Volume 2

Capítulo 98: Ponte Sobre Profundezas

— Deus de véu? — indagou Colth, perplexo diante da magnitude do hall desconhecido, seus olhos vagando pelas inúmeras belezas que o cercavam. — Mas isso não tem relação alguma com a Iara, não é?

— Se você conhecesse o Índigo, saberia que isso tem tudo a ver com a Iara — respondeu Lashir com uma preocupação em mente. — Tá, que seja. Eu sei exatamente aonde devemos ir. Se prepare para lutar.

Lashir começou a caminhar em direção ao fundo do hall gigantesco com a luz dourada que se derramava sobre ela como um manto de ouro.

Enquanto o barulho das águas se destacava, correndo em meio ao canal que dividia o ambiente que esbanjava beleza em suas tapeçarias penduradas pela parede, Colth apressou-se em seguir Lashir, sentindo-se incomodado com a perspicácia dela. Sua mente fervilhava com questionamentos não respondidos, e ele não conseguia conter sua frustração:

— Por que eu sinto que você está sempre escondendo algo?

Os olhos de Lashir faiscaram por um instante antes dela responder com um sorriso enigmático:

— E por qual motivo eu deveria dizer tudo a você? Que constatação mais tola.

Lashir não demonstrou nenhuma preocupação, seguindo adiante com determinação.

— E aquilo de depender da minha vida? De precisar que eu fique bem, e tudo mais? Não deveria prezar por minha segurança? Então deveria compartilhar o que você sabe, assim vamos ter uma vantagem contra o inimigo.

— Ah. — Lashir sorriu nefasta antes de responder em tom venenoso: — Eu disse que preciso do seu corpo para sobreviver. Não esqueça que estamos na realidade da mente. Não há corpo físico aqui. Qualquer dano que sofresse nessa realidade, afetaria apenas a sua mente e nada mais.

Colth parou imediatamente, se atentando ao risco que havia assumido. Ele já tinha noção plena desse perigo, antes mesmo de adentrar à mente de Iara, mas decidiu ignorá-lo prezando pela vida da garota arqueira e confiando na boa vontade de Lashir.

Mas o risco de fato se apresentou e, nenhuma boa vontade se manifestaria em tom tão ameaçador e provocador como o que ela tinha em seus lábios.

A mulher, por sua vez, não mudou sua postura, continuou caminhando e pronunciando suas palavras convictas em meio a um sorriso presunçoso:

— O que foi? Não me diga que está com medo.

Colth se viu com ideias contrarias se confrontando em seus pensamentos. Confiar ou não em Lashir era uma questão arriscada, mas ele já havia tomado a sua decisão:

— Eu não estou nenhum pouco com medo — disse convicto, soando um tanto insolente ao voltar a caminhar e acompanhar a mulher. — Não de você, ao menos.

— Deveria ter. Eu só estou esperando a hora certa para agir e assumir o seu corpo. — respondeu ela, em tom neutro.

— Não. Eu decidi dar um voto de confiança a você.

— Hmpf. — Ela desviou o rosto parecendo incomodada, mas logo se recompôs e voltou com seu vigor dominador: — É exatamente disso que preciso. Continue assim, e vai facilitar muito as coisas para mim.

— Como foi que você se tornou a líder dos guardiões rebeldes? — perguntou Colth, com uma pitada de acidez em suas palavras. — Você não consegue dizer duas frases sem ameaçar alguém.

— Então você se sentiu ameaçado? Achei ter escutado você dizendo que não estava com medo.

— Eu não estou com medo — respondeu ele, cerrando os olhos de modo irritado, mas logo extinguiu. — Eu realmente fiz uma escolha.

A mulher hesitou o seu passo seguinte. Pareceu pensativa por um momento que durou menos do que um segundo.

— Tanto faz — dispôs Lashir, áspera, mantendo-se concentrada em atravessar o hall. Concluiu: — A resposta para a sua dúvida está na sua própria pergunta.

Foi a vez de Colth ficar pensativo. Voltou em suas ideias adversas sobre Lashir, mesmo que já tivesse se decidido:

— Tsc. — Reclamou consigo. — Pode, pelo menos, dizer o que vamos encontrar daqui para frente?

— Agora sim, a pergunta certa — Lashir se fez mais acessível. — Estamos procurando pela essência da Iara.

— Ah, sim. Como aquele cristal que eu e a Agnes destruímos na realidade da sua mente ao te derrotar.

Lashir revirou os olhos incomodada com a lembrança:

— É. Exatamente isso.

— Certo. Mas então, essa é a representação do mundo de Véu? É bem impressionante — comentou Colth, observando o seu arredor.

— O mundo de Véu é aquele que trouxe a nova vida. Seres imperfeitos criados por um deus filho. O mais jovem entre os oito mundos e, talvez, aquele que trouxe o primeiro grande conflito.

— O mais jovem? — recordou o rapaz: — Tinha um garoto de tatuagem na reunião entre os deuses.

— Sim. Esse era Véu. O deus mais pacífico e mais adorado entre todos os mundos. Não é à toa que foi o primeiro a cair.

— O que aconteceu? — perguntou Colth, observando deslumbrado a belezas das tapeçarias nas altas paredes do hall luxuoso.

— Todos os mundos possuíam algum modo de impedir que o seu guardião se envolvesse demais com outras pessoas. Alguns mundos os trancavam, alguns proibiam de relacionamentos e faziam uma forte lavagem cerebral, e outros chegavam a esterilizar o seu guardião.

— Que cruel — comentou Colth.

— Desse modo ficava mais fácil de executar o dadivar e conferir à Lux a melhor das oferendas. Mas um, dentre os oito mundos, não estabelecia regras severas desse modo.

— O mundo de Véu — antecipou-se Colth, seus olhos brilhavam ainda impactado pelas belezas daquela imensa construção adornada com tantos detalhes e caprichos.

— Véu manteve a plena liberdade aos seus guardiões. Várias gerações passaram com poucos problemas decorrente dessa liberdade plena. Mas então, foi a vez de Índigo.

No momento em que Lashir disse aquelas palavras, Colth se viu frente a uma grande tapeçaria que se estendia do teto ao chão de mármore. Com uma arte rebuscada feito à mão, a imagem que se desenhava no tecido denso e pesado era a de um homem com postura imponente em seu manto azul e sorriso confortador em meio a várias criaturas.

Colth sabia exatamente quem era aquela figura representada ali. Mesmo com um rosto mais jovial e um sorriso nunca antes visto por ele, podia ter certeza de que aquele era Índigo, o guardião de Véu.

Lashir continuou com sua explicação, percebendo Colth vislumbrado com tamanha arte dedicada ao homem que um dia já foi o seu aliado:

— Índigo era amado pelo seu povo. Era admirado por qualquer classe ou povoado de Véu. Além de ser um guardião insuperável, era um excelente esposo e um esplêndido pai de seis filhos. Mas o dia de seu dadivar chegaria, mais cedo ou mais tarde.

— Ele se recusou a se sacrificar? — perguntou Colth, com a curiosidade lhe tomando.

— Não. Ele jamais se recusaria. Era tolo demais, e benevolente o bastante, para isso.

— Lashir! — vociferou o homem em cumprimento, ao fundo do hall com seu manto azul e braços tatuados expostos.

— Índigo? — sussurrou Colth.

— Falando do tolo — exprimiu Lashir em um sopro. Se virou para Índigo com determinação.

— É bom ver você, guardiã de Rubrum — comentou o homem, sua aparência como um reflexo do desenho imponente na bela tapeçaria observada por Colth momentos atrás.

— Só queremos chegar até a essência da Iara. Nos deixe passar — solicitou a mulher de vermelho, sem nenhuma cerimônia.

— Direta, como sempre — rebateu Índigo, manteve-se com os olhos fixos e determinados. O homem estava em plenas condições, não parecia em nada com o velho Índigo que tinha dificuldades até de andar com a perna completamente lesada. — Você sabe muito bem que não posso deixá-la chegar próxima à essência. Não vou deixar vocês passarem.

— Não, Índigo! Você entendeu errado — Colth tentava o diálogo. — Estamos aqui para salvar a vida da Iara.

— Salvar? — perguntou Índigo com dúvida sincera. — Procurando pela essência da Iara? Não. Não me venham com essa besteira. Eu sei exatamente o que estão pretendendo. Bom, é de se esperar vindo de você, Lashir.

Índigo mirou os olhos perspicazes sobre a mulher. Fez com que Colth também a olhasse com um ar de julgamento preenchendo o espaço. E com o tom de uma sentença determinada por ele, Colth disse:

— É essa confiança que se ganha quando sai por aí só ameaçando os outros.

— Eu não preciso da confiança de um selo — respondeu Lashir, autoconfiante.

— Um selo? — Colth intrigou-se.

 — Um selo protetor para vigiar a essência, custe o que custar. É como um defensor estabelecido para afastar qualquer um dessa realidade.

— E por qual motivo ele se parece com o Índigo?

— Porque foi ele que estabeleceu o selo, não é óbvio? Mas é apenas uma lembrança de seus melhores dias. Temos que derrotá-lo e encontrarmos a essência.

Colth acenou positivamente com a cabeça. Se aquilo fosse dar uma chance para a sobrevivência de Iara, ele faria o possível para combater Índigo.

— Deem meia volta. É meu último aviso — enunciou o guardião de Véu.

Colth e Lashir nem sequer pensaram na possibilidade de recuar. Se prepararam para a embate que estava por vir.

— Por mais que seja só uma lembrança com uma fração do poder do Índigo, ele ainda é bem poderoso. Posso sentir isso.

Assim que Lashir finalizou os seus dizeres, o guardião de Véu abriu os braços e se concentrou em sua magia. Do mármore frente dele, uma criatura se ergueu vinda do chão. Quando ela ficou de pé e mirou os seus olhos negros à dupla de invasores, Colth sentiu o frio na espinha e a lembrança de já ter lutado com um daqueles.

Um capelobus. O focinho alongado lembrava uma tromba, uma característica peculiar que o diferenciava das criaturas comuns. Sua língua, que se projetava periodicamente como a de uma serpente, adicionava uma aura de ameaça à sua figura imponente. Seu corpo musculoso e revestido de pelos grossos já se mostrava pronto para o combate.

— Esse grandão de novo — resmungou Colth.

— Foque no Índigo. Eu vou manter a criatura ocupada — ordenou Lashir, se preparando para iniciar uma corrida pelo hall impecável.

— Espera...

Colth não obteve resposta, Lashir começou a correr avançando em direção a uma das pequenas pontes que interligava ambos os lados do hall.

— Pode vir, criatura imperfeita! — gritou ela.

Chamou a atenção do capelobus com sucesso.

A criatura pareceu aficionada pelas roupas vermelhas da mulher. Seus olhos negros fixaram-se nela e ele caminhou apressado de encontro a pequena ponte sobre o canal de águas calmas que corriam ao centro do ambiente.

Colth voltou os olhos para Índigo, o seu verdadeiro oponente. Começou a pensar imediatamente sobre o que faria para ultrapassar aquele selo que o testaria. Nem sequer arma ele possuía mais, sua adaga de Sathsai foi levada quando ele foi preso na masmorra de Finn, mas agora não era hora de pensar sobre isso, precisava de uma estratégia, e rápido.

Índigo começou a caminhar calmamente em direção a Colth. Abriu os braços com o rosto convicto de sua determinação:

— Você não vai passar.

Colth hesitou, já havia visto aquele mesmo movimento de braços abertos do guardião de Véu. Da última vez, não foi coisa boa.

Índigo se concentrou e uma brisa forte atravessou o hall de modo a flamular as tapeçarias. No momento seguinte, corvos surgiram vindos das flâmulas. Eram tantos, como uma revoada, que o ambiente chegou a escurecer enquanto os pássaros voavam circulando o alto do hall.

— Vão — sussurrou Índigo, apontando os braços em direção a Colth como uma ordem as suas criaturas.

Os corvos se alinharam no ar para então irem de encontro ao seu alvo. O rapaz em mira arregalou os olhos e engoliu seco ao ver aquela nuvem de penas negras se aproximando rápida:

— Ah... droga...



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