Volume 2
Capítulo 128: Re-União
Lux abriu os olhos devagar, sem pressa, já sabendo onde estava. Em casa.
O mundo neutro. O seu mundo.
A claridade fria que preenchia a sala não a incomodava. Lhe trazia familiaridade e a confortava. Eram as luzes dos cristais de Sathsai, espalhados pelos castiçais finamente esculpidos, que ornavam as paredes circulares da grande câmara principal daquele solitário castelo na estrela zelante de todos os mundos.
Mundos esses visíveis além do teto de vidro da imponente sala principal que revelava o cosmo. Estrelas, galáxias, mundos vivos, mas silenciosos dali. Como se fossem apenas a mais bela pintura sobre sua cabeça, um belo lembrete de onde estava e de quem era.
No centro da luxuosa sala, a grande mesa redonda de pedra polida. Forte, eterna. Imóvel desde a criação.
Lux estava sentada no local de maior destaque. Alta, imponente, em seu belo vestido preto, contrastando com seus longos cabelos prateados que se derramavam pelas costas da única cadeira dourada entre todas as nove.
A sua volta, os outros oito. Deuses, filhos, mas acima de tudo, servos.
Ela sorriu de leve. Um sorriso sem pressa, sem dúvidas, com muita satisfação de ter completado o seu objetivo. Passou os olhos sobre todos os filhos ao redor da mesa, invocando um misto de sentimentos de todos eles, mas predominantemente ódio, frustração e arrependimento.
O filho mais velho, apenas em idade, pois o seu rosto perfeito jovial era quase tão belo quanto o da mãe, assim como seus cabelos igualmente prateados, Mutha disse neutro:
— Finalmente, mãe… estamos todos reunidos novamente.
Um silêncio se estabeleceu. Talvez respeitoso, talvez amedrontado, ou então apenas desolado.
— Sim. Finalmente, todos reunidos — respondeu Lux, novamente encarando cada um.
Seu olhar parou em Calis, que expôs ácida como de costume:
— Não é como se tivéssemos tido escolha — disse a deusa do caos, reclinada em sua cadeira, a expressão áspera. Seus olhos claros em verde azulado, não paravam de fitar Lux, mas ela esbravejou para que todos ouvissem sua reclamação: — Se vocês tivessem me escutado, nada disso teria acontecido!
Rubrum cuspiu o ar em descontentamento e discordância.
— O que foi, irmãozinho? — Calis rebateu, com o sangue sempre quente. — Vai me dizer que era isso que você queria ao proteger aquela sua garota-dádiva?
Rubrum não deixou barato e respondeu com intensidade similar:
— Nós já conversamos sobre Lashir e a votação...
— É mesmo? — Calis se inclinou sobre a mesa, o barulho de sua armadura chamando a atenção de todos. — Olha o que a sua filha mimada fez! Olha o que essa merda de votação fez! Espero que esteja feliz! Que todos estejam felizes!
Ao lado dela, Nox tentou apaziguar com o tom doce, incompatível com o seu tamanho e músculos:
— Calma, irmãzona. Discutir agora não vai mudar nada. Temos que, mais do que nunca, aprender a conviver com as diferenças e...
— Ah! Cala a boca! — gritou Calis uma última vez, virando o rosto e se jogando de volta na cadeira.
— Irmãzona... — Nox ficou sem palavras. Grande e forte como uma montanha, permaneceu imóvel, boquiaberta pela reação da indócil.
O pequeno Véu respirou fundo.
— Vocês são tão barulhentos. Não veem que isso não importa? — disse simples. Olhos desesperançosos observando as estrelas no céu. — O controle fugiu de nossas mãos.
Finn, sentada com a postura impecável, manteve o silêncio. Seus olhos, de um violeta profundo, fixos em Tera do outro lado.
A irmã, por sua vez, firmou as palavras em direção à Deusa maior:
— Como pode ser tão insensível, Lux?
A mãe fitou-lhe de forma a mostrar o desgosto pelas palavras.
— Tera, eu deveria...
— Não fale assim com nossa mãe, irmã — interrompeu Hueh. Apontando para Tera de forma a reprimi-la — Lux é tudo o que temos. E por tudo o que temos, devemos agradecer e...
— Cale a boca — A Deusa maior proferiu, os olhos frios em direção a Hueh. — Seu verme traidor.
— Eh? — O deus em vestes desleixadas e cabelos negros longos escorridos congelou por um segundo.
— Acha que eu vou esquecer do que aconteceu, Hueh? Do que me fez passar? Seu duas caras nojento. Tenho vergonha de tê-lo como filho.
Ele engoliu em seco.
— Todos vocês, na verdade. — firmou Lux. Observou a mesa por inteira. — Todos egoístas e frívolos!
O grito ressoou para além da sala. Reverberando pelas estrelas.
— Egoístas! — repetiu Lux. — Vocês brincaram com as dádivas que eu dei. Mancharam minhas criações. Corromperam tudo o que sonhei e construí.
Ela se levantou.
O movimento foi simples, com alguma concentração, a luz ao redor pareceu busca-la por um instante. As chamas azuis dos cristais oscilaram.
— Mãe... — começou Finn, com um tom calmo, porém firme — ...por mais que esteja magoada, você sabe que não foi assim. Sempre soube que cada um de nós seguiria seu caminho.
— Sim — completou Tera, levantando-se também. — Nós erramos, mas fizemos o que achamos certo com o tempo que nos foi dado. Você nos criou para pensar, para decidir. E agora quer nos julgar por isso?
Provocada, Lux piscou profundamente, deixando de lado a concentração.
— Pensar? Decidir? — Seu tom era de indignação, e mesmo sem elevar a voz, parecia mais alta do que anteriormente. — Vocês me desobedeceram. Vocês se apaixonaram por suas criações, se apegaram a elas como se fossem iguais a nós. Como se fossem... melhores.
Ela cuspiu a última palavra como uma reprovação ardente. Continuou movendo a cabeça negativamente:
— Não são. São inferiores a nós. São como insetos. Parasitas, à beira de um colapso, espalhando suas falhas por entre os mundos que criamos juntos.
— Isso não é justo, Lux — disse Mutha, pela primeira vez erguendo a voz com firmeza. Seu timbre grave. — Isso é apenas vaidade. Destruir tudo por orgulho?
— Orgulho? — Lux se voltou para ele com um olhar em chamas. — Eu dei a vocês tudo! E o que fizeram? Permitiram que mortais tocassem a magia. A minha magia que compartilhei com vocês. Até mesmo você, Mutha...
Lux encarou o homem bem vestido no terno azul de forma vil.
— Acha que eu não sei o que tentou fazer? — Os olhos da Deusa maior eram intimidadores, ao mesmo tempo que a luz da sala falhava com sua ira. — Tentou fazer a vida de uma criança se tornar imortal...
Mutha tentou disfarçar após arregalar os olhos e se espantar com a afirmação.
— Ela não estava pronta para ser julgada — respondeu ele, firme, se esforçando para se acalmar. — Eu só quis protegê-la.
— Uma garota... Uma mera guardiã... Como pôde?
Ela fechou os punhos, e os cristais de Sathsai tremeram em seus castiçais.
— Calma, mamãe — se expôs Nox, apaziguadora. — Todos tivemos nossos motivos e...
— Cale a boca! — gritou irada Lux. — Não bastou o último castigo ao seu mundo? Eu deveria castiga-los para eternidade, todos vocês! Por destruírem tudo o que lhes dei.
Pensou por um segundo. Sem se acalmar.
— Os ciclos se romperam — disse ela, voltando a encarar todos com olhos desapontados. — Então eu mesma os consertarei. Um a um. Todas as camadas, todos os mundos. Do mais profundo abismo ao mais alto céu. Serão apagados. Um recomeço, onde vocês serão castigados. Dia após dia, até se tornarem verdadeiramente leais a mim, e só a mim.
Rubrum mordeu o lábio, impotente.
Nox baixou os olhos. Nem mesmo ela, que nunca temeu nenhuma força, ousou falar.
Hueh recuou na cadeira, murmurando para si mesmo. Véu apenas cerrou os olhos, aceitando como se aquilo fosse inevitável.
Mas Tera não se sentou.
Ela caminhou ao redor da mesa, os passos ecoando pelo mármore. Parou diante da mãe, erguendo o olhar com firmeza.
— Se for mesmo fazer isso, Lux... apague-me primeiro.
Um silêncio caiu sobre a sala. Os irmãos impressionados ao redor da mesa de pedra.
Nox argumentou com preocupação diligente:
— Não faça isso, irmãzona Tera. Você ainda tem um mundo por onde pode caminhar.
Rubrum à acompanhou:
— Nox tem razão, Tera. Você ainda tem um mundo pelo qual se importar. Além disso, sua magia seria completamente apagada. Por que faria isso?
Ela justificou:
— Porque eu me recuso a ver tudo o que amei desaparecer — disse com determinação. Se virou para a sua mãe e a encarou. — E se o preço da sua ordem for a extinção de toda escolha, de todo afeto, então que o tempo pare aqui.
— Tera... — murmurou Finn, se impactando ao lado de Mutha.
— Então... — disse Lux, com a voz de um julgamento frio — se tanto desejam que o fim comece por onde mais amam... que assim seja.
Ela deu um passo à frente. A energia mudou.
O cosmos além do teto de vidro brilhou com força, os astros cintilando.
Lux estendeu a mão na direção de Tera. A mãe comentou com um olhar contido sobre a filha:
— Eu realmente não achei que se entregaria desse jeito. Mas vejo que seu arrependimento é legítimo. Pena que demorou tanto.
Tera estendeu a mão para ela e respondeu decidida, sem tirar os olhos da sua mãe:
— Mais um sacrifício egoísta de uma deusa egoísta, não é?
— Sacrifício? — Lux deu de ombros, se aproximando. Segurou a mão da filha com estranha delicadeza. — Se é assim que quer chamar...
Fechou os olhos, como em um gesto piedoso. Tera manteve os seus abertos, firme. Encarava o belo rosto da mãe com o peso de todos os sentimentos que queria esquecer.
Todos os outros prenderam a respiração, tensos, com atenção ao que estava prestes a acontecer.
A Deusa maior então sussurrou:
— Que a extinção da magia do tempo se faça ao meu desejo.
Um estrondo atravessou o mundo ilusório. Uma vibração rachou o chão da sala circular. As luzes dos cristais de Sathsai tremularam violentamente, como se as lembranças estivessem prestes a incendiar. Lux havia acabado de exercer sua autoridade absoluta e, com isso, decretado o fim da magia de Tera, e da sua própria filha.
A sala ficou quieta. Um silêncio absoluto que nunca antes havia se erguido.
Lux respirou fundo, se despedindo uma última vez da sua segunda filha. Aquela com a qual dividiu a criação do tempo.
A Deusa mãe então abriu os olhos devagar, esperando ver os rostos de fúria, luto ou reprovação dos outros sete filhos, mas algo a surpreendeu.
Uma figura inesperada, onde antes estava Tera.
Uma mulher. Jovem. Determinada. Aquela mesma que havia se tornado a guardiã de Tera.
Lux franziu o cenho imediatamente. Todo o estranhamento dos mundos em seu rosto.
— O que é isso? — se perguntou em um desaforo confuso.
Celina, plena e decidida como a deusa Tera um segundo atrás, havia tomado o seu lugar. Não. Ela sempre estivera ali. Então disse:
— Você selou o seu próprio destino por ser arrogante demais.
— Como ousa, sua...
Lux enfureceu-se. Ergueu o braço em um gesto automático, tentando desfazer a presença da intrusa. A mão em direção ao rosto decidido de Celina e a concentração focada na destruição.
Nada aconteceu.
Sua magia não respondeu.
Lux piscou os olhos tentando compreender, sentindo um frio que não vinha do ambiente.
— O que está acontecendo...?
Olhou com preocupação e temor para Celina à sua frente. Mas a mulher não lhe deu resposta, apenas a encarou de volta com absoluta coragem e determinação. Os olhos de Lux ferveram em raiva.
— O que você está planejando? Hã?! Responda!
A porta dupla do outro lado da sala de reuniões foi escancarada. Dela surgiu um homem, passos firmes, expressão lúcida.
— A verdade... — disse Colth, erguendo a cabeça ao entrar. — ...é que você acabou de realizar o sacrifício necessário para finalizar um ritual.
— Do que você está falando?! — a Deusa maior exclamou desafeta.
— Você acabou de sacrificar toda a magia de Tera, Lux. — Colth não escondeu o quão prazeroso era ver o rosto da Deusa em aflição. Ele continuou ainda mais satisfeito. — Ninguém jamais conseguiria isso. Precisariam sacrificar centenas de pessoas para tal, ou então sacrificar um guardião legítimo e sua magia. Mas você, Lux, você consegue. Consegue finalizar um ritual sem derramar uma única gota de sangue. É realmente uma Deusa benevolente, que preza muito pela vida dos humanos.
— O que você fez? — cuspiu ofendida, rangendo os dentes.
— Eu? Nada. — Colth abriu um leve sorriso. — Mas você é tão bondosa e altruísta, que fez esse sacrifício. Não por um ritual qualquer, mas um em especial. Um selo.
Lux arregalou os olhos. Sem conseguir emanar sua magia, e sem saber o verdadeiro motivo disso, ela saltou e correu sobre a mesa de pedra do centro da sala, tentando alcançar Colth com sua fúria ardendo.
— SEU...!
Mas não chegou até ele.
As correntes surgiram. Emergindo de sombras nas paredes, do teto, do chão e da própria superfície da mesa. Cada uma com lâminas encantadas na ponta, moldadas pelo ritual para aprisionar o que quer que fosse. Elas serpentearam pelo ar e se cravaram nos braços, pernas e costas da Deusa maior. Rasgaram a pele e emaranharam-se. Em um segundo, estavam apertando, amarrando cada fragmento da essência da Deusa.
— Ahhh!!! — gritou Lux. Mais em furor e rancor do que pela dor.
Foi lançada contra a superfície da mesa. Os joelhos dobraram pressionados pela força absoluta do ritual. Os grilhões se fixaram e evidenciaram um desespero crescente em seus olhos. Ela tentou ordenar para os que estavam ao redor:
— VOCÊS! FAÇAM ALGUMA COISA! PROTEJAM SUA MÃE!!!
Mas ninguém se moveu.
— SEUS INGRATOS! EU CRIEI VOCÊS!!!
Colth balançou a cabeça de forma superior, quase um pesar:
— Não percebeu ainda? — perguntou ele, com um tom decepcionado julgador. — Você cortou todos os seus laços, não tem mais ninguém a quem recorrer.
— Hã? — A preocupação da Deusa foi ao extremo.
— Esses não são seus filhos. Seus filhos não estão aqui. Não mais. Não com você.
As palavras caíram pesadas sobre ela.
Lux moveu a cabeça com esforço entre as correntes ao seu pescoço. Seus olhos vermelhos passearam por cada rosto ao redor da mesa de pedra. Estavam lá. Os sete restantes.
Mas algo neles estava errado.
As faces não reagiam. Os olhos estavam abertos, mas mortos. Nenhuma raiva. Nenhum medo. Nenhuma emoção.
Imóveis. Estáticos.
Lux arregalou os olhos ao finalmente compreender. Aquilo tudo era apenas parte de um cenário que ela só agora percebia ser falso.
— Esse não é seu mundo, Lux.. Não é o seu castelo, muito menos seu trono. Pelas regras de Anima, esse é o mundo da Celina, ou se preferir, a mente dela.
Celina se aproximou, com passos suaves, repletos de ousadia. Parou ao lado de Colth. O brilho em seus olhos era o mesmo que Tera havia carregado antes do sacrifício. E Lux finalmente reconheceu aquilo. A substituição.
Lux rosnou como uma selvagem:
— Era você... — A voz rouca engasgada com ódio. — Me enganaram... Como podem ser tão baixos?!
Colth ergueu o queixo, o olhar firme, sem compaixão.
— A culpa é toda sua. Tudo nesse ambiente foi moldado a partir de memórias. E mesmo assim, Lux, você nem sequer foi capaz de reconhecer seus próprios filhos. Não percebeu a diferença de um cenário moldado pela magia de Anima e a realidade de como eles são de verdade.
As palavras ecoaram com crueldade.
Lux apertou os punhos em pura ira. Os dentes cerrados, o rosto contorcido.
— AHHHH!!! — gritou ela. Desespero, raiva e orgulho ferido. — Vocês não podem fazer isso! EU SOU ETERNA!
Celina deu um passo à frente, o olhar fixo.
— Então estará selada pela eternidade — finalizou ela.
Respirou fundo. A tensão do rosto de Celina começou a ceder, sentindo o que aquelas palavras ditas por ela mesma significavam.
Olhou para Colth e sorriu. Era o fim de tudo aquilo. Era finalmente a paz.
O rapaz sorriu de volta:
— Deu certo... o ritual foi concluído — constatou ele em felicidade, quase desacreditando no que acabaram de fazer.
— Eu falei que daria certo — respondeu Celina.
Por um momento, o silêncio se instalou de novo.
Ambos se olhando com o dever cumprido sorrindo em seus olhos.
E então... Lux começou a rir.
Não uma risada nervosa ou de desespero. Mas uma gargalhada profunda. Perversa.
— Hahahahahaha — ecoou pela sala enquanto ela mantinha a cabeça baixa e o rosto escondido.
Colth se preocupou minimamente. Estranhou cauteloso:
— O que tem de tão engraçado?
Lux ergueu os olhos para Colth, e neles havia o terror que só os mortais podem conhecer.
— Você não entendeu, não é?
Colth estreitou o olhar.
Lux curvou os lábios em um sorriso distorcido, sujo de ironia.
— A sua preciosa Celina carrega a essência de Tera. Guardiã? Não. Substituta. Como uma falsa deusa agora. E sabe o que acontece quando alguém extingue toda a magia de uma deusa?
Colth sentiu um arrepio subir pela nuca. Lux inclinou o rosto, cruel.
— Ela vai definhar. Devagar. Como um corpo sem alma. Como uma chama lentamente se apagando. — A Deusa aumentava o sorriso e saboreava cada palavra à medida que Colth perdia o ar e tremia em temor. — Afinal, toda a magia de Tera está em mim agora. Selada comigo. Selada por vocês! E quando a garota estiver fraca, quando não conseguir controlar mais sua mente, eu vou assumir o seu corpo e voltar a...
Celina fez um gesto com a mão, e no instante seguinte as correntes em volta de Lux se tornaram mais apertadas. A Deusa mãe perdeu a consciência e caiu em um sono profundo enquanto o falso cosmo brilhava belo além do teto de vidro da sala.
Colth se virou para Celina imediatamente, o rosto tenso. O medo de ser real lhe atingindo, quase comprovado pela reação dela.
— Me diz... me diz que Lux tá blefando... por favor, Celina... diz que ela tá mentindo...
Mas a mulher desviou os olhos. E isso foi pior do que qualquer palavra. Ela abaixou o rosto. Escondeu-se na própria sombra.
Colth sussurrou com um aperto no peito.
— Você sabia — seus olhos tremiam, traídos. — Você sabia...
— Escuta, Colth — ela se virou para ele. A dor nos seus olhos mostravam que não havia sido uma decisão fácil. — Era o único jeito. A única forma de...
— Quanto tempo? — ele perguntou, seco, direto.
Celina hesitou, um segundo de silêncio, mas respondeu:
— Pelos livros da biblioteca Última, um deus sem magia... entre duas e quatro semanas.
— Não... — sussurrou Colth.
Celina tentou evitar o sentimento de derrota dele. Tentou consertar rapidamente com o complemento de suas palavras:
— Mas eu não vou permitir que Lux tome o meu corpo. Antes disso, eu acabarei com qualquer chance de ela voltar. — Celina pausou a fala por um segundo, sendo acertada pelos olhos incrédulos de Colth. Ela finalizou sussurrante como uma revelação: — A minha morte significará a morte dela também.
— Não — ele chacoalhou a cabeça negativamente de imediato. — Você não entende...
Ele não terminou. Se virou e caminhou imediatamente em direção a mesa de pedra no centro da sala, em direção ao selo que aprisionava Lux. A luz do ritual ainda pulsava e as correntes ainda exerciam pressão sobre o coração torturado da Deusa imortal inconsciente.
Celina tentou impedi-lo com um alerta.
— Colth, por favor...
Ele nem deu ouvidos. Estendeu a mão, pronto para quebrar o traço mágico e libertar a Deusa. Não. Libertar a magia de Tera e o tempo de vida de Celina. Salvar Celina da própria decisão.
Mas o mundo ali, que não era regido por ele, reagiu.
A parede da sala de reuniões explodiu em fragmentos, lançando pedras e pó no ar com violência. Uma nevasca gélida invadiu o salão.
E dela, emergiu o lobo branco, imenso como uma montanha em movimento, os olhos sem brilho em breu profundo. A mesma feição de Koza, mas diferente. Aquela era a própria forma da mente de Celina, moldada em fera.
Colth não teve tempo de reagir.
O lobo avançou como um raio e o derrubou com brutalidade. As costas do rapaz se chocaram contra o mármore. O ar lhe fugiu. Ele tentou se mover, mas não havia espaço para luta.
O lobo não o feriu. Apenas o conteve facilmente com o próprio peso de toneladas.
— Não, Celina! — Colth gritou, buscando a dama daquela mente, sua voz falhando. — O que está fazendo?! Me solta!
Ela manteve-se parada no mesmo lugar de antes, de pé com os ombros caídos. Seus olhos tremiam enquanto se enchiam de lágrimas.
— Desculpa, Colth. Mas eu não posso tomar a decisão por um mundo inteiro. Assim é mais fácil.
As palavras vieram calmas, tristes. Ela o observou uma última vez, em despedida. E então...
Colth era gentilmente empurrado para fora. Seu corpo ali se enfraquecendo. Seria expulso da mente de quem ele mais amava, mas demorou tanto para perceber.
— Espera! Confia em mim!
— Eu confio, Colth — ela respondeu serena, as lágrimas surgindo.
Aos olhos de Colth, o mundo ali parecia se desfragmentar, queimar em uma chama invisível.
— Não faz isso! Espera, Celina! — Em meio ao seu desespero, Colth se lembrou do que Aldren havia lhe dito mais cedo, e do que havia visto nas memórias de Celina. Ele disse rápido, tentando fazê-la parar: — Eu confio em você!
Ela vacilou.
Colth não. Disse com toda a força que lhe restava:
— É isso, não é? — ele perguntou, mais esperançoso ao perceber que voltou a conseguir ver perfeitamente o mundo regido pela mente de Celina. Não estava mais sendo expulso dali. Então se preocupou em se lembrar mais do que importava. Proferiu: — “Não precisa mentir. Eu consigo ver isso nos seus olhos.”
Ela se surpreendeu tanto que esqueceu de respirar por um momento. Tudo parou. O tempo, o lobo, até mesmo o ar.
— Você... você leu?! — perguntou Celina, com uma sensação estranhamente quente no coração e os olhos empolgados diretamente para ele.
Colth respirou, percebendo que ela havia permitido uma chance.
— O conto de Flagdan, não é? — perguntou ele, com sinceridade. — Não, eu não li. E agora, com a biblioteca de Última destruída, eu acho difícil de encontrar um exemplar.
A mulher baixou a cabeça, talvez com a realidade lhe acertando. A desesperança.
— Mas conto com você para isso, Celina — Colth manteve a sua decisão de franqueza. — Eu quero ouvir sobre essas histórias. Quero ouvir todas as histórias daqueles livros que você leu. Que tal, em? Que tal reescrevermos aqueles livros?
Ele sorriu com o tom mais leve de suas palavras. Mas não foi o bastante, Celina mantinha-se cabisbaixa.
Ela mordeu os lábios. A dúvida absoluta perdendo o sentido.
— Não é justo... — ela sussurrou.
Finalmente levantou o rosto. A tristeza na face por sair vitoriosa daquela discussão. O brilho nos olhos devido às lágrimas prestes a cair, quase uma preparação para o que estava por vir. Disse consentindo:
— Você é tão trapaceiro.
O rapaz, sem conseguir se mover, prosseguiu tentando convencê-la, mais sério agora.
— Me desculpe por ser egoísta, agora há pouco. Eu me desesperei. Acho que só de imaginar a dor de estar sem você, me fez agir como se nada mais importasse.
Celina assentiu, abriu a mão em um gesto. O lobo desapareceu em seguida, tornou-se fumaça, liberando Colth da contenção.
O rapaz se levantou devagar, sem tirar os olhos preocupados de Celina.
Ela rapidamente tentou se esquivar:
— Não adianta tentar me...
— Me escuta, Celina — interrompeu Colth, caminhando na direção dela.
Ela rebateu de imediato, segurando a emoção na garganta.
— Para, Colth. Não torne as coisas mais difíceis.
— Difícil ou fácil, isso não importa — ele continuou caminhando em direção a ela. Convicto. — Eu sempre estou pedindo para você confiar em mim. Mas acho que chegou a hora de eu confiar em você.
— Para...
— Não! Me escuta, Celina! — ele deu um passo à frente, a voz falhando, mas a intenção firme como nunca. Verdadeiro. — Você não entende, não é?! Não entende!
— ... — ela se calou, surpreendida com a intensidade dele.
Colth continuou com todo o seu sentimento exposto.
— Mais uma vez está só me ouvindo, mas não está escutando o que eu estou dizendo.
Celina suspirou ao se lembrar daqueles mesmos dizeres. Colth parou poucos passos dela, mas continuou com as palavras para tentar fazê-la entender:
— Depois que eu te conheci, tudo fez sentido. Eu apenas fugia do meu passado. Arrastando tudo como um fardo que ninguém podia tocar, nem mesmo eu queria me lembrar. Mas então você apareceu.
Colth a observou, e nos olhos dela havia a mesma beleza de meses atrás, mas agora com um brilho que tremulava.
— Você me fez perceber o quanto eu poderia me tornar outra pessoa. Não por vergonha de quem eu fui, ou por simples capricho. Mas por que ninguém deveria moldar o nosso destino, nem um deus. Eu não sabia o quanto precisava disso até ouvir seu nome. Até ver você sorrir, depois de tudo o que passou.
Ele respirou fundo, as mãos trêmulas.
— Cada dia com você me fez querer acordar. Me fez querer lutar por esse mundo, por qualquer mundo em que você esteja. Me fez acreditar que eu podia ser melhor, assim como você.
Um leve brilho se formou nos olhos de Colth, e ele não tentou esconder.
— Colth... — ela sussurrou.
Ele avançou ainda mais.
— Você nunca quis ser guardiã, Celina. Você mesma me disse isso. Então, não seja. Não precisa ser uma guardiã, muito menos uma deusa. Não aceite isso agora. — ele respirou fundo. — Eu estou sendo egoísta de novo, mas não me peça para viver em um mundo onde você não está. Porque pra mim, Celina, o mundo não vai fazer sentido nenhum sem você.
O último passo. Centímetros do rosto dela. Colth sussurrou, tão baixo que só o coração dela podia ouvir:
— Eu não me importo de ir até o fim do mundo, desde que você esteja lá.
Celina vacilou. Os olhos marejados. O corpo inteiro tremia, dividido entre o dever e os batimentos de seu coração. Mas ela não poderia decidir apenas por si, afinal, foi esse sentimento que levou a tudo aquilo.
— Eu não... — ela começou, com a voz falhando, prestes a repetir o fardo de sempre.
Mas não terminou.
Colth não deixou.
Ele rompeu os últimos centímetros entre eles, em desafio a magia do tempo. E seus lábios se encontraram, com urgência e necessidade.
Calor e frio. Culpa e perdão. Tudo em apenas um beijo. As mãos de Colth seguraram o rosto dela com delicadeza, mas seus lábios foram pressionados com toda a intensidade, como se fosse a última coisa a se fazer no fim do mundo.
Celina respondeu de corpo inteiro. Se permitindo desfrutar dos sentimentos que jamais sentiu. Os olhos se fecharam. O mundo sumiu. Havia apenas eles dois.
O primeiro encontro. A desconfiança. As brigas. O cuidado. O desespero de quase perdê-lo e vice-versa.
E agora, isso.
Um gesto que era mais que um beijo ou palavras. Era uma promessa de confiança.
Tudo aquilo que passaram juntos havia de fazer algum sentido. Não poderia acabar em um simples sacrifício. Não seria justo se acabasse.
Quando seus lábios finalmente se separaram, o tempo voltou devagar.
— Me desculpe... — ela sussurrou, no automático.
Colth fixou-se nos olhos de Celina. Ela já não era mais aquela garota indiferente de quando a conheceu.
— Não precisa se desculpar. Nós vamos achar uma saída, juntos — afirmou ele. — Eu só preciso que me escute, tá bom?
Ela respirou fundo e assentiu devagar, os olhos ainda marejados, mas calmos.
E então, sem perceber, um pequeno sorriso surgiu no canto de seus lábios. Suave. Tímido. Inadequado diante do caos ao redor e do toda a situação. Mas verdadeiro. Porque vinha do simples fato de estar ao lado dele.
Por um breve momento, Celina pôde sentir. A alegria de ser vista, de ser amada. De saber que não estava mais sozinha. Mas logo essa felicidade se chocou contra a realidade. O fim se aproximava, e ela ainda precisava fazer uma escolha.
Colth percebeu tudo em seu rosto. O sorriso trêmulo. O brilho molhado nos olhos. O contraste entre a beleza e o medo.
Apertou os dedos dela com leveza, um "estou aqui" sem palavras.
E então repetiu, agora, não só para ela ouvir:
— Celina, eu confio em você.
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