Volume 2

Capítulo 77: Mundo sem Céu

Colth acordou, piscou os olhos, tentando se ajustar à nova realidade que o cercava. À medida que sua visão se adaptava e se levantava do chão frio, percebeu que estava em um lugar completamente estranho.

Estava de pé em um mundo de montanhas majestosas que se erguiam até as nuvens, todas elas banhadas em uma penumbra constante. Não havia sol, nem mesmo uma lua no céu noturno. Era como se o céu tivesse congelado neste estranho lugar.

As construções sobre as montanhas eram grandiosas, alcançando alturas além das nuvens e se entrelaçando em um labirinto de arquitetura complexa entre elas que eram ligadas por pontes de pedra suspensas. A luz fraca emitida por luminárias mágicas iluminava as estruturas e os caminhos, criando um ambiente de beleza sombria.

Colth olhou para baixo e percebeu estar sobre uma daquelas plataforma de pedra suspensa no ar, sem qualquer tipo de corrimão ou proteção. Ele sentiu uma onda de vertigem ao notar que estava a uma altura tão grande do solo pedregoso sem vida que uma queda dali era morte certa.

— Onde estou? — se perguntou, com a voz ecoando pelo céu inerte. — Isso é o mundo de Nox? Só pode ser.

Ouviu suas próprias palavras, mas também um som constante, harmonioso como música, vindo de uma das tantas estruturas naquele horizonte irregular. De longe, o lugar emitia uma luz, como um holofote.

Curioso, Colth decidiu ir em direção a trilha sonora intrigante. Seguiu o caminho de pedra sobre o cenário montanhoso do mundo de Nox, e logo chegou à fonte da música, uma enorme construção suntuosa que se erguia sobre os penhascos.

Enquanto se aproximava, a música se tornava mais nítida, e sons de pessoas em comemoração se tornavam audíveis. Colth alcançou à estrutura que possuía uma imensa porta dupla robusta aberta, lhe convidando a adentrar, foi o que fez. Ao atravessar a passagem, foi imerso ao que lhe deixou impressionado. A estrutura na verdade era uma arena barulhenta e iluminada.

Se viu bem ao centro da arquibancada lotada que contornava o palco principal ao centro. Diante dele, uma cena de animação e energia se desenrolava. A arquibancada comemorava aos gritos enquanto no centro alguns jovens se alinhavam para o que parecia ser uma apresentação.

Era evidente que estava ocorrendo uma espécie de competição, mas as regras e objetivos exatos eram um mistério para Colth. Os participantes pareciam ansiosos e determinados.

A construção que abrigava o evento era verdadeiramente uma obra de arte arquitetônica. Haviam escadas sinuosas levavam a varandas ornamentadas sobre as arquibancadas, e cada detalhe era meticulosamente trabalhado, como se desafiasse a própria realidade.

As cores vibrantes das roupas das pessoas se destacavam contra o cenário escuro e constante de Nox, e os sorrisos contagiantes refletiam a alegria que permeava aquele lugar.

Colth se viu imerso na atmosfera festiva, quase esquecendo por um momento sua missão de encontrar Mon. Ele observou tudo com fascinação, maravilhado com a vitalidade e que emanava de todos.

No centro do palco haviam uma fila com alguns jovens, seis no total, comandados por um mais velho que também parecia ser o cerimonialista, ele pronunciou:

— E finalmente chegamos ao que importa neste dia tão importante para o nosso mundo e para a nossa deusa!

Algo capturou a atenção, não só de Colth, mas de todos ali. Uma mulher majestosa e imponente se levantou de uma das varandas mais nobres da arquibancada. Seus olhos emitiam uma luz verde que se destacava. Vestida com roupas escuras que se assemelhavam a uma armadura, adornadas com joias que brilhavam como estrelas, ela tinha uma aura de poder incomparável.

A mulher avançou até o centro do palco, onde todos os olhares se voltaram para ela. Colth sentiu a energia da multidão se transformar em uma reverência.

Ela era, sem dúvidas a deusa daquele mundo, deusa Nox. Sua presença era avassaladora, e Colth pôde sentir o respeito e o temor que ela inspirava.

Nox ergueu a mão, e o silêncio caiu sobre a multidão como uma manta escura. Enquanto Colth a observava com fascinação e um pouco de apreensão, finalmente anunciou o propósito de sua presença ali:

— Meus filhos, chegou o momento! Aquele que vai lhes trazer a proteção, que terá minha benção e a sua reverência! Indicarei o meu guardião, o defensor deste mundo!

A multidão explodiu em aplausos animados, como se estivessem prestes a testemunhar um evento verdadeiramente único em suas vidas. O som das palmas ecoava pelas estruturas que se erguiam até as nuvens preenchendo o breu do céu.

Colth sentiu a energia eletrizante do momento, mesmo sem entender completamente o que estava acontecendo. Nox era uma figura poderosa e carismática, uma mulher alta, forte, com cabelos prateados e olhos verdes em uma armadura de cor violeta escura como o dos vinhos mais encorpados que transmitia uma liderança plena.

O rapaz forasteiro observava com expectativa em meio a arquibancada o que aconteceria a seguir, ciente de que estava prestes a descobrir mais sobre aquele mundo.

— O guardião, aquele que vai servir com devoção e dedicação para manter os segredos e a magia deste mundo abençoado, está aqui, diante de nós. Todos os concorrentes se mostraram formidáveis, mas eu só posso escolher um.

Todos, sem exceção, apreensivos em silêncio com a expectativa das próximas palavras da deusa.

— Dilin Isolda — disse Nox, provocando uma reação fria da plateia. A única garota entre os candidatos deu um passo à frente se colocando à disposição da deusa. — Você é mesmo a mais habilidosa e a que tem mais afinidade com a magia. Seu tutor fez um ótimo trabalho.

— Dilin — sussurrou Colth compreendendo de quem se tratava aquela pequena menina que não passava de uma criança.

A garota ao centro do palco sorriu orgulhosa recebendo os elogios da figura maior. Estufou o peito e esperou pelo fim do anúncio.

— É a escolha óbvia para se tornar a minha guardiã — disse a deusa fazendo uma pausa pensativa —, mas ainda é imatura e lhe falta noção de pertencimento.

A plateia se surpreendeu, assim com Colth. As pessoas pareceram se animar com vários burburinhos entre as arquibancadas enquanto o sorriso de Dilin derretia, deu lugar a um rosto sério e respeitoso frente a sua deusa. O silêncio retornou rápido para que Nox pudesse finalizar:

— Benjamin Montague — convocou Nox, provocando uma reação calorenta da plateia. O rapaz mais alto entre os concorrentes deu um passo à frente.

— Esse é o Mon? — se perguntou Colth, notando o quão diferente aquele rapaz era, quando comparado ao animal selvagem preso pelas correntes da ilha voadora.

— Você é quase tão habilidoso quanto Dilin. Não me surpreende ver que o seu tutor é o mesmo que o dela.

O rapaz baixou a cabeça respeitosamente em agradecimento e esperou pelo prosseguimento da deusa enquanto ao lado da pequena garota de rosto sério.

— Montague — Nox elevou a voz —, você promete proteger esse mundo?

— Com toda a minha determinação, eu prometo — respondeu ele ao centro do palco e das atenções sem hesitar, a plateia se levantou apreensiva.

— Promete manter a magia de seu mundo segura e pura?

— Com lealdade, eu prometo.

A arquibancada inteira já estava de pé e todos tentavam segurar a animação evidente em seus rostos.

— Promete guardar a sua deusa?

— Com a minha vida, eu prometo! — concluiu Montague, ajoelhando diante de sua deusa.

Colth estava completamente envolvido pelo ambiente concentrado em expectativa pelas palavras que eram proferidas ao centro do palco.

— Eu, Nox, a deusa desse mundo perfeito, lhe atribuo, Benjamin Montague, o título de guardião. — A arquibancada não se aguentou, todos já festejavam e aplaudiam emocionados e envolvidos pelo momento. A deusa colocou sua mão sobre a testa do seu agora guardião e proferiu: — E como guardião, lhe concedo a minha benção.

A animação atingiu outro patamar, era uma festa completa com direito ao retorno da musicalidade e dos gritos animados envolto de palmas.

Uma luz brilhou forte vindo do centro do palco e acertou os olhos perplexos de Colth, foi obrigado a fecha-los. O som alegre pareceu se dispersar.

Colth voltou a abrir os olhos quando se sentiu novamente confortável com a iluminação, se deu conta de que estava em outro lugar totalmente diferente.

O ambiente ao seu redor parecia ser uma espécie de taverna. O teto baixo era de madeira em acompanhamento ao piso, e haviam mesas espalhadas pelo salão aberto, com um balcão repleto de bebidas ao fundo. Era inconfundível, mesmo não sendo frequentador assíduo desses lugares, Colth reconhecia um bar quando via um. No entanto, havia algo estranho ali. Embora tivesse um toque de requinte, aquela taverna estava longe de ser animada. Era um contraste completo em relação ao ambiente da arena onde Colth estava, segundos atrás.

O lugar estava praticamente vazio, à exceção de um pequeno grupo de amigos que ocupava os bancos do balcão. Eram quatro pessoas, além da atendente do outro lado. Todos homens, os amigos ao balcão pareciam estar se despedindo com alegria, seus rostos corados denunciavam o consumo de álcool. Três deles se levantaram com alguma dificuldade de se equilibrar.

— Até amanhã, guardião! — gritou um se afastando com os outros dois em risos.

Era evidente que a noite estava chegando ao fim, o que explicava a sensação de vazio e melancolia que pairava no ar, como o fim de uma festa.

Os três bêbados saíram pela porta principal da taverna e deixaram o ambiente ainda mais silencioso e pragmático.

O último cliente permaneceu sentado no balcão, de costas para Colth. Era um homem alto, corpulento, com cabelos escuros que caíam um pouco além dos ombros. Colth se aproximou com curiosidade e cautela, seus passos ecoando no chão de madeira que rangia com o movimento. Antes que pudesse ver o rosto do homem, ele o notou e então falou sem se mover:

— Se você quer um autógrafo, vai ter que esperar até amanhã — disse com a voz áspera e fria reverberando pelo bar.

Colth não entendeu o motivo das palavras, mas continuou a se aproximar e se sentou no balcão, a dois bancos de distância do homem desanimado. Finalmente, conseguiu observar com mais detalhes a pessoa ao seu lado. O homem segurava um copo de destilado pela metade sobre a madeira rústica do balcão e, quando finalmente seus olhos encontraram os dele, Colth foi atingido por um fitar julgador e desafiador.

O guardião de Anima teve a sensação de que conhecia aquele rosto. O homem parecia ter consigo uma montanha de expectativas não cumpridas, seus olhos, profundos e escuros como a noite sem estrelas de Nox, voltaram-se ao copo de bebida e transmitiram uma profunda frustração.

— Mon? — sussurrou Colth, tão baixo que o som mal escapou de seus lábios, e fez com que o outro não conseguisse ouvi-lo.

— Gostaria de algo, senhor? — perguntou a atendente do outro lado balcão.

— Não, obrigado — respondeu Colth sem dar atenção à mulher. O que importava ali era o guardião de Nox.

A atendente se afastou, deixando apenas os dois homens no balcão mudo.

O rapaz encorajou-se para quebrar o silêncio desconfortável que pairava sobre eles e começou com uma pergunta, ainda se sentindo e um pouco perdido naquela situação inesperada:

— Guardião de Nox, certo? Eu sou Colth, e estou aqui para...

Montague o interrompeu com um suspiro pesado, suas palavras carregadas de desgosto sem tirar os olhos da bebida:

— O que é que você quer, em? Não bastou ver a benção, não? Se quer ajuda com alguma coisa, vai ter que esperar na fila. O seu guardião tem muitas demandas para cumprir.

Colth se surpreendeu com o tom beirando a hostilidade:

— Ah? Não, não é isso. Eu quero entender o que aconteceu com você — disse Colth e voltou-se sussurrante sobre os seus pensamentos: — Se foi você, quem foi escolhido como guardião, como que a Dilin...

— Dilin?! — Perguntou o homem repentinamente. Virou seus olhos para Colth, lhe observando atentamente.

— Hã? — Colth foi novamente surpreendido.

— Você veio aqui me menosprezar, é isso? — o homem perguntou, sua voz pesada de desgosto.

— O quê? Não, por que acha isso?

O homem soltou um suspiro cansado antes de responder:

— Não é óbvio? A deusa Nox deixou bem claro que Dilin era superior a mim. Superior em tudo, inclusive em se tornar a Guardiã. Deixou isso bem claro, na frente de todos.

— Mas ela o escolheu.

— Isso só deixa as coisas ainda mais humilhantes. Você não entenderia. Só um guardião poderia compreender.

Colth não se conteve e soltou um riso sarcástico.

— O que foi? — Montague perguntou, confuso com a reação de Colth.

— Não é nada. Mas me parece uma honra ser o principal nome em seu mundo, depois de sua deusa, claro. Nox o escolheu para isso.

— Não. Não é isso. Nox deixou evidente que prefere Dilin. Eu fui o escolhido para o sacrifício, Dilin foi a escolhida para ser o braço direito dela.

— Como assim? Eu acho que não entendi...

— Não está na cara?! — Montague pareceu mais irritado enquanto apertava o copo com seus dois grandes punhos. — Ela anunciou para todos que Dilin estará ali, preparada, quando eu falhar ou ser o sacrifício para Lux. Tudo foi uma encenação. Aposto que Dilin já sabia de tudo também, ela me pareceu bem tranquila com o anúncio.

Colth finalmente entendeu a razão de tudo.

— Não me parece verdade. Dilin tem orgulho de ser a guardiã... Quer dizer, teria orgulho, mas também faria de tudo para te proteger, Mon.

O homem fitou os olhos sobre o copo ao ouvir as palavras. Se levantou do banco e elevou suas sobrancelhas com um observar intenso sobre Colth:

— Do que você me chamou?

Nas sombras do grande corpo do guardião de Nox, Colth engoliu em seco. O homem parecia ainda maior quando visto tão de perto, e apressou a resposta com um tom irritado:

— Você me chamou de Mon? De onde você veio? E qual é mesmo o seu...

No momento em que Montague começou a fazer sua pergunta, uma estranha sensação tomou conta do ambiente. O tempo pareceu congelar, como se tudo ao redor tivesse repentinamente entrado em um estado de suspensão. Até mesmo a luz das lanternas que mal iluminavam a taverna pareceu desacelerar. Colth notou sombras se erguendo pelas paredes, trazendo consigo um ruído desagradável, como se alguém cravasse suas unhas na madeira e arranhasse com força a superfície sólida.

— O que é isso? O que está acontecendo? — perguntou Mon, confuso com a situação.

— Eu não... — Colth se levantou e começou sua resposta, mas foi interrompido quando a porta da entrada foi violentamente empurrada, revelando uma figura que se movia lentamente em direção a eles.

Os olhos de Colth se arregalaram. O que estava adentrando na taverna era uma forma de escuridão densa, uma sombra sólida física do tamanho de uma pessoa. Ele não tinha ideia do que poderia ser, mas sentiu que era algo maligno.

— Dilin — Mon murmurou com as costas esbarrando no balcão. — O que você está fazendo aqui?

— Dilin? — indagou Colth, confuso, estranhando os dizeres do homem. Afinal, a entidade sombria não se parecia em nada com a pequena garota de rosto de boneca.

Os contornos do ser de sombra vibraram enquanto continuava a se aproximar da dupla no bar.

— Não faça isso, Dilin! — Mon gritou repentinamente, parecendo desesperado.

Colth ficou perplexo, sem entender o que estava acontecendo. Antes que pudesse processar a situação, a prateleira de bebidas atrás do balcão explodiu como se tivesse sido atingida por um projétil.

— O que diabos está acontecendo?! — exclamou Colth, chocado.

— O que você quer, Dilin! A minha humilhação não foi o bastante para você! — vociferou Mon para a criatura de sombras.

— Você está mesmo vendo a Dilin ali?

— Que tipo de pergunta é essa?

Mon estranhou a reação de Colth e, em seguida, se voltou ao ser de escuridão preocupado, com a certeza de que estava vendo a garota:

— Pare, Dilin! Não faça isso! — O homem arregalou os olhos pronto para ser acertado por o que quer que seja o inimigo. Se preparou para o impacto: — Merda...

No entanto, antes que qualquer coisa acontecesse, ambos os rapazes sentiram alguém agarrando o tecido de suas roupas pelas costas os puxando para trás com força, fazendo com que passassem por cima do balcão e caíssem no chão atrás dele.

O projétil, invisível para Colth, acertou o balcão em cheio, mas não o atravessou. Foram salvos pelo puxão nas costas e pela madeira maciça do balcão que se fez de obstáculo.

Colth, deitado atrás do balcão, se levantou rápido procurando o autor do puxão. Deu de cara com a atendente do bar. Não seria algo tão surpreendente, mas mesmo assim ele ficou boquiaberto:

— Você...

— Um “obrigado” seria mais apropriado — disse a bela mulher de cabelos negros e olhos vermelhos poderosos — Não acha, guardião de Anima?

Aquele sorriso influente, soberbo e repleto de sarcasmo ao mesmo tempo, não deixava margem para dúvidas. Foi o suficiente para Colth reconhecer a dona daqueles lábios rubros e sussurrar, incrédulo:

— Lashir?



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