Volume 2

Capítulo 126: Veracidade

Beca, em meio a discussão na sua própria oficina, que até então só observava em silêncio, arregalou os olhos de surpresa. Repetiu a palavra que acabara de ouvir de forma surpreendida:

— Beijou?! — ela exclamou, incrédula, olhando para Colth e depois para Garta algumas vezes, esperando que um deles negasse o que ouviu.

— Isso foi porque você não me deu escolha! — rebateu Garta a ele, ríspida.

— Ah? A culpa é minha? — Colth se levantou abruptamente, apontando para si mesmo em incredulidade. — Que eu saiba, tem várias escolhas antes de se chegar a um beijo.

— Se eu não fizesse aquilo... — Garta pausou o que estava prestes a revelar, despencou os ombros em resignação. Sussurrou para si mesma: — Não importa mais. Como eu fui boba.

Sem esperar por resposta, Garta se virou e caminhou para fora da oficina. Beca e Colth se calaram impactados.

— Eu vou verificar como estão os arredores da vila — disse Garta, usando a desculpa como despedida apressada. Saiu e bateu a porta atrás de si.

Seu rosto foi atingido pelo vento frio que acompanhava a chegada da noite à rua principal da vila Nova Tera, no topo da montanha. Ela se arrependeu de não ter pegado sua jaqueta antes de sair, mas não voltaria à oficina depois daquele clima tenso. A brisa noturna era bem mais fácil de encarar que a rejeição velada de Colth.

Garta abraçou os próprios braços e começou a caminhar sobre as pedras rústicas do calçamento. Não tinha um destino em mente, mas ao notar luzes no fim da alameda, decidiu ir naquela direção.

— Eu achei que você me entenderia, idiota… — sussurrou ela, balançando a cabeça negativamente.

Então parou após atravessar algumas ruas, sentindo algo bater levemente em sua perna.

— Hã?

Era uma simples bola de pano velha. Em seguida, um garoto de uns dez anos de idade surgiu à sua frente, com os olhos arregalados, paralisado de medo.

— Oi? Isso é seu? — Garta perguntou em um tom amigável, como não fazia há muito tempo com uma criança.

O menino, vestindo roupas surradas, permaneceu imóvel sob as lanternas espaçadas da rua. Então, com um pouco de coragem, balançou a cabeça afirmativamente.

— O que foi? Por que está com medo? — ela tentou, ainda mais gentil. Pegou a bola do chão e a estendeu. — Aqui, pega.

O menino sorriu timidamente. Garta também sorriu, e não conseguiu impedir que as lembranças das crianças da capital de Albores invadissem sua mente. Sentiu-se nostálgica e, por um breve momento, esperançosa.

— Irmão, o que você está… — a voz de uma garota surgiu atrás do menino e parou ao ver a cena. Gritou: — Irmão!

— Irmãzona?! — o garoto respondeu, perdendo o sorriso.

A menina, com a mesma expressão assustada, mas mais decidida, com seus doze anos de idade. O vestido manchado e remendado tremulava com o vento enquanto ela se aproximava.

— O que está fazendo com o meu irmão? — perguntou, puxando o garoto pela mão.

— Eu só… — Garta tentou explicar, mas foi interrompida.

— Espera, irmãzona. O moço herói não disse que ela é má.

— Herói? — Garta repetiu, franzindo as sobrancelhas.

— Você ouviu o que ele disse, Darian! A guardiã assustadora é...

— Ei! — Garta se impôs. — Não se deve chamar pessoas que você nem conhece de assustadoras. E onde está esse tal de herói?

O menino respondeu rápido, como se tivesse sido ameaçado:

— Ali, na Festa da Lua — apontou para o fim da rua, poucos metros adiante.

— Festa da Lua?

— É — a menina disse. — É tipo um Sol, mas que aparece à noite e é mais bonito. Mamãe falou que antigamente a Lua iluminava o céu quando ele ficava escuro.

— Então… vocês ainda comemoram a Festa da Lua? Mesmo depois de tanto tempo? Mesmo sem lembrarem direito o que ela era?

A garota espremeu os olhos em julgamento.

— Darian, tem certeza que essa mulher é a Guardiã Assustadora?

— Já disse pra não me chamarem assim! — Garta protestou, mas foi ignorada.

— Ela é exatamente como o moço herói falou. E veio com ele.

— Sei não… — a menina avaliou Garta com um olhar cético. — Parece muito bobinha pra alguém que vai trazer a Lua de volta e ainda tem o nome de guardiã assustadora...

A bola de pano voou em um arco perfeito e acertou em cheio a cabeça da menina. O impacto foi leve, mas o suficiente para fazê-la cambalear e cair de bunda nas pedras.

— Irmã! — o menino se assustou.

E Garta estreitou os olhos, avançando em direção ao final da rua:

— Goro… seu idiota. O que você andou falando por aí, hein?!

Garta apertou o passo, ignorando os protestos da menina ainda sentada no chão, massageando a cabeça em dor.

A poucos metros adiante, no fim da rua sem saída, havia de fato uma festa singela, iluminada por lanternas artesanais penduradas entre as casas. Duas barraquinhas improvisadas ofereciam comidas e doces simples, enquanto um homem de meia-idade, sentado em um caixote, tocava algumas músicas tranquilas em um violão de seis cordas faltando uma.

Algumas poucas famílias estavam reunidas, rindo e conversando no que parecia um raro momento de paz. Era um ambiente modesto, com algum sentimento discreto de esperança. Como se, por um instante, o mundo lá fora não existisse.

E ao fundo daquele espaço, sentado na entrada de uma das casas e roubando a atenção, havia um homem com os cabelos acinzentados penteados para um só lado, as pernas cruzadas e um copo quase vazio na mão. Ele estava rodeado por algumas pessoas, adultos e crianças, que o escutavam. Seus rostos aparentavam um fascínio quase infantil, olhos arregalados diante de cada palavra.

— ...e então eu apareci! — dizia ele, com a voz um pouco mais alta e orgulhosa do que deveria. — Justo quando aquelas aberrações iam alcançar a guardiã, eu saltei na torre em forma de ponte, e impedi todas as criaturas apenas com o meu revólver de Sathsai e minha coragem.

— Sozinho?! — Uma das crianças perguntou impressionada.

— Bom, eu tive ajuda da minha assistente, a arqueira fofinha, mas fui eu quem segurou na mão da guardiã assustadora e a protegeu.

— Uaaau! — não só as crianças reagiram, até os adultos ficaram boquiabertos.

— E o que você fez depois, senhor herói? — perguntou outra mulher curiosa.

Garta chegou bem a tempo de ouvir a resposta:

— Fiz o que qualquer herói faria, é claro. Apontei o dedo pra cada uma daquelas criaturas e disse: “Se quiserem a minha guardiã, vão ter que passar por mim primeiro!” E então... todos fugiram!

— Você não disse isso. — Garta cruzou os braços atrás da pequena plateia, interrompendo a performance.

Goro, ainda empolgado com o gosto alcoólico na garganta, piscou os olhos tentando focar. Arregalou-os ao reconhecê-la.

— Ah… Garta! — sorriu forçado, tentando disfarçar. — Pode confirmar tudo que eu disse e...

— Confirmar? — Ela arqueou uma sobrancelha, irritadiça. — Isso é uma piada?

A pequena plateia começou a cochichar entre si, confusa. Uma voz infantil se destacou entre os murmúrios:

— Ela é mesmo assustadora...

Garta estalou a língua e cerrou os dentes. Seus olhos varreram os rostos em volta com intensidade. O calor em seu olhar fez adultos desviarem o olhar, crianças recuarem e sorrisos se apagarem. O ambiente, antes tão leve, ficou carregado.

Goro captou de imediato a mudança. Deixou o copo de lado, se levantou num salto e foi até ela.

— Calma, pessoal — disse, com um tom conciliador. — Eu falei que a Garta era... firme. Mas também disse que ela é nossa heroína. Então tratem ela com respeito, tá bem? Nada de apelidos.

Um dos homens, mais velho, rebateu hesitante:

— Mas foi você quem chamou ela de guardiã assu... — ele se interrompeu ao ver os olhos de Goro se estreitando em confronto. — Ah, esquece.

Goro amenizou a tensão com um sorriso. Então continuou arrumando explicações.

— Isso é porque eu e a Garta somos velhos conhecidos e tenho a permissão de chamá-la assim, não é mesmo, minha guardiã?

Ele se virou para Garta, pronto para a resposta ácida de sempre. Mas ela não veio. Seus olhos estavam distantes, presos a um ponto no horizonte.

— Garta? — ele chamou, confuso.

— Heroína... — sussurrou ela.

O pequeno garoto Darian, se aproximou de Garta.

— Moça heroína, é verdade que você vai trazer a Lua de volta?

Ela prendeu a respiração. Pareceu ficar paralisada logo em seguida. Seus olhos continuaram vagos, os pensamentos embaralhados. Uma mistura de lembranças, falhas, promessas quebradas e fardos silenciosos pesando sobre seus ombros.

Goro a observava, em silêncio. Ele estudava tudo. Cada pequena expressão, e cada ausência em seu olhar.

O silêncio cresceu de forma a ameaçar o pouco de alegria que restava.

Então Goro respirou fundo pronto para interromper a tensão, começou a dizer:

— A...

— Pode ter certeza. — Garta o interrompeu, em um sussurro firme.

Todos esperaram em expectativa. A guardiã não levantou o olhar, muito menos o encheu de determinação, mas disse com clareza: — Pode ter certeza que vamos trazer a Lua de volta.

Por um segundo, tudo se manteve suspenso. E então, como um desprender da respiração, sorrisos ressurgiram junto com murmúrios animados. As pessoas começam a se aproximar novamente, agora com reverência, curiosidade e esperança.

— Tá bom... já é o bastante, pessoal. — Goro interveio, colocando a mão de leve nas costas de Garta e a conduzindo. — Heróis também precisam descansar, pessoal.

Com passos calmos, ele guiou-a para fora da pequena aglomeração, desviando das crianças e das perguntas. Deixaram para trás as festividades e voltaram pela rua principal, vazia, como antes.

Eles caminharam lado a lado, apenas as suas sombras formadas pelas luzes das lamparinas lhes acompanhavam. Nenhum dos dois falava, e o silêncio se estabelecia até que Goro se obrigou:

— Você tá bem? — ele perguntou, tentando soar atencioso.

— Tô sim — respondeu ela, automaticamente, sem nem olhar.

— Garta? — insistiu ele.

Ela desviou um pouco o rosto e tropeçou nas desculpas:

— Eu só fiquei um pouco nervosa com tanta gente falando e...

— Sabe que isso não funciona comigo, não é?

— Hã?

— O que te preocupa? — Mais uma vez, atencioso, até demais.

Ela revirou os olhos, quase como um reflexo.

— Espera — Goro parou, segurou a mão dela e a impediu de prosseguir.

— O que acha que tá fazendo...?

— Me fala, Garta, no que você pensou lá? Quando falaram que traria a Lua de volta?

— Eu pensei no quanto as pessoas são bobas ouvindo você e...

Goro se aproximou, os olhos sérios sobre ela. Insistindo na pergunta e na preocupação.

— Lembra do que eu te disse, uma certa vez? Para parar de fingir que não liga. Que não precisava carregar todo o peso do mundo nas costas, e que não precisava fingir ser forte, pelo menos não para mim?

Era óbvio que ela se lembrava, seu rosto denunciava isso. Mesmo assim, Garta escolheu olhar para o outro lado, sem enfrentar os olhos dele.

Goro avançou. Não só a encurralou com palavras, mas as costas delas também acertaram a parede de tijolos sob a luz amarelada de uma das lanternas na rua.

— Naquele dia, quando a Iara e eu te salvamos dos lunáticos — lembrava ele —, você ficou um bom tempo desacordada. De tempos em tempos eu ouvia você sussurrar: “Como você pode entender isso? Como poderia me entender?”

— Não sei do que você está falando...

Ela tentou se esquivar mais uma vez, mas ele impediu.

— É isso, não é? O que você quer?

— Heh...

O rosto dela ficou completamente vermelho a centímetros do dele.

— Quer que alguém te entenda. —  Goro respirou fundo, tomando coragem. — Então me deixe entender te entender.

Antes que ela pudesse desviar os olhos novamente, Goro avançou o rosto para mais próximo dela.

— Me deixe entender. E eu sempre estarei com você, Garta. — Ele disse repleto de certeza, sem escapatória. Seus olhos apenas refletindo os dela.

— Eu...

Garta enfim o encarou, os olhos ligeiramente arregalados e o rosto corado.

Goro aproximou seu rosto, devagar. As palavras já eram ditas apenas através de suas respirações.

Perto, muito perto. Até, finalmente, seus lábios se tocarem.

Não era algo ardente, nem impulsivo. Era contido, suave, honesto. Um pedido silencioso, uma interrogação. Respondido com uma intensidade confusa, um aceite frio lotado por próprias incertezas.

Ela sentia o calor da mão de Goro pousando com cuidado em sua cintura, o gesto sem pressa ou domínio. Sentindo o leve tremor nos dedos dele e a respiração desarrumada.

Ela fechou os olhos por um instante pronta para ser compreendida... até ouvir:

— Moça heroína? Você tá por aqui...? — a voz infantil de Darian ecoou pela rua.

Em um reflexo instintivo, Garta reagiu no susto. O soco foi automático.

Acertou Goro no estômago com um golpe seco e direto, punho fechado, força suficiente para fazê-lo dar um passo para trás e se curvar com um gemido.

— Puta merda...! — ele resmungou, segurando o abdômen, até acabar ajoelhado diante dela.

Ela ficou imóvel, paralisada, o rosto em fogo, punhos cerrados. A vergonha fervia por cada centímetro de sua pele.

— Moça heroína? — Darian se aproximava, curioso e confuso.

Garta se desesperou sem saber como agir.

— Isso... Isso foi para você aprender! — ela gritou para Goro, como em uma desculpa por seu próprio ato inconsciente. — Quem disse que você podia fazer isso?

Goro ainda tentava recuperar o fôlego, ofegante, rindo entre a dor.

— Eu entendi... eu entendi...

— Moço herói? Você está bem? — perguntou o menino parando ao lado dele. — Vai conseguir trazer a Lua?

— Eu tô legal... — ardendo em dor. — Por que você não vai encontrar com a sua irmã. Antes que eu taque a Lua em você, garoto!

Darian se surpreendeu com o medo reverberando em seu rosto assustado e ameaçado.

— Tem razão, minha irmãzona! — O garoto seguiu a instrução de Goro, mesmo sem entender o motivo da intimidação. Correu de volta por onde veio.

Enquanto isso, Garta já se afastava com passos apressados, afogada em vergonha. Antes de dobrar a esquina, ela deu meia-volta rápida, sem saber se ia ou voltava, e gritou, sem controle:

— E não se atreva a fazer isso de novo sem me avisar, ouviu?! — Irritada. Confusa. Ansiosa. Ela se virou de novo, apressada, tropeçando no próprio passo.

E então sumiu pela rua estreita.

Goro ficou ali, ainda ajoelhado, com a mão sobre o estômago e um sorriso torto no rosto. Um sorriso bobo. Dolorido, mas vitorioso.

— “De novo”? — murmurou repetindo, rindo sozinho. — Tem o gosto que eu imaginei que teria. Ai, ai...

                                               ***

No alto de uma das salas da ilha flutuante de Nox, que agora estava pousada em terra firme próxima a cidade de Última, Beca trabalhava com atenção plena sobre uma bancada improvisada. Os óculos de precisão no rosto suado enquanto suas pequenas mãos ajustavam o último encaixe de cobre em uma estrutura incomum. Um arco metálico improvisado, trançado com fios e cabos diversos, construído às pressas em meio a guerra. No centro do aparato, um receptáculo vazio esperava para ser preenchido.

Colth observava em silêncio, braços cruzados, e a urgência na sua face. O vento que entrava pela janela bagunçava seu cabelo, mas ele não se incomodava. Seus olhos estavam fixos no aparato, enxergando ali a esperança.

— Já terminou? — perguntou, sem conter a tensão na voz.

— Pela última vez: Eu vou terminar, quando terminar — rebateu Beca, ligeiramente irritada, sem tirar os olhos do que fazia.

— Você disse que levaria quinze minutos. — Ele suspirou, inquieto, se virou para a janela e observou os destroços da Fortaleza Última ao longe. — Já faz meia hora que o Goro saiu com a Iara. Se eu soubesse que demoraria tanto, teria ido ajudá-los.

— Não se apressa a arte, Colth.

— E se eles não conseguirem deter Lux? E se a Celina for...?

Beca suspirou alto. Largou as ferramentas com um baque suave sobre a bancada e empurrou os óculos para o alto da cabeça, revelando o rosto sujo de fuligem e a expressão severa nos olhos.

— Se eles não estivessem dando conta, você já teria virado poeira, seu idiota. — Ela continuou crítica. — Acha que Garta e Celina iriam tomar uma decisão dessas sem garantir que tinham uma chance real?

— Eu sei... não é isso que...

— É exatamente isso. Elas pensaram rápido, confiaram no Goro para trazer a Iara de volta, e em você, para achar esse maldito ritual! E agora tá todo mundo cumprindo sua parte. Mas você? Tá aqui reclamando como uma criança. O que foi? Está com raiva ou inveja pelo Goro ter beijado a Garta naquela noite?

— O quê?! Não! Não tem nada a ver com isso... — Colth rebateu, engasgando com a própria voz.

— Então cala a boca e me deixa terminar — disse Beca, já voltando ao trabalho com um suspiro pesado.

O silêncio caiu entre eles, pontuado apenas pelo som rítmico do tilintar das ferramentas e pelo ranger suave da ilha se ajustando no ar.

Quase imperceptível, Beca murmurou:

— Desculpa...

Colth virou o rosto para ela, surpreso.

— Hã?

— Você ouviu — ela bufou tediosa, irritada. — Eu só estou um pouco nervosa com tudo isso que está acontecendo. E eu não entendo nada dessa coisa de... Ah, deixa quieto.

Colth sorriu sem disfarçar o cansaço. Respirou fundo retomando o ambiente cooperativo.

— Você está certa. Eu estou morrendo de inveja que o Goro está ao lado de quem ele se importa. Não vejo a hora de fazer o mesmo — ele observou o cenário devastado pela janela e depois voltou seus olhos novamente para a engenheira. — Beca, obrigado por tudo.

Agradeceu, sem motivo aparente. Uma rajada de vento quente entrou pela janela, balançando as cortinas e trazendo consigo um instante de silêncio estranho.

Beca paralisou, olhos arregalados.

— O quê?! Não, não! — respondeu ela, uma reação desproporcional aos olhos de Colth. — Só porque você perdeu a Garta, agora quer vir pra cima de mim? Pode parar!

Colth também arregalou os olhos ao perceber o mal-entendido. Tentou desfazê-lo imediatamente:

— Não! Você entendeu tudo errado! Eu estava falando da...

Antes que pudesse explicar, a resposta foi perdida quando a porta foi escancarada de repente.

— Beca! Voltamos! — anunciou Hikki, ofegante, segurando uma pequena caixa de madeira contra o peito. O rosto vermelho e suado mostrava o quanto tinha corrido até ali. Caio vinha logo atrás, igualmente ofegante, mas com um sorriso orgulhoso. — Trouxemos a maior e mais brilhante, como você pediu!

— Bem na hora, idiotas — retrucou Beca, deixando o assunto anterior de lado. Havia algo infinitamente mais importante agora. Colocou a atenção sobre a bancada improvisada no meio da sala novamente. — Venham logo me ajudar a ligar isso.

Hikki e Caio se apressaram até a bancada, com uma sincronia surpreendente aos olhos de Colth. Abriram a caixa com cuidado, como se revelassem um tesouro. Quando a tampa foi erguida, uma luz azul profunda banhou a sala, projetando reflexos nas paredes e nos olhos atentos de todos.

Colth prendeu a respiração.

O fragmento dentro da caixa era o mais brilhante que ele já havia visto. Como olhar para uma lembrança viva.

— Uau... — sussurrou, hipnotizado.

— Acharam um bom fragmento — comentou Beca, permitindo-se um instante de admiração. — Certo. Encaixem no receptáculo.

Hikki e Caio se moveram rapidamente levantando o cristal em formato retangular. Com as duas mãos, o posicionaram com precisão no centro do arco metálico sobre a mesa. Quando ele tocou o receptáculo, a estrutura inteira tremeu com uma leve vibração.

Beca observou com olhos analíticos e orgulhosos.

— É isso — disse, finalmente, com um tom de satisfação discreta.

Hikki e Caio se entreolharam e se cumprimentaram com os punhos fechados, comemorando a pequena vitória, a tarefa cumprida.

— Então... está pronto? — perguntou Colth, se aproximando devagar da bancada.

— Sim — respondeu Beca, com um sorriso contido. — Tá pronto.

— E... funciona? — ele insistiu, ainda inseguro diante do aparato improvisado.

— É claro que funciona! — Beca virou para ele, indignada. — Fui eu quem fiz, lembra? É só você focar sua energia de Anima no cristal. Ele vai funcionar como uma ponte. A sua mente vai ser levada ao mundo de origem da magia de Anima junto as lembranças que lhe conectam a essa energia.

Colth assentiu lentamente, absorvendo a ideia sem nem entender por completo. O nervosismo ainda presente, mas algo naquele brilho azul o acalmava.

Ele deu mais um passo à frente, esticando a mão em direção ao arco, quando a voz de Beca o deteve.

— Espera!

Todos pararam. Hikki quase engasgou com a própria respiração pausada, ao lado de Caio que disfarçava a tensão. Colth ficou com a mão suspensa no ar, confuso.

— O que foi agora? — ele perguntou, paciente e confuso.

Beca olhou para o aparato com os braços cruzados e a mão no queixo, em julgamento.

— O nome.

— O nome? — repetiu Colth, franzindo a testa. — Sério?

— Claro que sim! — ela rebateu, como se isso fosse óbvio. — Você vai entrar no mundo dos sonhos com essa coisa! O mínimo que ela merece é um nome decente. Eu não quero que nos livros de história venha escrito "bugiganga". O nome é muito... muito importante.

— Hm... — Colth não sabia como responder. — Isso parece... um pouco exagerado.

— Exagerado? — Beca estreitou os olhos, indignada.

— E se for “Ligação brilhante”? — sugeriu Hikki, casual.

— Não. Sem graça — respondeu Caio, balançando a cabeça. — Eu pensei em “Círculo mortal”.

— Isso é horrível! — Hikki revirou os olhos. — Parece nome de uma arma.

— Não é uma arma! É uma ferramenta! Vocês dois não estão ajudando. — resmungou Beca. — Colth, você. Dá um nome de verdade.

— Eu?

Ele hesitou, olhando para o arco de metal. A luz azul refletia em seus olhos, e por um instante, ele enxergou algo mais naquela estrutura.

— “Ponte dos sonhos” — disse, por fim, com um tom suave.

Todos ficaram em silêncio por um segundo. Beca foi a primeira a opinar:

— É brega...

— Serve — comentou Hikki.

— Melhor que “Ligação brilhante” — bufou Caio.

Beca encarou o cristal. Um leve sorriso apareceu em seu rosto cansado.

— Tá bom, tá bom. Colth, a ponte dos sonhos é toda sua. E não fique triste pela minha resposta de antes — ela levantou um tom dramático. — Eu ainda posso pensar a respeito... acho que não.

— Hã? — estranhou, ao perceber o rosto dela tomado por uma inesperada misericórdia.

Colth balançou a cabeça se desapegando daquele assunto. Respirou fundo e então se aproximou de vez da bancada. Colocou as duas mãos nas extremidades do arco e fechou os olhos. Sentiu a vibração suave do cristal pulsando sob seus dedos.

As vozes ao redor se tornaram ecos, como se estivessem debaixo d’água. O mundo ao redor pareceu se calar. Até o som do vento cessou.

Ele concentrou sua energia, puxando de dentro de si aquela força antiga que aprendera a acessar.

A luz azul se intensificou. O fragmento brilhou como uma estrela e o envolveu. Então, Colth abriu os olhos.

Flutuava entre os fragmentos de memórias, risos esquecidos, lágrimas antigas e promessas nunca cumpridas. Tudo no mesmo instante e lugar.

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