Volume 2

Capítulo 130: A Herança dos Guardiões

A caneca de cerâmica ainda estava quente com o calor do café quando Colth a deixou sobre o parapeito da varanda da casa de Tera, agora o seu lar. O aroma amargo da bebida se misturava ao frescor da manhã, enquanto ele ajeitava o cesto de palha sob o braço e partia rumo ao bosque próximo. Com passos tranquilos ele avançava por entre as árvores que sussurravam ao toque da leve brisa.

O céu azul pálido, anunciava um dia promissor. Ele colheu frutas maduras com cuidado enquanto os pássaros celebravam a manhã com cantos variados. Maçãs e ameixas encheram o cesto.

Antes que o sol atingisse o topo do céu, Colth seguiu pela trilha de terra batida até o rio. Caminhava devagar, saboreando a maçã vermelha que tirara do próprio cesto. Logo, encontrou a grande pedra que sempre o aguardava, imersa na sombra de uma árvore generosa. Seu cantinho pessoal.

Sentou-se com um suspiro, deixou o cesto de lado, e esticou as costas. O som da correnteza leve se misturava aos sussurros das folhas e ao zumbido distante da cachoeira.

Preparou a vara de pesca que já o esperava ali, desde a última vez. Amarrou a linha e prendeu a isca, uma suculenta minhoca. Lançou o anzol com um arremesso firme e ensaiado. A isca afundou no centro das águas claras, deixando círculos suaves na superfície calma.

Colth encostou-se na pedra, mordiscou mais um pedaço da maçã e respirou fundo o ar puro. Uma brisa suave agitava as folhas e trazia o cheiro fresco da água corrente. Um sorriso surgiu.

— Ah... — suspirou relaxado, as roupas simples grudando levemente ao corpo suado. — Isso que é vida.

Depois de alguns segundos no silêncio da sinfonia da natureza, ele puxou a cesta para mais perto, retirando de dentro um velho caderno de capa gasta e um lápis quase no fim. Abriu na primeira página em branco e observou o espaço vazio à sua frente.

— “Escrever sobre algo que eu ache importante...” Como se fosse fácil — disse em voz baixa

Ficou em silêncio por um instante, observando a ponta do lápis. Depois, murmurou:

— E se eu começasse pelo ataque à Toesane...? Ou pelo exame da Defesa de Albores, quando conheci a guardiã de Tera e Finn... e aquele que viria a se tornar o imperador sombrio.

Deu uma pequena risada de canto.

— Eu poderia escrever sobre a viagem que fiz entre Albores e Tekai também, quando reencontrei o meu melhor amigo e fiz outros novos.

Suspirou. Seu olhar se perdeu no fluxo do rio. Por um momento, saudades.

— Mas tudo isso parece tão pequeno, após ver deuses se enfrentando na Capital. Ainda mais depois de perder anos, e voltar só para encontrar o mundo de Tera devastado por conta da explosão de magia entre Tera e Lux.

Passou o dedo pela borda do caderno, distraído.

— Pelo menos, isso serviu para conhecer outros que se tornariam grandes amigos, como os guardiões de Véu e Nox. Sem contar as tantas memórias que espionei, podendo ver minha família novamente e descobrir que a guardiã de Mutha era a minha sobrinha. E que a garota se tornou uma pedra no sapato da guardiã de Rubrum. A guardiã vermelha, que se arrependeu até dos pecados que não eram dela.

Ele balançou a cabeça negativamente.

— Do que eu estou falando? Isso seria bom, se quase toda a população restante de Tera não tivesse sido transformado em selvagens lunáticos pela magia de Anima.

Fechou os olhos por um instante. Quando abriu, parecia mais leve.

— E depois de tudo isso, ainda estive em uma fortaleza voadora com morcegos gigantes horripilantes, e preso em um outro mundo controlado pelo pior dos imperadores.

Colth mexeu na linha de pesca, mas logo voltou a reflexão que escapava dos lábios.

— E pensar que lutamos contra um imperador, um deus, e a Deusa. E para mim, tudo acabou resumido a uma escolha. A minha escolha de...

Sem avisos, um uivo o interrompeu e algo pesado caiu na água com um estrondo. Água foi levantada respingando para todos os lados. Colth escondeu o caderno e levantou em um salto irritado:

— É sério?!

O lobo branco emergiu do rio, nadando pela superfície como um cachorrinho contente.

— Desculpe. Eu não resisti — respondeu Koza. — Essa pelagem deixa o meu corpo quente demais nesses dias ensolarados, e a água parecia tão fresca, que eu não pude deixar de experimentar.

— Eu devia raspar todo esse seu pelo, isso sim — reclamou Colth, espirrando as gotas que o lobo lançara em sua direção.

— Não precisa ser tão mal-humorado, garoto. Eu nem te atrapalhei.

— Eu ia conseguir dessa vez.

Koza saltou para a margem do rio ao lado do homem irritado.

— Você espanta os peixes quando fica falando sozinho que nem um maluco.

— Eu... Ah. Peixe nem tem ouvidos! Isso não atrapalha em nada.

— Você é mesmo péssimo nisso, garoto. — O lobo se sacudiu com força, espalhando gotas de água para todas as direções. — Além disso, nem percebeu que o anzol está vazio. Os peixes já levaram a sua isca.

— Hã? — Colth puxou a linha e, confirmou, não havia mais isca. Ele despencou os ombros. — Eu não faço a mínima ideia de como fazer isso.

— Eu falei.

— Precisava vir pescar tão longe? — A voz de Celina veio suave, como a brisa entre as árvores. Ela se aproximava com um sorriso nos lábios, os cabelos soltos em seu vestido leve verde claro. — Esse rio passa debaixo da nossa sacada, você sabe disso, não é?

— Não é pelo rio. É por todo o resto — respondeu Colth, olhando em volta.

— Entendo — Celina parou ao lado dele, também aproveitando a vista do ambiente acolhedor.

— Isso me ajuda a me concentrar. Para escrever o que você pediu.

— Estava escrevendo? E como está indo? — perguntou ela, curiosa.

Colth suspirou, encarando o caderno fechado ao lado da cesta.

— A missão que você me deu não é das mais fáceis — reclamou. — Eu preciso mesmo fazer isso?

— É claro que precisa. Você prometeu — disse ela com doçura, cruzando os braços.

— Não é como se eu tivesse algo interessante para escrever... — ele revirou os olhos e preferiu mudar o assunto. — Por que veio até aqui? Eu já estava voltando para casa.

Ela retirou um envelope do bolso de seu vestido e o mostrou.

— Isso acabou de chegar pelo espelho de Finn.

— Uma carta?! — Colth se animou. — O Dante demorou mais do que o normal para enviar uma nova. O que diz nela?

— Vejamos... — Celina abriu o envelope enquanto Colth se colocava ao lado dela com olhos curiosos. Ela começou a leitura: — “Querida deusa Celina, seu cachorrinho, e seu familiar lobo...”

Ambos se entreolharam. Colth estreitou os olhos e sussurrou por entre os dentes:

— Espera... eu sou o cachorro? Carta do Goro. Tinha esquecido que aquele idiota sabia escrever.

Celina conteve o riso. Passando os olhos pela caligrafia torta, continuou em voz alta:

— “...Espero que estejam bem. Se não me engano, vocês devem estar bem no ponto alto do verão, então tomem cuidado com o calor extremo e com os insetos. Por aqui, estamos prestes a entrar no inverno. As folhas estão acabando de cair e os campos de arroz já foram todos colhidos. Sei que da última vez a Iara prometeu a vocês alguns doces que ela vinha aprendendo a fazer, mas a Bertha e a Garta devoraram todos... (A Garta pediu para tirar essa parte, mas estou com preguiça de reescrever). De qualquer forma, os doces vão ter que esperar, estamos meio ocupados. Descobrimos um pouco mais sobre aquele povo desconhecido que vive nas ruínas da cidade distante do leste. Parecem que eles são originários do mundo de Calis.”

Novamente, Colth e Celina trocaram olhares minimamente surpresos. Interessados na conclusão da carta, voltaram-se rápido à escrita:

— “Estamos chamando eles de Calírianos. Ainda não sabemos como vieram parar aqui no mundo de Finn, mas isso significa que há sobreviventes com ligações a sete dos oito mundos. Eu não me surpreenderia se encontrássemos alguém de Anima escondido debaixo de algum destroço do mundo antigo de Finn. Por isso eu e a Garta vamos na próxima expedição com o grupo de exploração de Mon. Só de pensar em viajar naquela ilha voadora já me deixa enjoado. Não vejo a hora do grupo da Bertha terminar a recuperação dos trilhos do mundo antigo, pelo menos assim parte do caminho poderá ser feito de trem.”

— Sempre com as piores reclamações — comentou Colth.

Celina continuou lendo:

— “Olha só, até que eu escrevi bastante. Bom, eu tenho que terminar dizendo que a Garta está fazendo um excelente trabalho liderando Primícia. Eu espero que, algum dia, vocês possam ver a cidade que estamos reerguendo. É como um sonho sendo construído aos poucos, e que tenho muito orgulho de fazer parte. E vocês deviam se orgulhar também. Sem vocês, nada disso teria sido possível. As pessoas aqui sempre agradecem em preces o sacrifício que fizeram e a esperança herdada, mas nunca parece ser o bastante. Por isso, em nome de todo o povo de Primícia, obrigado mais uma vez, meus guardiões. Do seu MELHOR amigo, Goro.”

Colth deixou escapar uma risada pelo canto dos lábios.

— Ele precisava mesmo destacar a palavra “melhor”? Que imbecil convencido.

— Ele não mentiu — comentou Celina, dobrando e guardando a carta.

— Você esqueceu que é o Goro escrevendo? Ele não quis dizer que é o nosso melhor amigo, e sim que ele é o melhor entre os amigos.

— Ah. — Celina compreendeu e riu baixo.

 — Vamos escrever uma resposta para baixar aquele nariz empinado dele — Colth pensava a respeito, mas a fome lhe incomodou por um instante, a barriga roncou. — Deixaremos isso para mais tarde. O que você gostaria de comer, Celina?

— Bem. — Ela olhou para o rio, sorrindo. — Eu estava pensando em comer peixe. Então...

— Então é melhor não contar com o Colth — disse Koza, espontâneo, esparramado na grama. — O método da pescaria do Colth é mais contemplativo do que eficaz.

Colth estreitou os olhos, ofendido. Koza fingiu bocejar e se espreguiçou, virando de lado e finalizando:

— Desculpa. Eu vou ficar quieto aqui. Sou um simples cão.

Celina riu, abaixando-se ao lado de Colth para apontar para o anzol na ponta da linha.

— Posso tentar? — perguntou ela.

— Claro — ele entregou, sem hesitar.

Sentaram-se lado a lado na margem do rio, os joelhos quase se tocando, os olhos voltados à correnteza tranquila das águas. Celina lançou o anzol e o silêncio da natureza retornou.

— Como você está? — perguntou Colth, após alguns segundos serenos.

— Ao lado de quem eu quero estar — respondeu ela com naturalidade.

Ele sorriu de leve.

— Bobinha, falo da sua cabeça.

— Nenhuma voz, ou qualquer sinal de Lux — respondeu firme.

— Que bom. Acho que isolar toda a magia no mundo de Tera, com um selo misto, foi a decisão acertada.

Ela assentiu, mas sua expressão suavemente se apagou, o olhar perdido nas águas.

— Sim... Mas isso não te incomoda? — perguntou Celina, cuidadosa. — Quero dizer, parece que o mundo de Finn está com problemas. E não há mais guardiões além de mim e você, Colth. O que significa que Finn não está completamente seguro. E se permanecer do jeito que está, você ficará preso comigo aqui. Para sempre.

— Para sempre?! — Ele se fez surpreso. — Isso é bom demais para ser verdade. É algum sonho? Eu estou acordado?

Celina virou o rosto, sem dar pano à brincadeira. Havia uma evidente dúvida pairando sobre ela. Parecia realmente preocupada.

Então, surpreendendo-a, Colth deitou sua cabeça sobre as pernas dela, como um travesseiro dos mais confortáveis.

— O que você...

— Desde aquele dia, Celina, nunca sequer passou pela minha cabeça em viver distante de você. — Os olhos dele fixos nos dela. — Eu escolhi receber a magia de todos os guardiões e invocar esse selo sobre Tera, por sua causa. Para que você estivesse segura.

Celina passou os dedos pelos cabelos dele. Seus olhos permaneciam conectados. Ele continuou:

— Eu espero que o mundo Finn continue bem. É claro que eu fico preocupado com a situação deles encontrando esse povo estranho, ou então com saudades ao ler as cartas que nos escrevem. Mas também sei que, mesmo sem a magia dos guardiões, eles vão se virar. E que mesmo distantes, ainda permanecemos juntos — Colth continuava sereno, pleno com um sorriso leve. — Além disso, a Garta não precisa de magia alguma para amedrontar qualquer um que a olhe torto. E o Dante vai nos trazer qualquer novidade, caso algo aconteça. Mas, pra ser sincero, nada disso foi o motivo real da minha escolha.

Colth manteve a seriedade. Seu tom era calmo. Profundo.

— Como alguém me disse uma vez... Eu sou egoísta. E não me importo com isso. Hoje, eu só me importo com o meu mundo. Com isso aqui.

Ele apontou para a ponta do nariz dela. Sussurrou:

— Eu só quero estar aqui, com você.

O rosto dela corou, ao mesmo tempo que desenhou involuntariamente um sorriso nos lábios.

Se encararam por um ou dois segundos, sem mais palavras. Não precisavam.

— Au! — latiu Koza, de repente, orelhas em pé.

Celina levou um susto com o puxão da linha de pesca em conjunto ao surpreendente lobo.

— Ah! Um peixe! Colth! Um peixe mordeu a isca!

O animal saltou da água em uma curva prateada.

— Puxa! Puxa! Vai, agora é contigo! — gritou ele, sentando-se às pressas.

A vara curvou com força. Os dois tentaram se ajeitar, mas suas mãos se atrapalharam.

— Segura firme!

— Eu tô segurando...!

Um último puxão descoordenado, a vara escapou. Ambos se desequilibraram.

— Aaah! — gritaram juntos.

Os dois foram lançados ao rio. Um grande levante de água após o impacto na superfície. Caíram na água. Koza se virou e voltou a se deitar na grama, fingindo não ter visto a cena vergonhosa.

A correnteza era gentil e a água refrescante. Colth emergiu com os braços abertos, irritado.

— Eu odeio pescar! — exclamou, indignado. — Esses peixes têm pacto com Lux, só pode!

Celina tossiu um pouco de água e olhou para ele. Ao vê-lo completamente molhado e com o rosto furioso, riu alto. Uma gargalhada pura, que veio do fundo do peito e se espalhou como raios de sol, Iluminando os olhos de Colth.

A expressão irritada dele se desfez aos poucos. Era impossível não sorrir vendo aquele riso tão iluminado, tão dela. O cabelo colado no rosto, os olhos semicerrados de tanto rir, e a roupa encharcada... e mesmo assim, ela era um sonho.

— Eu jamais vou me arrepender dessa escolha... — ele sussurrou, fascinado e convicto.

Antes que percebesse, foi acertado por um jato de água no rosto. A tal “escolha” havia o provocado com o arremesso da água de forma ousada.

— O que é isso, Celina?! — Colth secando os olhos.

Ela riu ainda mais, com um sorriso travesso.

— Para você ter mais o que contar no seu livro! — caçoou Celina.

— Ah, é? Quer saber o que eu vou escrever?! — Ele sorriu como um garoto e revidou com a mesma água.

Logo, estavam os dois correndo pelo rio raso, jogando água um no outro, rindo como se o tempo tivesse parado ali. Afinal, o mundo de Tera era deles, só deles.

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