha que parecia controlar a gravidade de alguma forma, ainda assim, caiu violentamente de mau jeito sobre o chão de pedra aos pés do altar.

Lashir não perdeu tempo pensando sobre uma suposta traição que havia sofrido de Garta, surpreendeu-se com o seu poder sendo combatido tão destemidamente, mas não era isso que a impediria. Agarrou o colarinho da roupa negra da guardiã de Finn e girou em seu próprio eixo para então solta-la, arremessou a garota com força em direção à parede.

Garta se espantou com a força física de Lashir, chochou suas costas na parede e reclamou da dor imediatamente ao impacto expressivo que chegou a levantar uma pequena nuvem de poeira sobre seu corpo.

Colth aproveitou a distração, levantando a sua adaga sobre a cabeça apontando seu corte para a mulher de vermelho e se atirou com coragem para cima de Lashir:

— Não vai acontecer de novo!

A guardiã de Rubrum, ainda se recuperando do seu golpe anterior, desviou com pouca dificuldade do primeiro ataque do rapaz, um passo para trás e o corte vertical da lâmina passou em branco. Colth não parou, girou seus punhos a noventa graus e fatiou mais um golpe, dessa vez perfeitamente na horizontal tentando encontrar a barriga da oponente, Lashir o parou com ambas as mãos, segurou o braço traiçoeiro do rapaz e evitou o finalizar do movimento ímpeto.

— Você vai se arrepender do que fez! — Proclamou Colth com ira.

— Eu não faço ideia do que você está falando, vai ter de ser mais específico — rebateu Lashir com um sorriso sádico no rosto, empurrou o rapaz e consequentemente sua lâmina para longe.

Colth restabeleceu o equilíbrio de seu corpo frente à oponente e tentou mais um golpe rápido. Uma estocada com sua adaga que obrigou a inimiga dar passos rápidos para trás para evitar o acerte.

O rapaz com a adaga continuou ofensivo enquanto Lashir desviava como podia, recuando. Ela sabia que tinha de reagir para ganhar tempo ou encontraria o seu fim ali. Esticou suas mãos sobre a lâmina do oponente e entrelaçou seus braços ao do inimigo, com o risco de ter seu peito exposto á lâmina mortal de Sathsai.

Inabalável, Lashir girou seu corpo e saiu do caminho do golpe e da morte. Colth foi acertado pela inércia e continuou seu movimento tropeçante para nada além do vazio, realizou um rolamento perfeito espelhando seu treinamento de anos e restabeleceu a sua estabilidade mais uma vez, parou preocupado sem tirar os olhos da oponente passos à frente.

O rapaz sentiu um ferimento simples na mão, um pequeno arranhão, provavelmente causado pelas unhas da guardiã de Rubrum em meio a troca de golpes, foi capaz apenas de rasgar a epiderme e revelar um pouco do vermelho da carne, não se preocupou com algo tão sútil, se prendeu mais aos movimentos de Lashir e seu estilo de luta. Ele estranhou, a mulher havia simplesmente se protegido dos seus ataques e depois se afastado. “O que aconteceu com seu afinco selvagem frente aos outros?” Deixou a pergunta de lado e continuou com o ódio que ainda permanecia em suas lembranças, encarou suas palavras com o ranger de dentes:

— Vai se arrepender.

— Você já disse isso. — Ela revirou os olhos. — Vá direto ao ponto.

— Toesane, você...

— Toesane? Haha. — desdenhou a mulher com um sorriso cruel. — Aquela vila de atrasados? Eu fiz um favor para eles, seriam devorados por uma guerra que não poderiam ganhar e, se resistissem por algum tempo, decairiam diante da fome ou da peste, agonizando pouco a pouco em meio a uma guerra que não poderiam vencer até finalmente suplicarem pela morte breve.

— Você não sabe! Não tem o direito de decidir sobre a vida dos outros e...

— Hahaha! — A risada cruel proposital e poderosa fez Colth engolir seco. Ela continuou: — Tolo, eu sou a única que tem esse direito. Eu sou a guardiã da vida, a guardiã do sangue, aquela que enfrentou e venceu o seu próprio deus. A escolha de quem vive ou morre, é minha por direito. Mas você, eu sinto algo em você. — Lashir levantou a ponta do nariz e respirou fundo delicadamente o ar úmido do ambiente, em seguida, focou seus olhos nas mãos feridas de Colth e retornou seus dizeres: — Essa magia presente em seu sangue... Junte-se a mim, guardião de Anima.

— O quê? — Colth foi pego de surpresa pela proposta inesperada, mas principalmente pela mudança de tom convidativo de Lashir. — Vai se ferrar! Você não passa de uma assassina! Isso é o que você é! — rugiu com sua raiva e avançou novamente com sua adaga apontada para a oponente.

Lashir já estava recuperada, sentiu seu poder de volta ao seu corpo e sorriu com o canto de boca.

Colth avançou novamente com os movimentos de seu primeiro golpe, lâmina sobre a cabeça e um corte certo na vertical em direção à oponente. Lashir leu perfeitamente o golpe repetido e preparou sua palma da mão para o contra-ataque, seria fácil e sem resistência, seria a vitória certa, mas algo saiu diferente do esperado.

Quando o guardião de Anima se aproximou o suficiente, soltou a adaga, deixou suas mãos livres e, sem hesitar, levou-as na direção de Lashir. A mulher foi surpreendida, mas não seria uma coisa dessas que a faria recuar, só precisava tocar o corpo do oponente para então... Se deu conta do ataque suicida dele, afinal, a magia de Anima era traiçoeira e podia se tornar poderosa quando bem utilizada, mas teria um custo. Já era tarde demais, não conseguiria recuar ou desviar daquilo.

Koza, assistindo tudo aquilo enquanto permanecia ao lado de Celina que se recuperava, arregalou seus olhos esbugalhados entendendo antecipadamente o ataque que Colth estava prestes a executar. Preocupou-se com o guardião de Anima como nunca havia imaginado. Berrou:

— Colth, não!

O grito passou despercebido.

A palma da mão de Colth estava prestes a acertar o rosto da mulher, Lashir dobrou a aposta e manteve seus planos iniciais avançando com sua mão até o pescoço do rapaz decidido, seus braços se cruzaram em direção opostas e alcançaram seus objetivos. Ambos se acertaram ao mesmo tempo. Ambos pararam.

Seus olhos pesaram e suas pernas enfraqueceram. O guardião de Anima e a guardiã de Rubrum perderam a consciência e o controle de seus corpos simultaneamente, ajoelharam um diante do outro com os olhos já fechados sem qualquer reação. Completamente desacordados permaneceram.



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