Volume 2

Capítulo 83: Gatilho

— Por que me trouxe aqui, Irmã? — perguntou Montague, sobre o campo do lado de fora da cidade de Nox, nos arredores do precipício final de seu mundo. Ele carregava uma folha de papel com uma escrita grosseira feita a mão e um ar preocupado. — Essa carta era mesmo necessária? Não podia ter me chamado pessoalmente?

— Eu já disse para não me chamar assim. Eu não sou sua irmã — rebateu Dilin antes de responder: — Eu vou acabar com isso.

A garota mostrou os olhos determinados enquanto o vento forte, vindo do mar ao precipício, arremessava o seu cabelo para a direção contrária.

— O quê? Acabar? — perguntou o enorme rapaz com seus músculos, sobre a grama baixa e amarelada pelas luzes das lanternas que margeavam o abismo e marcavam a fronteira do mundo de Nox, ele tentava entender o sentimento confuso dela.

— Vamos lutar — resumiu a garota soturna.

— Eu já disse que eu não vou lutar com você e...

As palavras do rapaz desinteressado foram abruptamente interrompidas por gritos odiosos de Dilin:

— Vou provar que Nox deveria ter me escolhido!

— Deveria?! — Mon arqueou suas sobrancelhas, irritado. — Nox te escolheu, não percebe?

— Não é justo! — reclamou a garota.

— Não importa o que você acha justo, irmã. Não há nada que você possa fazer.

— Não é justo! Quer tanto assim, trocar a sua vida para ser um símbolo vazio?

Mon sorriu, como se tivesse se divertido com a pergunta em tom colérico da garota.

— É claro que eu quero.

— Por quê? Por qual razão, fazer isso?

— Você não entende, mesmo? — Mon sabia a resposta para a sua pergunta, mas sorriu gentil ao fazê-la mesmo assim.

A pequena garota chacoalhou a cabeça negando, não só sua resposta, mas também o motivo da dúvida.

— Dilin, desde que você foi abandonada pelos seus pais, exatamente à beira desse precipício, me imaginei nesse momento — Mon percorria suas memórias que lhe faziam saudoso. — Nossa, já fazem oito anos? Não é à toa que o Telmo disse que crescemos.

— Eu não pedi por isso. Se você se arrepende de ter me salvado, e do Telmo ter me adotado, não jogue a culpa em mim.

Os olhos da garota estavam cheias de lágrimas fervidas por sua raiva.

— O quê? Me arrepender? Não, claro que não — rebateu de imediato o rapaz. — Se eu não tivesse te encontrado, provavelmente teria o mesmo destino dos seus pais. Eu estaria no fundo desse abismo, pressionado por um futuro que eu jamais escolhi. É assim para todos, não é?

— Se está tão convicto de que esse mundo é injusto, se odeia um futuro que não escolheu, por que se mantêm nas regras deles? Você é mesmo um covarde.

— Eu só tenho um motivo, Dilin — Mon desviou os olhos para o céu sem vida e brilho e respirou fundo. Finalmente retornou, observando a pequena garota raivosa. — Meu motivo, é você.

Dilin revirou os olhos provocando o rapaz de uma forma que ela sabia muito bem fazer:

— Quanta besteira. — Ela suspirou fundo e, então, olhou para o abismo ao seu lado como algo que já havia planejado. — Se não vai lutar comigo, então só resta uma opção. Eu vou acabar com isso.

— Não faça isso, irmã — repreendeu Mon. — Eu vou te odiar do fundo do meu coração, assim como você odeia os seus pais. Foi o que me disse, não foi?

— Não me importo. Eu finalmente entendi o que eles sentiam.

Dilin deu um passo em direção ao precipício. Prestes a saltar dali para o oceano profundo e tempestuoso que margeava o seu mundo.

Mon não pensou duas vezes. Ele jamais deixaria aquela garota fazer algo tão tolo aos seus olhos. Esticou o seu braço em direção a ela e, como guardião de Nox, se preparou para usar sua magia de modo a impedi-la do caminho sem volta.

A garota não sorriu, nem se orgulhou, mas seu plano havia funcionado.

No momento em que a palma do rapaz emitiu o seu brilho mágico característico proveniente da energia de Nox, uma dor incompreensível atingiu as suas costas e lhe fez berrar em frenesi:

— Ahh!!! — Mon ajoelhou forçadamente devido ao sofrimento repentino. Interrompeu a sua magia e levou as mãos à grama, de forma a implorar pelo fim da dor sem origem aparente.

Seus sentidos pareciam sobrecarregados, enquanto as suas costas pulsavam em ardência.

— Me desculpa — Dilin lamentou. Caminhou de volta, para longe do precipício e de seu blefe. Passou pelo rapaz ajoelhado em grunhidos e dor plena. — Eu disse que vou acabar com isso.

— O que você fez?! — Mon perguntou como se suplicasse pelo fim de sua dor.

O rapaz mantinha os joelhos e as palmas das mãos na grama baixa enquanto resistia.

— É um selo de uma guardiã de outro mundo. A guardiã de Rubrum — respondeu Dilin, de costas para Mon e com os olhos na cidade de Nox no horizonte distante contornado pelo relevo montanhoso.

Mon percebeu que a grama parecia estar desenhada ao redor de si. Havia um círculo de grama, mais jovem e mais baixa, do que o restante do campo inteiro, e era justamente onde ele estava.

— Aquela mulher. Quando foi que você...

— Preparamos há alguns dias — respondeu Dilin, resistindo ao instinto de olhar para trás. Não se arrependeria agora. — Fique no centro da grama baixa e a dor vai diminuir. E nem pense em sair. Se quebrar o selo, eu não sei o que pode acontecer.

— Aquela mulher não é confiável. Esqueceu o que foi nos dito sobre...

— “Confiável.” Como se as nossas vidas aqui, fossem confiáveis. Você é mesmo um cãozinho que só segue ordens. Todos vocês.

— Irmã... Não faça isso — suplicou Mon em meio as suas dores.

Sobre a cidade de Nox, o céu sem estrelas pareceu rachar como vidro fraco. Aquele era o anúncio pelo o que estava por vir.

— Já começou — disse Dilin determinada. Antes de avançar com passos largos em direção ao centro de seu mundo. Se despediu sem olhar para trás: — Cuide bem do senhor Telmo.

— Espera... Não... — Mon tentou, mas a dor o puniu e impediu quando tentou correr em direção a garota.

Ele se contorceu em um sofrimento sólido sem conseguir fazer com que sua voz alcançasse Dilin.

***

Dilin recobrou a consciência. Abriu os olhos com uma raiva decidida ao ser acertada por lembranças de um passado que tanto odiava, mas que fazia parte de si.

Sentiu o vento forte passar pelo seu corpo, chacoalhar seus cabelos, e secar seus olhos. Estava em queda livre na direção do solo destruído da cidade Capital de Albores no mundo de Tera.

Estabilizou o seu corpo e olhou em volta enquanto ainda permanecia em queda. Viu criaturas aladas sobrevoando as nuvens e a ilha com o seu castelo invertido despencando do céu.

— O selo foi destruído — sussurrou para si mesma tentando se fazer acreditar.

Se decidiu rápida e esticou os braços para baixo, usando sua magia. Parou de cair e veio a planar.

Era notável que o poderio de sua magia estava retornando. Dilin mirou os olhos no castelo e se resolveu. Ganhou voo e mergulhou pelo céu em direção a sua ilha.

A dezena de criaturas aladas, que se assemelhavam a morcegos gigantes, voavam pelo céu como um enxame de abelhas em direção à abertura na parede externa do castelo.

Seu voo era mais rápido, e seu corpo mais ágil. Além disso, surpreendeu as criaturas de modo sorrateiro. A guardiã se apressou e se intrometeu no meio do enxame:

— Saíam do meu castelo! — gritou ela, agarrando as costas de uma das coisas bizarras.

A garota se concentrou na magia em suas mãos e arremessou a criatura para baixo. O morcego surpreendido pareceu ser puxado para o solo como se a gravidade o atingisse dez vezes mais forte.

A guardiã de Nox não perdeu tempo e continuou seu voo. Mergulhou até o buraco na parede externa de seu castelo e adentrou ao corredor. Pousou sobre a tapeçaria suja de escombros da parte interna de sua fortaleza em queda.

— Dilin?

Aquela voz ecoou pelo corredor em destroços e fez a mulher estremecer através de um sentimento único. Era um som tão familiar, mas que sentia tanta falta. Se virou desacreditando no que iria encontrar.

Mon sorriu para ela e se conteve para não correr sedento por um abraço.

— Você voltou — sussurrou Dilin sem saber como reagir. — Eu não acredito. Finalmente...

Seus olhos se encheram com um sentimento agradecido que ela mal controlava. Avançou na direção dele, deixando a magia que a envolvia se dissipar. Ela queria tocá-lo, abraçá-lo, ter a certeza de que ele estava ali e era real, mas antes que o alcançasse, um sentimento penetrou o seu coração como uma lança incandescente. Parou.

Dilin desviou o rosto e engoliu os seus sentimentos. O silêncio estranho se fez por um segundo. Disfarçou ao perceber mais um além de Mon ali. Seus olhos encontraram Colth que acompanhava a situação ao lado do homem muito maior em músculos.

— Essa é a sua reação depois de eu conseguir trazer ele de volta? — perguntou Colth com uma sinceridade ácida.

Dilin se apressou para responder e encerrar o seu completo desconforto:

— Obrigada, Colth. Eu vou cumprir com minha promessa.

Mon perdeu o sorriso e ficou sério de uma forma desconfortável.

— Esquece isso por enquanto, agora é melhor cuidar dessas criaturas, não acha? — perguntou Colth com sua adaga de Sathsai em mãos, esperando pela chegada dos morcegos que alcançavam o interior do castelo pelo buraco na parede.

Mon sacudiu a cabeça para se desapegar de seus pensamentos. Avançou em direção as criaturas e parou em frente aos dois aliados de forma a protegê-los:

— Deixem comigo.

— Não, Mon. São muitos — discutiu Dilin.

O rapaz grande se virou com a determinação em seus olhos:

— Deixa comigo. Vocês dois tem que parar a queda da ilha, tá legal?

— Espera...

— Vão! Muitas pessoas vão morrer, se a ilha cair! Eles dependem de você, Dilin!

— Mas...

Ela foi abruptamente interrompida pelas palavras sérias do seu velho conhecido:

— Dilin, não cometa o mesmo erro — Mon encarou ela e enfatizou: — Você ainda é a guardiã de Nox.

Dilin engoliu seco tudo o que tinha a dizer, todos os seus sentimentos e todas as suas aspirações.

— Agora, vai! — determinou ele.

No momento em que Mon terminou as suas ordens como uma bronca sobre uma irmã menor, a primeira criatura alada avançou com as garras em ataque ao grandalhão.

Mon rapidamente desviou-se do golpe de forma simples e eficiente e socou o focinho da criatura com uma força absurda. O morcego gigante caiu para trás com as asas abertas de modo que seu corpo ficou estirado ao tapete do corredor.

— Vão! — repetiu Mon com seu corpo se enchendo de adrenalina.

Ele avançou para enfrentar as várias criaturas que continuavam adentrando pelo buraco do corredor como mariposas em busca de luz.

Dilin foi convencida, mesmo que não gostasse da ideia de se separar de Mon após finalmente tê-lo reencontrado são. Sabia que era o certo a se fazer. Acenou positivamente com a cabeça para Colth, e os dois retornaram pelo corredor em direção ao pátio e a sala central do selo.

— O que pretende fazer? — perguntou Colth acompanhando-a.

— Eu vou consertar o selo — respondeu determinada.

Quando deixaram o corredor para trás, e adentraram pelo pátio com os soldados inconscientes pelo chão, se surpreenderam ao se depararem com mais criaturas aladas semelhantes a morcegos enormes.

Dilin arregalou os olhos, não só pela surpresa de encontrar aqueles monstros também ali, mas por que um deles tinha um corpo humano em suas garras.

A criatura se alimentava de um dos servos de Dilin com as presas cravadas no pescoço da vítima ensanguentada que já não possuía mais vida.

— Droga... — sussurrou Colth.

Dilin estreitou os olhos com uma raiva plena que poucos já haviam visto.

Além da criatura que se alimentava do cadáver fresco, mais dois morcegos monstruosos se preparavam para uma farta refeição.

— Não vou deixar que toquem em mais ninguém! — vociferou Dilin, odiando os seres bizarros e ganhando ainda mais intensidade nos olhos.

Colth observou a porta dupla da tal sala do selo, atrás dos inimigos alados mortais. Imaginou que se conseguissem passar por eles, poderia dar a oportunidade de Dilin refazer o selo e impedir que a ilha viesse a desabar por completa.

No momento em que Colth se decidiu sobre o próximo passo a tomar, Dilin simplesmente avançou com uma velocidade, força e poder semelhantes ao que o rapaz havia presenciado no confronto divino entre as deusas Tera e Lux.

O piso onde Dilin estava afundou com o impulso que ela tomou para sua corrida. A guardiã atravessou o pátio principal do castelo em questão de poucos segundos enquanto mirava a palma da mão para a criatura do meio.

O ser bizarro foi atraído em direção a Dilin enquanto ela continuava a se mover rápida. A garota praticamente não tocava o piso de mármore enquanto corria, e avançava como uma flecha. Já o seu alvo, a criatura, parecia estar caindo em direção horizontal enquanto se debatia pela estranheza de uma força gravitacional nada natural lhe puxando.

O focinho da criatura de dentes afiados e orelhas pontudas foi de encontro a palma da mão direita de Dilin. Se choraram violentamente. Ambos se encontraram rápido em meio ao pátio e ocasionaram algo como uma explosão.

A garota saiu intacta. Continuou avançando, deixando para trás um rastro de carne e sangue que tingiam boa parte do ambiente de vermelho intenso.

Dilin continuou seu movimento enquanto o corpo da criatura, agora sem cabeça, se estirava ao chão. O morcego fora atingido pelo puro poder e ódio de uma guardiã.

—... — se impressionou Colth.

A mulher cheia de determinação continuou. Ela alcançou as outras duas criaturas e parou ofegante diante delas. Mesmo que seu poder pudesse ser confundido com o de um deus, ainda sim, havia um limite que seu corpo poderia aguentar.

Colth não hesitou em auxiliá-la assim que percebeu a fadiga da guardiã. Correu em direção a ela e se preparou com a adaga em mãos.

Dilin, mesmo que visivelmente em seu limite, esperou pelas criaturas que logo vieram em ofensiva. A primeira atacou com as garras rasantes em direção ao pescoço da garota. A guardiã foi rápida para aparar o ataque com mais um impulso gravitacional em direção ao agressor. Foi como o sopro de um furacão que acertou a criatura e lhe desequilibrou para trás, impedindo-a que concluísse o ataque.

O segundo morcego já estava perto, também em ofensiva com suas asas ganhando terreno em direção a guardiã ofegante. Ela mostrava as suas presas pontiagudas dentro de suas mandíbulas desuniformes e grotescas.

Dilin tentou afasta-la da mesma forma que a anterior, mas assim que mostrou a palma de sua mão para o inimigo, nada aconteceu. Sua magia já havia sofrido demais diante de tantas batalhas consecutivas.

A criatura não parou, estava prestes a cravar seus dentes no pescoço da mulher sem opções. A guardiã não teria tempo para recuar ou desviar. Tendo isso em mente, ela se protegeu com o braço esquerdo para manter os dentes da criatura longe de qualquer parte vital de seu corpo.

A monstruosidade cravou os dentes na manga destacável do vestido de Dilin. Seu antebraço ardeu pressionado pelas presas violentas.

— Agh! — A guardiã resistiu a dor enquanto observava o sangue escorrer pelo tecido branco de suas roupas.

Como se não fosse o bastante, a primeira criatura que ela havia desequilibrado já havia retornado seus sentidos e estava pronta para mais uma ofensiva. Dilin pressentiu o pior e resumiu sua situação em apenas um sussurro receoso:

— Merda...

— Ahh!!! — Colth interrompeu tudo.

O rapaz finalmente alcançou o outro lado do pátio e, com sua lâmina de Sathsai, acertou o dorso da criatura que tinha cravado os seus dentes em Dilin.

A coisa sangrou e rugiu em dor ao mesmo tempo que revogou sua mordida dilacerante sobre a guardiã. Deu um passo para trás berrando em sofrimento enquanto seu sangue espeço e escuro escorria ao chão.

Colth não parou por aí, viu a outra criatura avançar com tudo para cima de Dilin, que ainda se recuperava da mordida. O guardião de Anima usou-se da magia de Mutha. Conjurou o escudo de Agnes e separou Dilin de seu opressor.

A criatura bateu as garras no escudo translúcido de forma a arranhar o ar, mas não acertou a guardiã de Nox. Reclamou com um rugido bizarro que fazia os ouvidos de qualquer um odiá-la.

— Dilin, o selo! — Colth resumiu o senso de urgência em poucas palavras. Mirou a garota ainda surpresa com a sua presença.

Colth retirou sua adaga fincada no estômago da criatura em dor, e girou seu corpo trocando o alvo, acertou a outra criatura com cortes horizontais rápidos em suas asas, obrigando-a se afastar da guardiã de Nox.

— Agora! — apressou Colth. — Você precisa parar a queda da ilha!

A mulher surpreendida demorou para entender e concordar com os dizeres dele, mas quando o fez, recolheu suas dores e partiu rápido em direção a porta da sala do selo.

Umas das criaturas tentou mais um ataque sobre Dilin, mas Colth estabeleceu novamente o escudo de Agnes para protege-la e permitir o livre avanço da guardiã.

A criatura, sem poder perseguir o seu alvo primário, se virou contra Colth e avançou raivosa. O rapaz teria de lidar com dois inimigos grotescos de uma só vez.

Enquanto isso, Dilin alcançou a porta e a empurrou de modo que entulho caísse e poeira levantasse. A porta se abriu com alguma dificuldade e a guardiã conseguiu colocar os olhos no selo do centro da sala em ruínas:

— Ah, não... — lamentou em um suspiro preocupado.

Seu sangue pareceu congelar, e um arrepio percorreu toda a sua espinha enquanto seus olhos refletiam os fragmentos do cristal opaco em pedaços.

Aquele era o selo.

— Nesse estado... — ela sussurrou com preocupação.

Dilin teve a convicção quando analisou mais de perto o que havia sobrado do cristal. Àquela magia, que uma vez fora invocada pela deusa Nox e mantinha a ilha no céu, havia se perdido por completo, para sempre.

— Nesse estado... não tem conserto.



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