Volume 2

Capítulo 86: Além da Redenção

Mon abriu os olhos e se viu frente as diversas criaturas aladas de faces horrendas e orelhas pontudas. Ao seu lado, Colth permanecia esperando pelo combate que poderia ser o seu fim.

Novamente guardião, Montague sentiu a magia fluir pelo seu corpo. Ele se concentrou por um único momento, em seguida, já sabia todos os seus próximos movimentos.

Apontou a palma das mãos para os inimigos que o cercavam e utilizou-se da magia de Nox. Uma onda de choque partiu de suas mãos e atingiu as criaturas como um sopro violento de uma explosão.

— O que foi isso? — Colth se surpreendeu.

O guardião de Nox se concentrou mais uma vez e, sem hesitar, avançou em direção aos inimigos animalescos. Em ofensiva, fechou os punhos e socou o focinho do primeiro morcego mais próximo.

A criatura, atingida pelo golpe de força física embebida pela magia poderosa de Nox, foi arremessada em direção aos seus semelhantes às suas costas. Atingiu violentamente o chão com o rosto completamente desconfigurado devido o soco certeiro.

— Caramba... — Colth mais uma vez se surpreendeu.

O rapaz com a adaga de Sathsai sentiu uma força ascendente na sola dos seus pés. A queda da ilha parecia estar desacelerando.

— A Dilin conseguiu? — se perguntou ele.

Ajeitou sua adaga de Sathsai em mãos e partiu em direção às criaturas horrendas com uma ofensiva pretenciosa.

— Ahh!

As criaturas estavam completamente focadas em Mon, foi a oportunidade perfeita para o guardião de Anima. Colth cravou a adaga nas costas de um dos morcegos, estocando a lâmina e então a torcendo. Em seguida, retirou a adaga do corpo da criatura, que soltou um grunhido agudo de dor antes da morte.

Agora, totalmente ciente da presença de Colth, algumas das criaturas se voltaram para ele, afastando-se momentaneamente de Mon. Colth manteve a ofensiva, executando movimentos ágeis e precisos. Sua adaga cortava o ar, encontrando os pontos vitais nas criaturas que ousavam desafiá-lo.

Mon, percebendo a situação, acelerou ainda mais sua investida. A magia envolvia as suas mãos como chamas enquanto ele golpeava as criaturas com uma força impressionante. Cada golpe parecia um raio destruidor de puro poder que aniquilava cada morcego humanoide grotesco, um de cada vez, soco após soco.

Colth, embora enfrentasse um número menor de oponentes, também mostrava suas habilidades. Sua agilidade e destreza eram as suas armas juntamente com o seu punhal. A adaga de Sathsai brilhava, deixando um rastro de luz à medida que cortava o ar em meio aos golpes.

A batalha prosseguiu como uma sinfonia caótica de magia, aço e gritos de agonia. Um a um, os inimigos monstruosos eram derrubados ao chão. Era um massacre.

E quando sobrou apenas um inimigo de pé, o último dos morcegos bizarros. Mon encheu o punho com toda a sua magia, com todo o seu sentimento amargo. Carregou o braço até o focinho da criatura frágil e avançou sem misericórdia.

A cabeça do morcego simplesmente desapareceu após ser acertado em cheio pelo puro poder de Nox. O corpo da criatura despencou ao chão, junto com tantos outros.

A queda da ilha, que vinha desacelerando, finalmente parou.

Colth sentiu um alivio imediato. Estava prestes a abrir um sorriso de dever cumprido, mas se segurou ao perceber Mon estático, de costas para ele, após o soco na finda criatura. Colth se preocupou:

— Mon, você está...

— Está acabado — disse o grandalhão se virando. Seus olhos não possuíam mais brilho e sua expressão era neutra, como se nada mais lhe afetasse. — Dilin, ela se foi...

                                               ***

— Você acordou.

Foi a primeira coisa que Garta ouviu ao abrir o seu olho saudável com alguma dificuldade devido à luz do sol acertando o seu rosto diretamente. O céu estava nublado e o vento frio naquela manhã, mesmo assim o sol encontrava uma brecha entre as nuvens.

Garta sentiu o movimento sobre a superfície onde estava deitada, percebeu logo que se tratava de uma carroça, ou algo parecido, que a carregava. Ao seu lado, Goro a acompanhava caminhando sem tirar os olhos da guardiã.

— Onde eu estou? — Garta perguntou com a face de dor e o colar de Sathsai em seu pescoço lhe incomodando.

Ela apenas conseguia ver o caminho que a carroça deixava para trás além da face esnobe do rapaz. O lugar não parecia nada familiar, e ela logo percebeu que suas costas estavam bem perto do solo, talvez a plataforma onde estava, fosse uma carroça pequena, ou então uma carriola grande. Seja lá o que fosse, estava sendo rebocada bem suavemente.

A guardiã de Finn tentou se movimentar para observar o arredor ao se sentar, mas antes disso, seu corpo clamou em dor. Ela desistiu momentaneamente e voltou a repousar a cabeça em alguma coisa desconfortavelmente macia, um casaco.

— Não se levante. Você teve um corte na barriga. Não é muito sério, mas é melhor continuar em repouso por enquanto — alertou Goro. Ele estufou o peito enquanto caminhava ao lado dela e cantarolou: — Não se preocupe, eu estou aqui para te proteger e...

— Onde está a Iara? — Garta interrompeu o presunçoso.

— Poxa, você deveria perguntar se eu estou bem primeiro — disse Goro em tom contrariado.

Garta levantou uma de suas sobrancelhas e amedrontou o rapaz apenas com a sua face sisuda e carregada. Goro desgostou de ser acertado por aquela expressão, ele então desviou o olhar para além da carroça, para o horizonte distante, e resumiu a situação em apenas dois sussurros:

— Iara... Pobre garota fofinha. Ela era tão jovem.

Garta arregalou o olho e esqueceu todas as suas dores físicas para se concentrar apenas na ardência de seu coração:

— O que foi que aconteceu?! — ela perguntou com certo desespero e se sentou na superfície da carroça em movimento.

— Droga! Eu falei para você ficar deitada! — Goro vociferou uma bela bronca sobre ela. — O seu curativo voltou a sangrar, sua ingrata. Está feliz agora?

Garta não deu ouvidos a ele, baixou a cabeça e lamentou:

— Ah. Eu não acredito que isso realmente aconteceu. É culpa minha! — gritou raivosa antes de sussurrar seus sentimentos mais profundos: — A Iara, ela...

— Que gritaria é essa aí? — perguntou uma voz vinda da frente da carroça. — Vão assustar os Sirveres.

A garota da saia rosa, com seu arco nas costas, e flechas na aljava pendurada à cintura, apareceu no campo de visão de Garta, do lado contrário onde Goro estava.

— Iara! — Garta se espantou em felicidade. Se virou logo em seguida para Goro com o olhar de ódio: — Seu babaca! Por que disse aquilo?

— Eu só queria ver a sua cara preocupada, mas até isso você estragou. Agora o seu ferimento está aberto de novo — respondeu irritado.

Garta manteve o seu olhar de ódio no rapaz enquanto perguntou para a garota:

— Iara, você trouxe a espada de Finn?

— Sim. Está bem ao seu lado. Mas continua sem corte.

— Sem corte... eu tinha me esquecido desse detalhe. Os babacas são sempre os mais sortudos, não?

Goro se sentiu desconfortável sendo alvo da ira dela. Indagou perplexo:

— Você estava pensando mesmo em usar a espada contra mim? — O silêncio entre eles, com apenas o barulho das pequenas rodas de madeira da carroça arranhando a terra nua se destacando, respondeu por si só. Goro disfarçou: — É melhor eu ir guiar os cachorros pulguentos da fofinha. Para nos levarem na direção certa.

O rapaz caminhou para frente da carroça com o objetivo de fazer o que havia dito e, principalmente, se afastar da fúria da guardiã.

— Eu já falei para parar de me chamar assim — reclamou Iara.

— Claro, fofinha, claro... — consentiu Goro sem dar importância e avançou para frente da pequena carroça.

Os três Sirveres, em fila, envoltos por uma corda conectada a carroça por um belo nó, puxavam-na com empenho em direção as terras campais mais baixas.

— Que idiota... — sussurrou Garta recolhendo sua raiva sobre o rapaz.

Ela colocou a mão direita sobre a sua própria barriga e a viu ser manchada levemente por sangue.

— Espera, deixa eu te ajudar com isso — disse Iara oferecendo seu auxílio à guardiã. — Vou trocar a bandagem. Deite-se novamente.

Garta assentiu e obedeceu. Iara começou os procedimentos com rapidez e comentou com um tom bem-humorado:

— Ficou triste achando que eu tinha morrido?

— É... — respondeu acanhada. — Um pouco.

— Só um pouquinho, entendi.

— Sem você, eu ficaria sozinho com aquele babaca do Goro. E você falou que me ajudaria a chegar em Tekai, lembra?

— Não se preocupe. Estamos indo para Tekai nesse exato momento. Vamos conseguir a chave para esse seu colar.

— Que bom. Acho que se eu tiver a minha magia de volta, poderei usar a espada.

A garota de rosa continuava a arrumar o curativo da guardiã enquanto acompanhava a pequena carroça devagar com seus passos. Comentou de forma descontraída:

— Ele ficou bem preocupado.

— Hã?

— O Goro. Foi ele quem te segurou para evitar sua queda lá na cratera — resumiu Iara enquanto mantinha-se focada nos curativos.

— Foi ele mesmo quem provocou tudo aquilo, não fez mais do que obrigação.

— Bom, estamos todos vivos, e com a espada. Além disso, foi ele quem insistiu em continuarmos em direção a Tekai. Disse que se tivéssemos desistido para voltar ao abrigo do Índigo na Capital, você nos odiaria para sempre.

— É, eu provavelmente odiaria saber que fui o motivo para a desistência do nosso plano.

— Bom, então o Goro estava certo. Ele é meio babaca, mas é uma boa pessoa.

— Meio babaca? Ele não te coagiu, ou te subornou, para dizer isso, não é?

— Não... — respondeu em dubiez.

— Não?

— Ele tentou, mas é claro que eu não aceitei.

— Aff. É bem a cara dele. Um babaca completo — complementou Garta.

Novamente o silêncio ganhou forma, mas dessa vez era possível escutar a voz de Goro distante, vinda da frente da carroça em um tom desastrado:

— Calminha aí, pulguento, eu só estava tentando fazer um carinho em você, não precisa me morder! Calma aí! Eu sou amigo! Calma!

Garta respirou fundo com a sombra de um sorriso tomando o seu rosto enquanto imaginava a cena vexatória que acontecia na dianteira da carroça improvisada. Ela assentiu, quase como se concordasse com as palavras de Iara:

— Tá bom. Então, noventa por cento babaca — concluiu com um sentimento mais leve.

Iara sorriu, em reflexo a guardiã ao finalizar o curativo.

— E você, logo estará cem por cento, então descansa um pouco. Devemos chegar ao anoitecer. Logo encontraremos a chave para tirar esse negócio do seu pescoço.

Garta acatou a orientação.

— Obrigada, Iara.

Novamente a garota respondeu com um sorriso gentil. A carroça improvisada rumava em meio aos campos, cada vez mais verdejante, em direção a Tekai. Para longe dos destroços da erma Capital.

A noite estava prestes a chegar quando o grupo visualizou os prédios da cidade destino. Do alto de uma pequena colina distante, era possível ver o lugar completamente estático. As construções pareciam abandonadas e as ruas se enchiam de grama que cresciam por entre as pedras lisas do calçamento.

A cidade, que um dia já foi incrivelmente movimentada e conhecida pelo seu comércio e estabelecimentos especializados em entretenimento, parecia agora um grande vazio.

Iara, que liderava as três criaturas Sirveres, demandou:

— Esperem um pouco. Os cães sentiram algo — concluiu se agachando ao lado dos lobos.

Goro acatou a solicitação e parou a caminhada. Abriu um sorriso orgulhoso observando os prédios no horizonte:

— Tekai! — exclamou com um ar nostálgico. — Como eu senti saudades desse lugar.

Garta estranhou a afirmação enquanto ao lado dele e, observando a cidade, disse:

— Não faz, tipo, uma semana que você esteve aqui? Nós pulamos todos esses anos, esqueceu?

— Ah, é. Tem razão.

Garta mirou seu olhar soberano sobre o rapaz e balançou a cabeça negativamente em reprovação.

Goro, ufano, levantou o nariz e rebateu incomodado:

— Não era para você estar descansando?

— Não. Eu já estou bem — respondeu Garta direta. Se voltou à Iara deixando o assunto morrer e indagou com um pouco de preocupação: — Algum problema?

— Eles não querem continuar — respondeu a garota enquanto acariciava o topo da cabeça peluda de uma das criaturas.

— Ótimo — atravessou Goro sarcástico —, as suas mascotes estão cansadas agora.

— Não. Não é isso — Iara se levantou preocupada e se reuniu com os outros dois. Pensativa: — Acho que... acho que tem alguma coisa lá.

Ela olhou para cidade com apreensão aparente em seu rosto.

— Alguma coisa? — Goro repetiu em tom de pergunta. Com a preocupação transferindo-se para ele.

Garta deu as costas aos dois e caminhou de volta até a pequena carroça enquanto eles observavam aflitos a cidade abandonada.

Da carroça, Garta recolheu a espada enferrujada e sem corte de Finn. Empunhou-a de modo que as costas da lâmina se ajeitassem sobre seu ombro direito. Voltou a seguir o caminho e resumiu:

— Não importa o que tenha lá. Não vai nos impedir de achar essa chave.

A guardiã passou pelos dois amigos preocupados e seguiu em direção à Tekai.

Os dois que ficaram para trás se olharam compartilhando uma admiração pela mulher carregando a espada.

Iara sussurrou estando certa de sua percepção: — Superior. Como eu havia dito.

Goro desviou os olhos. Orgulhoso demais para admitir que a pequena estava certa.

— Aí! — gritou Garta chamando a atenção deles mais à frente. Apressou-se: — O que estão esperando?

Foi o bastante para Iara e Goro darem um passo à frente, com a coragem necessária para se juntarem à guardiã em direção ao prédio do Ministério da Defesa da cidade de Tekai, sem saber o que poderia estar os aguardando.



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