Volume 2

Capítulo 97: Águas Calmas

— Isso é incrível! — exclamou Colth, retornando à oficina onde Beca se ocupava com seus afazeres e Hikki aguardava pensativo observando o céu escuro pela janela.

— O que foi, agora? — perguntou a engenheira, frente a sua bancada de serviços, descontente com interrupção de sua concentração.

— Eu apertei um botão, e a água do chuveiro ficou quente. Instantaneamente.

Nossa, que incrível. — caçoou Beca.

— É magia, não é? Fala a verdade.

— E a gente vai seguir o plano de alguém que nem sabe o básico de funcionamento de uma pedra de Sathsai.

— Dá um tempo para ele, Beca — interviu Hikki, se desprendendo da janela para se juntar aos outros dois ao centro da oficina.

— Ah, então tem pedra de Sathsai envolvida.

— Aff — Beca apertou os olhos balançando a cabeça negativamente em reprovação.

— Esquece isso, Colth. — Hikki apressou o ponto chave da conversa: — Agora que já está mais confortável, pode nos contar com mais detalhes sobre esses deuses que você viu nas memórias dessa tal mulher de outro mundo.

“Lashir. Eu tenho nome, fala para ele.” A voz da mulher ganhou os pensamentos de Colth.

O rapaz coçou a orelha e sussurrou sem perceber a resposta de sua mente:

— Isso não é importante agora.

— O que não é importante? — perguntou Hikki, estranhando os dizeres e o portar-se acanhado do homem.

— Não é nada — disfarçou Colth, antes de retornar à conversa: — Eu dizia que essa mulher, Lashir, reuniu vários guardiões para se rebelarem contra os deuses dos oito mundos.

— Oito mundos, nove deuses — comentou Beca, pensativa. — É o que diziam os livros da fortaleza Última.

— Então vocês já sabem sobre os oito tipos de magia e seus guardiões?

— Espaço, tempo, matéria, energia, gravidade, vida, mente e sangue. A herança arrependida que Lux deixou aos seus filhos — Beca recapitulava em sua memória. — A Deusa deu vida aos seus herdeiros com objetivo de se fazer imortal, de não desaparecer na escuridão do universo, e de se alimentar de suas próprias crias por toda eternidade. Mas a história nos livros cessa no momento em que todos eles estão insatisfeitos com a necessidade de se manterem como oferenda à sua própria mãe.

— “Emoção, é uma fraqueza.” Foi o que Lux disse — mencionou Colth. — Deuses deixam de ser o que são, quando adquirem qualquer sentimento que fuja o da própria sobrevivência primordial.

— E, de fato, quando os deuses começaram a conquistar suas próprias emoções, a ordem que Lux tinha em suas mãos começou a estremecer — comentou Hikki.

— Era inevitável — Beca continuou —, afinal, a realidade deixou de ser luz e sombras, preto e branco, e passou a ter uma infinidade de cores. Afetos foram criados com a mesma intensidade de que conflitos se tornaram comuns. Era questão de tempo até essas emoções cruzarem os planos de Lux e lhe obrigar a abdicar de seu alimento, a energia que lhe torna eterna e que vem dos guardiões de seus filhos, o dadivar.

— Você sabe mais do que eu imaginava — sussurrou Colth.

— É claro que sim. Quem você acha que ajudou a colocar toda a tecnologia de Finn de volta à ativa?

— ...

Colth manteve-se em silêncio observando uma raiva encoberta por insatisfação da mulher. Ela rebateu os olhares:

— É claro que foi eu. Aquele idiota jamais conseguiria colocar em prática qualquer conhecimento adquirido nos livros, mesmo com ajuda do tradutor meia boca que é o Caio.

— A Celina é realmente impressionante — sussurrou Colth, antes de encorpar seus pensamentos: — Ela entendeu exatamente os planos da deusa de Finn de guardar todo o seu conhecimento na Fortaleza Última. Tudo isso estando em outro mundo, estando em outro tempo. Por isso

— Ela só não previu que esse conhecimento cairia nas mãos de alguém disposto a... esquece — hesitou Beca.

— É, essa parte ainda é difícil de processar. Mas tenho certeza de que tem algum motivo para isso.

— Como se algum motivo fosse justificar essa merda — ponderou Hikki, com as palavras arranhando a garganta.

— Temos que tentar entender o lado dele tam...

— Entender?! — Beca ergueu a voz, acatando como provocação a conciliação de Colth. — Você não faz ideia, não é?

— Como assim? Não é culpa dele.

— Não é culpa dele?! — Beca ardeu em ódio. A mulher baixinha avançou um passo em direção a Colth, com o punho pronto para um soco.

Hikki agiu rapidamente. Colocou a mão no ombro dela e tentou acalmá-la: — Espera, Beca. É obvio que ele não sabe do que está falando.

— Eu não estou entendendo — Colth mostrou-se verdadeiramente confuso. — Ele só fez o que fez, pois está sendo controlado. Lux está controlando-o.

— Escuta, Colth. — Hikki se colocou à frente do forasteiro daquele mundo. Se fez ouvir sério: — O Aldren não é aquela mesma pessoa que você conhecia.

— Mas...

— Lux não está o controlando. A situação é outra — interrompeu Hikki. — O Aldren usou os conhecimentos escondidos da fortaleza Última, que Caio traduziu e que Bertha aperfeiçoou, para atrair Lux e a aprisionar.

Colth paralisou. Pensativo, sem ao menos piscar. Beca, observando o estarrecer do rapaz e compartilhando de seu remoer, reforçou:

— O Aldren subjugou a Deusa maior. Subjugou a Deusa Lux.

Colth desviou o rosto, relutante em aceitar a ideia que se formava em sua mente. Por alguns segundos, manteve-se em silêncio, sentindo o peso dessa dúvida pairando sobre ele. Quando finalmente voltou seu olhar para Hikki, preparado para expressar suas incertezas, um ruído familiar rompeu o ambiente, seguido por um breve clarão que iluminou a oficina. No instante seguinte, uma das mesas da oficina tombou derramando peças metálicas e ferramentas por todo o chão do lugar.

— Mas o quê... — Beca interrompeu sua fala ao se deparar com a cena diante deles.

Os outros dois também ficaram estáticos, igualmente surpresos e atônitos com o que viam.

Um corpo ensanguentado jazia nos braços de um Goro em desespero, seus olhos suplicando por ajuda enquanto ajoelhado ao chão no centro da oficina. Ao lado dele, Garta deu um passo para trás, respirando pesadamente, exausta e aflita.

— O que... O que aconteceu? — Colth tentou processar rapidamente a situação, varrendo o cenário com os olhos várias vezes, e mesmo assim não conseguia conceber o absurdo que era tudo aquilo.

— Ainda bem... — sussurrou Garta, suas mãos tremendo ao cobrir a cabeça, visivelmente apavorada. — Ainda bem que você está com o meu pingente, Colth.

— Celina! Onde está Celina!? — Goro gritou, a voz carregada de desespero pela urgência.

— Celina? — Colth arregalou os olhos, um arrepio percorrendo sua espinha. — Ela... ela não está aqui...

— Não, não, não... — Goro balançou a cabeça, negando veementemente, enquanto mantinha o corpo da garota em seus braços. — Precisamos da magia da Celina. Ela pode curar a Iara.

— A Celina tinha que estar com você, Colth... — disse Garta desanimando-se ao receber a resposta de um olhar preocupado de Colth. Sussurrou consigo mesma: — Não era para isso ser assim.

Como se uma tonelada de desesperança despencasse sobre os seus ombros, ela se virou para não ver mais.

— Não! — Goro gritou, sua angústia se intensificando. Ele apertou o corpo da garota com mais força e desabou em lágrimas. — Por favor, não.

Colth permaneceu paralisado, sentindo um nó sufocante se formar em sua garganta ao mesmo tempo que todo o resto se tornava um abismo de quietude. A cena diante dele parecia distante, como se estivesse observando tudo através de uma névoa muda e irreal. O desespero de Goro ecoava em seus ouvidos, enquanto a angústia de Garta se instalava em seu peito, como uma lâmina. Uma sensação de debilidade o envolvia, tornando cada respiração um esforço árduo.

Foi então que a voz de Lashir ecoou em sua mente, cortando o silêncio como um trovão em meio à tempestade:

“Use a sua magia para acessar a mente da garota.”

— O quê? — sussurrou o guardião de Anima. Inaudível para qualquer outro.

“Vamos entrar na mente da garota. E me deixe livre para acompanhá-lo. Podemos fazer algo.” Insistiu Lashir.

— Deixar você livre? Nem pensar que eu vou...

“Anda logo. A garota não tem mais do que alguns segundos de vida. Se não for fazer isso, não fique se lamentando depois. Está nas suas mãos.” ecoou Lashir como ultimato.

Os dizeres da mulher preenchiam os pensamentos de Colth. O rapaz refletiu por um curto segundo antes de se decidir:

— Droga.

Colth avançou seus passos em direção ao triste panorama que continuava diante de seus olhos. A palma da mão do guardião brilhou intensa antes de ele a levar em direção a testa de Iara nos braços do perplexo Goro.

— Colth? O que vai fazer?

Enquanto as palavras choramingadas de Goro percorriam o silêncio fúnebre, o guardião de Anima se concentrou e tocou a palma de sua mão no belo rosto delicado de Iara.

O toque foi sutil, quase imperceptível, mas quando a pele de Colth encontrou a testa de Iara, a magia de Anima os conectou instantaneamente.

                                               ***

Colth abriu os olhos e se viu em meio a um velho salão com diversas mesas e cadeiras em conjunto. O piso de madeira emanava um cheiro terroso e acolhedor ao mesmo tempo que o calor de uma primavera distante se fazia notável.

— Que lugar é esse? Uma taverna? — perguntou Lashir, ao lado dele.

A voz dela ecoou mensurando a solidão que o ambiente completamente vazio trazia consigo.

— Não. Eu conheço esse lugar. É o restaurante Gato Implacável — esclareceu Colth, olhando ao redor com uma sensação brevemente nostálgica. — Costumava ser.

— Esse lugarzinho não pode ser chamado de restaurante. E que tipo de nome ridículo é esse, em? Gato Implacável? Aposto que fechou por reclamação.

— É, tanto faz. Isso nem existe mais. — Colth balançou a cabeça se desapegando de lembranças. — Essa é a mente da Iara. Temos que achá-la rápido, para que você possa salvá-la.

— Ah, é. É melhor procurarmos — disfarçou a mulher de vestido vermelho e olhos definidos. — Alguma sugestão por onde começar?

— Talvez, lá fora — Colth avançou para a porta principal da entrada do comércio. — Tem duas árvores no centro da praça e...

No momento em que o rapaz escancarou a porta da entrada do restaurante, viu algo que só faria sentido na realidade dos sonhos. O lado de fora do prédio não existia, era simplesmente uma escuridão infinita, um vazio, um nada. Ele parou à beira do abismo, surpreso.

— Isso facilita as coisas, de certa forma — disse Lashir, com um certo grau de desprendimento.

Colth colocou seu tronco para o lado de fora do prédio, pela abertura da porta, olhou para baixo e viu uma queda infinita, olhou para cima e viu o mesmo que para baixo. Para os lados, era capaz de observar a parede exterior do prédio, mas nada além disso. Retornou para dentro ainda surpreendido:

— Como é possível? Não tem absolutamente nada lá fora. É como se nada além do restaurante existisse.

— Isso significa que a garota está nesse prédio. Como eu disse, facilita as coisas.

— Bom, então só resta os quartos no segundo piso. A Iara só pode estar lá — concluiu Colth.

O rapaz se apressou e atravessou o salão do restaurante em direção a cozinha e em seguida a escada que o levaria até o andar superior.

Lashir o seguiu, observando o ambiente com a mínima curiosidade sobre o lugar que já não existia mais.

Colth parou no início do corredor apertado do segundo piso após terminar de subir os degraus por completo. Mirou os olhos no decorrer da passagem vazia. Encarou a porta mais próxima dele:

— O quarto da Garta.

Não perdeu tempo e avançou, segurou a maçaneta e a girou de uma só vez. Adentrou ao quarto, ainda seguido por Lashir.

— Vou supor que esse não é o lugar — comentou ela ao observar o que deveria ser o quarto, mas obviamente não era.

O lugar era muito distinto do restante do restaurante. Sem janelas, e com um amontoado de caixas e tralhas, parecia mais uma despensa bagunçada do que de fato um quarto, mesmo que algumas latas de comida e garrafas d’água denunciavam que, de fato, alguém vivera ali.

— Não. Esse é o abrigo do Índigo. A Iara viveu com ele aqui por alguns anos após a explosão de magia de Lux e Tera.

— A mente humana é, no mínimo, surpreendente — discorreu Lashir.

— Vamos, ela não está aqui...

No momento em que Colth se preparou para dar meia volta, algo o interrompeu e ganhou completa atenção. Vozes familiares:

— Eu trouxe mais comida, Índigo.

— Garota, eu falei para não se preocupar comigo. Onde conseguiu tudo isso?

Colth e Lashir podiam ouvir e ver claramente o diálogo entre aqueles dois que um dia viveram naquele apertado abrigo, Índigo e Iara. Mesmo que nenhum deles estivessem visíveis aos olhos das lembranças.

— Eu encontrei aquela caravana do outro dia, mais uma vez — respondeu Iara enquanto armazenava a comida que havia conseguido. — Eles disseram que não retornarão tão cedo.

— Deveria ter ido com eles — rebateu Índigo.

— Sabe que eu não posso. Tenho que esperar a Garta.

— Tem razão — Índigo se desfez de sua ideia baixando a cabeça enquanto sentado em sua poltrona no fundo do abrigo.

— Mas não é isso que me preocupa — Iara fez questão de não deixar o silêncio ganhar forma. — Um dos comerciantes disse que ouviu de outra caravana que alguém subjugou um deus no mundo de Finn e está “oferecendo” uma nova vida em seu mundo.

— Acha que é ele?

— Quem mais poderia ser?

— Então os rumores eram reais — pontuou Índigo pensativo. — Alguma ideia de quem é o deus subjugado?

— Nenhuma.

— Não importa muito também. Se o Aldren tem o poder de um deus em suas mãos, e está o usando desse modo, isso é bem preocupante. O mundo de Tera não vai durar muito mais tempo.

— Tsc. Onde você está, Garta? — finalizou Iara, cantando sua esperança.

As memórias deixaram de existir e o completo silêncio se ergueu. Colth manteve-se estático, pensativo sobre o que acabará de se revelar a ele.

— Eles sabiam — murmurou o rapaz com emoções conflitantes. — A Iara e o Índigo sabiam esse tempo todo que o Aldren era o tal do imperador. Não só isso, eles sabiam que o Aldren não estava sendo controlado, era ele quem controlava.

— Está mesmo surpreso, Colth? — perguntou Lashir observando a inconformidade do guardião de Anima.

— Foi o que eles me falaram, Foi o que eu acreditei. O que quer dizer, com isso?

— O que você acha que aconteceria, se Índigo e Iara tivessem falado desde o começo que o Aldren se ergueu como um deus em outro mundo e simplesmente os deixou para trás? Acha que a Celina teria resistido por tanto tempo? Acha que a Garta não se entregaria ao fato de o seu irmão simplesmente ser um cúmplice da situação e, nem ao menos, ir atrás dela?

— Está errada.

— Não é questão de ela estar certo ou errado. Iara agiu muito bem. Os manipulou de forma a cumprir o objetivo único de combater o Aldren e tudo que lhe acompanha.

— Não. Você está errada, Lashir.

— O quê? Então, eu estou errada? O fato de a resposta para a pergunta que lhe incomodava minutos atrás, ter surgido no meio da mente da pobre Iara, foi mera coincidência? — rebateu Lashir.

Colth se espantou e tentou uma defensiva sem argumentos:

— Foi você quem deu a ideia de entrar na mente da Iara.

— E aí você se achou no direito de bisbilhotar as memórias dela — Lashir não recuaria. — Assuma de uma vez que você estava louco para arrancar essa lembrança dela, e que foi isso que te fez pular aqui para dentro sem pensar.

— Não foi bem assim que...

No momento em que Colth começaria a se explicar, algo passou pelo corredor atrás deles, interrompendo-os.

Passos leves e rápidos que evidenciava se tratar de uma criança em corrida afobada pelo corredor. A surpresa de ter mais alguém ali não foi ignorada. O rapaz enunciou sua solicitação avançando:

— Espera.

Colth, velozmente, atravessou de volta a porta e adentrou ao corredor procurando pela criança. A viu com apenas os cantos dos olhos, talvez uma garotinha, rapidamente adentrando a segunda porta mais adiante.

— Vamos. Acho que é a Iara — disse o rapaz se apressando.

— Claro, claro — concordou Lashir, em tom desanimado.

Sem hesitar, Colth continuou seguindo os passos da criança até a segunda porta e, de uma só vez, escancarou a passagem atravessando-a. Parou ali, observando o interior.

Lashir chegou logo em seguida, não se surpreendeu com o ambiente absurdamente maior do que o esperado para um simples quarto, mas aquele lugar lhe saltou os olhos por outro motivo. Calou-se.

— Caramba — disse Colth, impressionado. Comentou boquiaberto: — Dessa vez, eu não faço a menor ideia de onde estamos.

Se encontravam diante de um vasto hall do que, sem dúvidas, era um castelo. As paredes eram adornadas com tapeçarias coloridas, intrincadas com desenhos de uma variedade de criaturas inimagináveis. Colunas maciças, esculpidas em belas formas sustentavam o teto alto, onde lanternas delicadas balançavam suavemente e lançavam uma luz dourada sobre o chão de mármore. Ao centro, uma fonte de água cristalina percorria toda a extensão da construção dividindo-a em duas, as quais eram interligadas apenas por um par de belas pequenas pontes em arco sobre as águas que corriam serenas abaixo.

— Esse lugar — foi a vez de Lashir murmurar —, esse é o palácio do deus de Véu.

— deus de Véu? — Colth ouviu pouco sobre aquele nome, mas sem dúvidas, era algo relevante. — Esse não era o deus que o...

— O deus que o Índigo servia, sim — respondeu Lashir. Refletiu sobre aquilo por um segundo e, então, resumiu em palavras desafiadas: — Então, vai ser como eu estava pensando. Você é muito previsível, Índigo.



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