Volume 2

Capítulo 85: Olhos Nublados

— Droga! São muitos! — gritou Mon.

O grande musculoso adentrava ao corredor em corrida e se estabelecia no pátio interno do castelo voador. Suas palavras encontraram Colth. O rapaz aliado lutava contra uma das criaturas que ainda tentava adentrar a sala do selo.

A criatura ofensiva estava de pé frente à Colth, ele se protegia dos golpes contundentes tentando evitar que a criatura alcançasse a porta no centro do pátio.

Mon correu em auxílio ao guardião de Anima, não hesitou. Surpreendeu a criatura de costas e a socou na nuca. Um único golpe, forte e certeiro. O morcego bizarro que estava mirando Colth, nem viu o que lhe acertou, cambaleou tremendo as pernas e chegou a dobrar um dos joelhos após o impacto em seu crânio.

Colth não lhe deu uma segunda chance. Aproveitando o momento de fraqueza do inimigo, o guardião de Anima ajeitou sua adaga em mãos e, com único movimento, cravou a sua lâmina de uma só vez no pescoço da criatura.

A coisa chegou a grunhir, mas não durou mais do que um segundo. Quando Colth puxou a lâmina de volta e evidenciou o ferimento na pele acinzentada da criatura, o sangue quente escorreu e logo em seguida o corpo, já sem vida, caiu ao chão.

Finalmente Colth pôde dar uma boa olhada naquela coisa. Estirado no piso de mármore do pátio, o corpo da criatura sinistra desafiava qualquer lógica ou expectativa. Com a altura de um ser humano adulto, suas feições eram uma ânsia para qualquer observador. Seu corpo era uma grotesca fusão entre a forma humana e um morcego.

A pele era pálida e esticada, como a de um roedor, estendendo-se em membranas finas entre seus membros com alguns fios de cabelos solitários, conferindo-lhe uma aparência bizarra, inclusive em suas asas. Seus dedos terminavam em garras afiadas, prontas para dilacerar qualquer presa em seu caminho. E suas orelhas alongadas e pontiagudas, coroavam sua cabeça e sua deformidade.

— Que coisa mais feia — resumiu Mon observando o corpo morto.

Colth concordou acenando com a cabeça, ergueu-a para encontrar o aliado salvador. O agradeceu em meio a respiração ainda ofegante após a agitação:

— Valeu.

— Onde está a Dilin? — perguntou o grandalhão preocupado.

— Lá dentro — Colth apontou para a porta da sala do selo as suas costas.

Antes que Mon viesse a responder, algo chamou a atenção deles para a entrada do corredor externo.

Mais criaturas aladas que caminhavam em direção a eles após adentrarem ao pátio. Suas faces mostravam uma sede por sangue e violência. Em grupo, pareciam agir como bando.

— Essa galera, de novo? — disse provocativo Mon.

— Achei que você tivesse dado conta deles — refletiu Colth sincero.

— Você espera muito de mim, não é? Esses são os mesmo de antes. Eu só os atrasei.

Do outro lado do pátio, a presença de mais criaturas chamou a atenção da dupla ao centro.

— Tem mais desse lado — evidenciou Colth, apontando para mais quatro morcegos vindos do lado contrário ao do corredor.

— É, eu já vi. Só se concentre em manter a porta segura.

Os dois caminharam de costas em direção a porta da sala do selo, sem tirar os olhos das criaturas que somavam mais de uma dúzia e avançavam a passos lentos para os encurralar.

Colth bateu as costas na superfície da porta que estava guardando. Não havia mais para onde recuarem.

— São muitos — sussurrou o rapaz cercado pelas criaturas.

Não importava para onde ele olhasse, havia um focinho bizarro e um par de orelhas pontudas em busca de satisfazer um desejo sanguinário.

— Eu não me imaginava morrendo para coisas tão feias — disse Mon sem saída ao seu lado.

— E isso importa? — Colth rebateu odiando o comentário inoportuno. Estavam prestes a serem trucidados, não havia para onde correr, e ainda tinha que ouvir coisas desse tipo.

— É claro que... Ah! — Mon se interrompeu. Repentinamente sentiu uma dor insuportável tomar seu ser.

Quando se deu conta, não estava em lugar algum, apenas o vazio absoluto o cercava.

— Maninho — A voz familiar chamou por ele.

— Dilin? Esse lugar? — se perguntou Mon tentando entender. Demorou um segundo, ao compreender a situação, se estarreceu e clamou em desespero: — Não, não, não!

— Me escute, irmão — disse a garota. Se tornou presente frente ao rapaz em meio ao vazio onde estavam.

— Não, não, não. Isso não, Dilin!

— É o único jeito.

— Eu já disse, não.

— Sabe que eu odeio essa coisa sentimental — disse ela apressando-o. — Vamos pular tudo isso, tá legal?

— Não é justo.

— É claro que não é. Mas não importa o que você acha justo. Não há nada que você possa fazer.

O rapaz sentiu a crueldade benevolente no tom cómico dela. Aquelas palavras se viravam contra ele dessa vez. Mudou o rumo da conversa cedendo:

— O que aconteceu?

— Não há como consertar o selo da deusa Nox. Ele está completamente arruinado. O único jeito é refazê-lo. Só assim a magia de Nox se manterá presente. Mas para isso, é necessária muita energia.

— Você não está pensando em...

— O meu corpo vai servir como essa energia.

— Não, não, não — Mon repetia incessantemente, desacreditando que aquilo estava acontecendo. — Então use o meu corpo.

— Até parece — sorriu Dilin, como se tivesse escutado uma piada sem graça. — Assim que meu corpo deixar de existir, a magia da guarda de Nox retornará a você, um guardião ainda vivo. Você sabe exatamente o que fazer.

— Não, não, não...

Dilin não recuou. Compartilhava todos os sentimentos de Mon, sabia exatamente como ele se sentia, e odiava ter que fazê-lo passar por isso. Prosseguiu:

— Eu devo isso a você, irmão. Naquele dia, no dia em que me tornei guardiã. Eu voei direto para onda você estava. Direto para o maldito selo que aprisionou você. Mas quando cheguei, o selo estava quebrado, e a sua alma corrompida por isso.

                                               ***

A guardiã de Nox pousou sobre a grama da última colina antes do precipício final de seu mundo que estava prestes a ser extinto. Ela vasculhou, olhou para todos os lados procurando pelo rapaz que havia deixado para trás, mas não o avistava em lugar algum.

Tinha certeza de que aquele local era o correto. A grama baixa provocada pelo selo estava ali, a colina era aquela. Mesmo assim, não avistou o homem grande que estava à procura.

Em meio a sua busca, viu uma mancha de sangue no chão refletir a luz vinda da rachadura no céu negro. Ela congelou com seus sentimentos mais desesperançoso.

Não havia sangue ali antes. Não havia motivos para haver sangue agora, foi o que imaginou, evitando pensar no pior. Fez questão de deixar esses sentimentos de lado, e investigou o sangue. A mancha a conduziu para uma trilha de sangue que apontava para o alto da pequena colina.

“Isso é muito sangue. Por favor, Mon, esteja bem”. Clamou em sua mente enquanto ascendia pela encosta em direção a um grande aglomerado de pedras no cume dela.

Enquanto a luz proveniente da rachadura no céu iluminava o seu caminho, e a grama arranhava o calcanhar de suas pequenas botas, Dilin continuou avançando pela baixa colina verdejante e, quando deu a volta nas pedras grandes desprendidas ao topo dela, se surpreendeu. Estacou-se em profundo choque.

Sentado sobre a grama, com as costas escorada as pedras, um velho conhecido agonizou perdendo sangue. Já estava morto.

— Senhor Telmo... — sussurrou a garota soturna antes de se focar na fera que evidentemente provocou tudo aquilo.

À sua frente, um homem colossal e musculoso desferia golpes furiosos contra o solo, como se uma besta selvagem descarregasse toda sua ira sobre o chão da colina.

Dilin o reconheceu, mas custou a acreditar. Com cautela, ela se aproximou, atônita diante da cena que mais parecia saída de um pesadelo. Sussurrou descrente:

— Mon, é você?

A roupa do rapaz musculoso estava rasgada e manchada de sangue, testemunha do frenesi que o consumira. Gotas escarlates pingavam de suas mãos enormes enquanto ele continuava a socar o solo com violência incontrolável. Era como se cada golpe fosse uma tentativa desesperada de esquecer o que acabara de acontecer.

— Mon?! — O homem, ou o animal selvagem, gritou nervoso e se virou para a garota mostrando os seus olhos cheios de ódio.

Dilin, observando aquela figura desfigurada que outrora fora alguém tão conhecido, sentiu-se engolida por uma mistura avassaladora de emoções. O horror da transformação de Mon colidia com a tristeza pela perda do tutor.

Os olhos da garota imediatamente se encheram de lágrimas sentindo a esperança se esvair por completa. Ela se lembrou de imediato das palavras de Lashir alertando-a sobre o selo, mas nunca imaginou que de fato pudesse acontecer.

De alguma forma, o selo de Rubrum havia se rompido e, o resultado era aquele, a corrupção de Mon. O selo que Dilin utilizou para aprisioná-lo, foi o selo que trouxe a sua ruína.

“O que foi que eu fiz?” Pensou a garota sem qualquer outra reação além da desolação. Sentiu a culpa pesar em seus ombros e a dor percorrer o seu coração.

— O que foi que eu fiz? — sussurrou Dilin, mas o homem selvagem diante dela parecia não a reconhecer. Ele avançou furioso, pronto para atacar com suas mãos enormes manchadas de sangue.

Avançou feroz em direção a ela, prestes a atingi-la com um único golpe mortal utilizando. Mon estava completamente fora de si.

Dilin, resignada ao destino, baixou a cabeça observando os seus próprios pés, como se aceitasse a sua punição após tanta dor que provocou. Arrependida de tudo, apenas sussurrou suas últimas palavras:

— Me desculpe, Mon. Me desculpe por ser uma irmã tão horrível. — A garota sentiu ser sombreada pelo grande corpo do homem. Fechou os olhos esperando o ceifar de sua vida. — Me desculpe irmão.

O silêncio se fez por segundos antes de Dilin tomar coragem para abrir os olhos novamente. Esperava o impacto do golpe iminente. No entanto, nada aconteceu. O silêncio continuou no ar tenso, e Dilin, aos poucos, ergueu o olhar.

O homem selvagem, ao invés de atacar, estava parado, seus olhos agora exibindo uma expressão desconcertada. Lágrimas brotaram dos olhos selvagens, misturando-se com a sujeira e o sangue que marcavam seu rosto. Ele murmurou com dificuldade:

— Ir-Irmão.

O vento soprou vindo do precipício. Dilin deixou suas lágrimas escorrer em ressonância as deles. Mon voltou a tentar dizer o que sentia, lutou por isso. Mesmo que em tom animalesco e com a dificuldade que a corrupção de Rubrum lhe trazia, ele pronunciou:

— Você, me chamar de Irmão.

— Sim — concordou a garota entre lágrimas com um sorriso cheio de esperança. — Sim, você é meu irmão. O melhor irmão que eu poderia desejar.

— Me chamar de irmão.

— Sim, Mon. Você é o meu maninho.

— Irmã. Irmã. Irmã.

Ao testemunhar a luta interna de seu irmão, contra a corrupção animalesca que o corrompia, Dilin sentiu uma mistura complexa de amor, pesar e esperança, tudo entrelaçado no trágico cenário diante dela. Ela abriu um sorriso, radiante, cheia de agradecimento.

Mon ainda residia dentro daquele corpo. Ele ainda resistia, mesmo que corrompido. Naquele momento, Dilin, jurou para si mesma que o traria de volta.

                                               ***

— “Irmão.” Naquele dia eu entendi o peso dessa palavra — disse Dilin em meio a dimensão do vazio, diante de Mon. — Eu me negava a chama-lo de irmão. Dizia para mim mesma que era para o seu próprio bem, para o proteger da dor de uma despedida inevitável. Mas a verdade é que eu estava tentando me proteger.

Mon permaneceu em silêncio, em meio aquele vazio que não possuía dimensão alguma. Percebeu que aqueles dizeres vinham dos sentimentos mais profundos de Dilin. Ela se manteve serena enquanto seus olhos se enchiam de emoções diversas. Continuou:

— Eu fui egoísta e acabei por te aprisionar naquele selo, achava que só assim poderia te proteger. Mas a sua determinação foi maior do que a minha. Para tentar ajudar a todos, você quebrou o selo, mas acabou absorvendo toda a corrupção proveniente dele. E como uma ironia daquele mundo, eu fui a culpada de tudo isso. Eu fui a culpada de tê-lo tornado uma besta sanguinária, de você ter assassinado o senhor Telmo.

— Não é culpa sua...

Mon tentou reduzir a dor da irmã, mas foi prontamente interrompido pela verdade dela:

— É sim. É culpa minha. E você sabe disso — Dilin suspirou fundo. Sua presença no vazio enfraquecia a cada segundo. Era como se deixasse de existir aos poucos. — Depois de tanto sofrimento que causei, eu vou continuar sendo egoísta. Eu vou usar o meu corpo para consertar o selo. Devolverei a magia do guardião de Nox a você, meu irmão.

— Não faça isso! Vamos achar um outro jeito...

— Já está feito. É por isso que estou aqui — respondeu ela convicta enquanto sua presença era ainda mais fraca. — E você também já sabe disso.

— ... — O homem musculoso encolheu os ombros e apenas baixou a cabeça em lamento.

Como a mulher havia dito, Mon sabia que a afirmação dela era verdadeira. A presença deles naquele lapso temporal dentro daquela dimensão vazia, proveniente da magia de Nox, era a prova disso.

— Escuta, Mon. — Dilin desviou o rosto de modo acanhado, talvez com um pouco de vergonha sobre o que estava prestes de perguntar: — Aquilo que você falou no precipício, quando fingi que me atiraria para o abismo, apenas para te enganar e te prender naquele selo. Aquilo não era mesmo verdade, é? Você não vai me odiar depois disso, não é?

O homem levantou o rosto, uma única lágrima escorreu dos seus olhos gentis. Ele deu um passo à frente e, em um impulso, envolveu a pequena mulher em seus braços. A abraçou com o carinho e ternura que só ele poderia demonstrar.

— Não. É claro que não. Eu jamais te odiaria — despencou em choro.

Dilin sorriu envolvida pelo calor do amável homem. Desejou que aquele momento durasse para sempre. Desejou que pudesse passar a eternidade nas colinas acidentadas do pequeno mundo de Nox que nem mais existia. Desejou observar aquele céu monótono sem luz mais uma vez. Desejou refazer todos os seus passos desde que conheceu Mon. Mas nenhum desses desejos eram comparáveis ao que estava prestes a revelar:

— Mon, posso te pedir uma última coisa?

— Sim, claro.

 — Mon, — sussurrou ela em meio aos braços dele —, desde a sua volta, você está me chamando pelo nome. Eu sei que fui eu que pedi isso. Mas você poderia me chamar mais uma vez, como fazia antes?

— Te chamar como antes?

— Se não quiser, eu vou entender. Eu acho que não mereço isso mesmo e...

— Não é isso. Eu só fiquei feliz por isso. Mas é claro que eu posso te chamar. Na verdade, eu farei mais que isso. — Ele respirou fundo para ganhar fôlego em meio as suas emoções. — Irmã, eu te amo.

— Huh. — Dilin foi surpreendida pelas palavras que acompanharam aquela que havia pedido. Seus sentimentos explodiram de uma só vez, seu coração acelerou como nunca antes e um nó na sua garganta surgiu em conjunto com seu choro de despedida.

— Eu te amo, irmã. — repetiu o rapaz abraçando-a mais forte. — Minha irmã!

Dilin sorriu, mais que agradecida, relaxou sua cabeça nos braços dele sem se apegar a mais nada.

— Obrigada...

— Irmã! Minha irmã!

— Obrigada, maninho.

— Irmã! Irmã! Irmã!

O vazio deixou de existir, acompanhado por um último sussurro dela:

— Eu também te amo.



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