Volume 2

Capítulo 87: Encontro na Penumbra

Garta avançou adentrando aos portões abandonados de Tekai. Ao seu lado, Goro e Iara a acompanhavam observando as construções abandonadas da larga avenida principal da cidade, enquanto o sol se escondia atrás das montanhas ao longe. 

— Para que lado fica o prédio da Defesa? — perguntou Garta, sem tirar a atenção dos arredores e as mãos da empunhadura da espada curva de Finn. 

— Final da avenida à direita. O prédio com um relógio grande na fachada, não tem como errar — respondeu Goro, também atento. 

Seus passos eram cautelosos sobre o calçamento velho, desgastado pelo tempo. Não escutavam nada além do vento que varria as folhas secas e batia nas janelas que ainda não haviam apodrecido das construções que se misturavam entre comércios e prédios residências à beira da avenida. 

À medida que avançavam, o silêncio tornava-se opressivo, cada passo ecoando entre as construções desabitadas. Até que finalmente algo se moveu sobre as sombras da sacada de um dos prédios residenciais. Iara imediatamente mirou seu arco com uma flecha pronta para o disparo e deixou a guardiã ao seu lado alertar: 

— Quem está aí?! — gritou Garta com intensidade. 

O trio parou atento ao centro da avenida. Do outro lado da rua, em meio a uma viela entre dois apertados prédios, mais uma sombra se movimentou. Goro deu um passo para trás e apontou seu revólver Sathsai em direção a ela. 

Em seguida, mais um movimento foi notado entre os prédios. Iara apontou seu arco aflita, sobre o ombro de Goro, na direção da sombra que se moveu rápida. Parecia haver ainda mais movimento que os rodeavam. Era óbvio que já estavam cercados por um grupo bem habilidoso em se esconderem. 

Garta não reduziu o tom, mesmo que confusa pelos movimentos rápidos nas sombras: 

— Mostrem-se, agora! Ou todos vocês estarão mortos em dois minutos. 

A resposta veio em um tom superior e cheio de ousadia: 

— Isso é uma ameaça? É para dar medo? Que patético! 

Garta teve a sensação de que já havia escutado aquela voz masculina pedante, e principalmente, aquele tom arrogante descontrolado. Quando se virou em direção ao final da avenida, de onde estava vindo as palavras audazes, teve a sua percepção confirmada. Sussurrou com um ódio ganhando sua boca: 

— Bernard. 

— Ah, você se lembra — pontuou ele. — Que bom que você veio, eu estava bem entediado.  

O homem estava no centro da avenida, seu cabelo loiro bagunçado tremulava ao vento do crepúsculo junto com o seu casaco longo vermelho que cobria suas roupas pretas com detalhes dourados. Continuou absoluto ao notar o rosto de Garta mais de perto: 

— Seu olho não melhorou, guardiã. 

Garta afiou o olhar e rebateu de imediato: 

— O seu braço também não parece muito bem. 

Bernard mordeu os lábios contrariado, enquanto o vento levantou parte do seu casaco para revelar que seu braço esquerdo não estava lá. O guardião de Calis havia perdido o seu membro há muito tempo, em uma batalha que Garta apenas ouviu falar das palavras de quem causou aquilo. 

Iara se fez ouvir mirando o seu arco e sua flecha em direção ao guardião: 

— Você mereceu, pelo que fez com o Índigo! 

Os olhos de Bernard mantiveram a sua superioridade mirando à garota, também notou Goro ao lado: 

— E quem são vocês? — Não esperou pela resposta. Acenou com a mão em direção as sombras dos prédios e prosseguiu: — Não importa. Matem os dois, e deixem a guardiã comigo. Será só eu e ela. 

Uma sombra se movimentou rapidamente em direção a Iara, de tal forma que, quando a garota notou, viu uma lâmina prateada se aproximar de seus olhos, não conseguiu reagir a tempo de mirar seu arco à ofensiva inimiga. Prestes a receber um golpe certeiro, foi protegida. 

Garta levantou a sua espada curva e impediu que a lâmina atacante encontrasse o rosto de Iara. Os metais se encontraram violentamente, gerando pequenas faíscas que brilharam no início da noite. A guardiã pôde finalmente observar do que se tratavam aqueles que estavam nas sombras. 

Um homem vestido completamente por um pano leve preto até a cabeça. Encapuzado e com o rosto enfaixado, apenas seus olhos eram visíveis em meio ao pano negro. Com uma adaga em mãos como arma, ele teve seu golpe impedido por Garta que, em seguida, o empurrou para longe. 

Iara agradeceu por ter a guardiã ao seu lado, aquele golpe poderia ter sido fatal, se não fosse por ela. Mas não pôde colocar isso em palavras, no momento seguinte, um estouro proveniente de um tiro ganhou a atenção de todos. 

Um dos homens de preto, sobre a sacada do prédio residencial, atirou com um rifle de pólvora em direção ao grupo. O tiro passou perto da cabeça de Goro, alertando. Em contrapartida, o rapaz rápido mirou o revólver e apertou o gatilho devolvendo a ofensiva.

O rastro de energia deixado pelo disparo da arma a Sathsai encontrou o telhado da cobertura do prédio sem acertar o alvo. Mesmo assim, Goro ganhou tempo o suficiente para que pudesse, junto de Garta e Iara, se movimentar rápido para fora da avenida, em direção à viela apertada do outro lado da rua. Em sincronia, não pensaram em outra coisa além do escape.

Goro adentrou á viela já procurando por uma rota de fuga, foi seguido de perto por Iara, mas quando Garta estava prestes a deixar a avenida para trás, um terceiro homem de preto encapuzado tomou sua frente e impediu que ela continuasse. 

O homem mostrou um par de adagas em suas mãos demonstrando que não a deixaria passar pela entrada da viela. Apontou com os olhos para o final da rua sem emitir qualquer ruído. 

Garta acompanhou os seus olhos e sem surpresa encontrou Bernard caminhando em sua direção em meio a avenida vazia. 

— Sou só eu e você, guardiã — disse o homem convencido. — Se quer salvar os seus amigos, vai ter que me derrotar. 

— Tsc. — Garta cravou seu olhar nele. 

Em seguida viu mais três homens, todos de preto encapuzados, adentrarem pela viela em perseguição à Iara e Goro. 

A guardiã não demorou para perceber que havia pelo menos oito desses homens habilidosos. Além disso, eles pareciam conhecer bem aquele ambiente e também contavam com um guardião ao seu lado. Ela estava evidentemente em desvantagem.

Não teria outra alternativa, senão de aceitar o pedido de Bernard.

Ela respirou fundo, contrariada de seus planos. Então segurou a sua espada sem corte com força e caminhou de volta ao centro da avenida.

— Isso. Assim é bem melhor. E muito mais interessante — comentou Bernard.

Ele se aproximou ainda mais e parou ao centro da avenida, a poucos metros de Garta. O céu já estava praticamente negro e o vento mais frio. Bernard manteve o tom agressivo e presunçoso: 

— Vamos guardiã. Os seus amigos não têm muito mais tempo. 

Garta cerrou os dentes odiando concordar com ele e, como se obedecesse ao arrogante, levantou sua espada.

— Direta ao ponto. Isso eu respeito — comentou Bernard. — Então, pode vir.

Garta não disse uma palavra, já tinha traçado os seus movimentos. Partiu em corrida com a espada levantada em ofensiva:

— Ahh!

Bernard quase sorriu com o canto da boca, e se preparou para o que viria. Com apenas um dos seus braços a disposição, ele esperou o momento certo e, quando Garta estava prestes a golpeá-lo, ele se adiantou mostrando a palma de sua mão direita, já com um indício de brilho mágico, em direção a ela.

A guardiã de Finn avançava rápida segurando a espada apontada para o céu, com ambas as mãos. Concentrada em seu golpe, ela respirou fundo quando estava prestes a encontrar com o inimigo, mas então, mudou a direção de sua corrida repentinamente.

Garta desviou do braço de Bernard apontado para ela e surpreendeu o oponente. Não tentou de fato golpeá-lo, apenas continuou sua corrida passando por Bernard que esperava para contra-atacá-la.

A guardiã se desfez de seu ataque e de sua postura ofensiva, priorizando a velocidade. Baixou a espada e passou por Bernard. Manteve a sua corrida pela avenida na direção do seu verdadeiro objetivo.

— Hã? — Bernard se surpreendeu ao ver a guardiã simplesmente passar. Enfureceu-se de imediato: — Que patético! Você é uma guardiã patética!

Garta seguiu sem dar ouvidos a ele. Sabia que seria uma luta muito difícil, afinal, ela ainda sentia dores no abdômen, também não podia utilizar de sua magia e, se não bastasse, sua única arma era uma espada completamente cega. Mas o principal motivo que a fez tomar aquela decisão, foi de ter visto um relógio na faixada de um dos prédios do quarteirão seguinte. Aquele era o lugar. O lugar que encontraria a chave para libertar a sua magia.

A mulher se aproximava veloz do prédio abandonado com o relógio estático há muito. Parecia realmente que o tempo havia parado, mesmo machucada, Garta era incrivelmente rápida em sua corrida. Cortava o vento avançando com empenho, ansiosa para tirar a cólera de Sathsai que inibia sua magia de percorrer seu próprio corpo.

Olhou para trás rapidamente e viu Bernard ainda parado no mesmo lugar de antes ao centro da avenida. Voltou a focar-se no prédio a sua frente, já estava no mesmo quarteirão que o seu objetivo. Já se imaginava entrando no prédio do ministério da Defesa e encontrando as chaves que iriam libertá-la daquele colar.

Determinada, não se cansou, e finalmente chegou. Agora era só sair da avenida, atravessar a calçada e adentrar ao prédio, mas nesse exato momento, Garta pisou em falso. Não sentiu o chão sob a sola de sua bota, perdeu o equilíbrio, tentou restabelecê-lo, e quando conseguiu, o chão tremeu movendo-se. 

— Mas que m... 

A guardiã não teve tempo nem de expressar em palavras o seu aborrecimento e surpresa. Dobrou o tornozelo, seu corpo caiu violentamente ao chão e rolou fazendo-a sentir a dor dos arranhões e do impacto sobre cada pedra do calçamento irregular. Quando parou, imediatamente procurou entender o que havia acontecido e olhou para o caminho que havia percorrido. 

No exato lugar onde ela havia tropeçado, havia um buraco em meio ao calçamento da entrada do prédio que não estava lá até então. Analisou, e só conseguiu estranhar a espécie de rachadura que se desenhava nas pedras do calçamento da avenida, partindo do buraco recém-formado e seguindo o trajeto que ela percorrera até ali, culminando onde o guardião de Calis aguardava.

Bernard, agachado, com a palma da mão sobre a superfície do chão, exatamente de onde partia a rachadura.

— Magia de destruição — sussurrou Garta se lembrando das palavras de Índigo sobre aquele guardião e sua deusa Calis.

Bernard ergueu-se com um olhar raivoso enquanto seus cabelos bagunçados tremulavam ao vento mais forte. Fitou os olhos com todo o seu ódio e logo começou a caminhar apressado em direção à Garta, esbravejando:

— Você não vai me ignorar! De novo, não! Eu sou o guardião de Calis, porra! Não pode simplesmente passar por mim assim!

Sendo alvo de um olhar sanguíneo, Garta rapidamente tentou se levantar para retomar o seu caminho em direção ao prédio da Defesa, mas quando o fez, uma dor lancinante percorreu seu pé como brasas ardentes. Um grunhido escapou de seus lábios, e então percebeu que seu tornozelo estava torcido, talvez quebrado.

— Argh!

— Quem você acha que é?! Eu vou te mostrar! Vou mostrar o que é ser um guardião de verdade! — exclamou raivoso o homem se aproximando.

Garta arrastou o pé tentando rejeitar a dor e ficou completamente de pé com auxílio de sua espada curva. Utilizou a arma como apoio, cravando-a no chão para, mancando, começar a caminhar apressada em direção à entrada do prédio a poucos metros.

— Ah!

Cada passo era uma agonia, a dor reverberava por todo o seu corpo a cada vez que o pé ferido simplesmente tocava o chão.

Bernard já estava próximo o suficiente: 

— Não vai fugir de mim!

Avançou raivoso. Esticou o braço intenso em direção à Garta prestes a alcançá-la. A palma de sua mão brilhava intensa com a magia de destruição nas pontas dos dedos. Encaixou sua mão no pescoço da mulher frente à porta dupla do prédio da Defesa e se concentrou em sua aniquilação.

*** 

Colth estava imerso em seus pensamentos solitários. O rapaz estava sentado sobre uma pilha de destroços que um dia foi algum prédio da região oeste da capital de Albores. Sob a luz das lanternas que iluminavam o castelo voador parado próximo. Ele manuseava o pingente que Garta o havia dado, acariciando as inscrições prateadas do metal enquanto tentava imaginar se os outros estavam em uma situação melhor do que a dele naquele início de noite.

— Colth — chamou Mon, ao se aproximar. Não obteve resposta, então repetiu: — Colth. Aí.

— Hã? — Finalmente percebeu a presença do guardião de Nox que era acompanhado de uma mulher idosa ao seu lado. Tratou de guardar rapidamente o pingente em seu bolso e retornou à atenção: — Ah, desculpa. O que foi, Mon?

— Eu trouxe a senhora Lúcia. Como eu havia dito, ela acompanhou não só a deusa Nox, mas também a Dilin. Ela viu de perto os guardiões que você procura.

— Isso é bom — agradeceu Colth com um cumprimento gentil com a cabeça. — A senhora sabe algo sobre Bernard e Hui. 

A mulher suspirou após segurar a respiração ao ouvir aqueles nomes.

— Por favor, senhora Lúcia — insistiu Mon gentil —, pode nos dizer o que você sabe sobre? 

Lúcia olhou para os dois mais jovens como se estivesse prestes a tomar uma decisão. Pensou por alguns segundos enquanto observava a ilha flutuante a poucos metros do chão destruído de Albores. As luzes do castelo os iluminavam naquela noite serena após os acontecimentos tão estrondosos.

A mulher respirou fundo e concedeu chacoalhando a cabeça levemente:

— Bernard... Esse rapaz, ele não pode ser chamado de humano — olhou sério para os olhos de Colth: — Ele é um monstro. Um monstro que só sabe destruir e matar. Um assassino.

Colth engoliu seco, preocupado só de pensar em encontrá-lo. Tentou afastar o pensamento aflito e voltou a ouvir atento cada palavra daquela mulher. Qualquer coisa dita ali, poderia servi-lo de alguma forma.



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